REVELAÇÕES DE SENNA EM MONTREAL (e que ninguém captou…)

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É inevitável: praticamente qualquer referência ao GP do Canadá é acompanhada por alguma frase do tipo “uma das corridas mais agradáveis do calendário”.

Cobri essa corrida em 1993 e pude constatar que é a pura verdade. O ambiente do circuito (instalado em uma ilha), a facilidade de locomoção (pode-se ir para lá de metrô, limpo e organizado) e a beleza do lugar (a parte de trás dos boxes dá para a raia de remo usada nos Jogos Olímpicos de 1976, e a vegetação existente na outra margem dá um ar quase bucólico à paisagem) fazem esta corrida ter um ambiente descontraído.

Para jornalistas brasileiros, há somente um fator de stress: o fuso horário. Nos GPs europeus (e em qualquer outro realizado em países ao leste do Brasil, como Japão, Austrália, Malásia e Bahrein), o horário local é adiantado em relação ao nosso. Para quem trabalha em jornal e tem horário de fechamento, isso pode ser uma grande ajuda. Quem está na Europa pode ter até as nove horas da noite locais (ou mais, dependendo do país) para enviar um texto que precisa estar na redação até as seis horas da tarde de Brasília. Trabalha-se mais, sem dúvida, mas com calma e uma certa folga para apurar notícias, colher depoimentos, repercutir acontecimentos.

Em Montreal, o fuso horário é duas horas atrasado em relação ao de Brasília. Com o GP terminando às quatro horas da tarde de lá, eu (e todos meus colegas de jornais diários) tinha apenas duas horas para acompanhar as coletivas dos três primeiros colocados, ouvir os pilotos brasileiros (naquele ano eram Senna, Barrichello e Christian Fittipaldi), apurar outras coisas que fossem eventualmente interessantes, escrever os textos e enviá-los à redação – tudo isso sem internet, que não existia para o grande público naqueles tempos. Dá para imaginar a mão-de-obra. Mas fazíamos, e estava longe de ser uma tarefa impossível. Os meios disponíveis eram outros e o ritmo de trabalho também.

Aquele GP acabou rendendo várias histórias interessantes. E uma delas foi bastante significativa, embora ninguém – a não ser o personagem entrevistado – pudesse prever quanto.

Em todos os GPs que cobri, as coletivas de Senna (não aquelas oficiais após os GPs, mas as que eram concedidas fora daquela sala) eram tumultuadas, com repórteres de todo o mundo rodeando-o. Muitas vezes eu sequer conseguia vê-lo, ouvi-lo ou fazer perguntas. Simplesmente enfiava meu gravador no meio dos colegas e reproduzia o que ficava gravado.

Naquele final de tarde de quarta ou quinta-feira que antecedeu o GP do Canadá de 1993, porém, o ambiente era completamente diferente. O autódromo estava quase vazio e a maioria das equipes parecia trabalhar em ritmo tranqüilo, sem pressa nem preocupações. Atrás do box da McLaren, cerca de oito ou dez jornalistas brasileiros – eu entre eles – aguardavam Senna. Betise Assumpção, na época sua assessora de imprensa (hoje, casada com Patrick Head – ele mesmo, o diretor da Williams) avisava que Senna estava em reunião com a equipe e depois viria falar conosco. Estávamos todos inquietos com a proximidade dos horários de fechamento. Quando eles estouraram, todos ficaram descontraídos. Afinal de contas, “perdido por um, perdido por mil”. Desencanamos. Ficamos aguardando Senna sentados em volta de uma mesinha.

Depois de quase uma hora, Senna saiu da reunião e veio sentar-se conosco. Sorridente, despreocupado, visivelmente “leve”. Bastante diferente do que eu sempre havia visto durante as corridas anteriores, em que Senna se queixava continuamente da falta de competitividade do McLaren em relação ao Williams de Prost. Imaginei que tal estado de espírito se devesse unicamente à atmosfera relaxada do lugar. Meses mais tarde, compreendi o que havia por trás desse alto astral.

