Revisitando 1997 – final

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Chegamos ao último episódio da lendária temporada 1997 da Fórmula 1, um campeonato com diversas variantes e um final surpreendente.

Nossa viagem pela temporada 1997 chegou às duas dramáticas corridas finais: Japão e Portug… ops! Espanha, Jerez! Originalmente, a última corrida de 1997 seria no Estoril, mas o tradicional autódromo português teve problemas na organização. Seria sacado pela