Com poucos jornalistas presentes e todos brasileiros, o clima na mesa era muito mais de papo-furado do que de entrevista. Uma das perguntas inevitáveis era sobre o futuro de Senna. “Estou conversando com todo mundo”, disse. Alguém perguntou se “todo mundo” incluía a Ferrari. “Sim, tenho telefonado para o John Barnard”, respondeu Senna, referindo-se ao então diretor técnico da equipe italiana. (Vale lembrar que Jean Todt já havia sido confirmado como novo diretor esportivo da Ferrari, mas a posse aconteceria somente no final daquele mês.)

A mesa se alvoroçou. Eu, particularmente, não me impressionei. Na linguagem com sinais invertidos da F 1, declarações feitas abertamente e sem caráter oficial costumam ser justamente as que menos indicam tendências para o futuro. Em compensação, assuntos que geram um certo desconforto no interlocutor e são seguidos de um desmentido peremptório têm boas chances de serem verdadeiros.

Depois de muitas perguntas sobre a Ferrari, Senna afirmou, batendo a palma da mão sobre a mesa: “Estão acontecendo coisas nos bastidores e eu garanto que ninguém de vocês tem idéia do que seja”. E voltaram as perguntas sobre Ferrari e McLaren. Quando a entrevista acabou, voltamos todos para a sala de imprensa para escrever e enviar textos ou boletins de rádio. No caminho, ouvi alguns colegas comentarem entre si aquela que seria a chamada principal de suas matérias: “Ele já assinou com a Ferrari!”, diziam. Olhei para Wagner Gonzalez, que me acompanhava, e sua expressão traduzia o mesmo pensamento que o meu: aquela história de “conversar com John Barnard” podia significar tudo, menos uma real intenção de assinar com a Ferrari. Ao contrário de outros colegas, que transformaram o assunto em manchete, mencionei-o apenas marginalmente.

Menos de um mês depois, durante o final de semana do GP da França, uma nota oficial informava que a Camel e a Canon não continuariam a patrocinar a Williams.
Mais dois ou três meses e outro anúncio oficial foi feito: a Williams seria patrocinada pela Rothmans.

Em setembro, encerrados os treinos de sábado do GP de Portugal, Senna afirmou em sua coletiva: “Vai estourar uma bomba a qualquer momento”. Logo depois, Ann Bradshaw, assessora de imprensa da Williams, distribuía um comunicado informando que Alain Prost e a Williams dariam uma entrevista dali a uma hora, “para anunciar seus planos para o futuro”. Foi nessa entrevista que Prost anunciou sua retirada da F 1 como piloto. Naquele instante, todos entenderam: Senna iria para a Williams em 1994.

Em outubro, Senna e a Williams fizeram o anúncio oficial da nova parceria – o brasileiro no auditório de seu prédio comercial, em São Paulo, e a equipe em Didcot, na Inglaterra. Terminada a coletiva, Senna ainda ficou um tempo “dando sopa” aos jornalistas, conversando com pequenos grupos ou com cada um em particular. Me aproximei, lembrei-lhe da entrevista no GP do Canadá e perguntei-lhe se as “coisas que estavam acontecendo e que ninguém tinha idéia do que era” se referiam ao contrato assinado com a Williams. Senna deu um sorriso malicioso e afirmou: “Eu tinha que estar bem informado para tomar as decisões certas”.

Em suma, a pista da ida de Senna para a Williams havia sido dada quatro meses antes do anúncio oficial. É verdade que ela foi dada junto com um belo despiste. Mas o fato é que, como Senna afirmou, nenhum de nós conseguiu imaginar qual era a movimentação de bastidores que estava acontecendo naqueles dias que antecederam o GP do Canada de 1993. (Luiz Alberto Pandini)

Luiz Alberto Pandini
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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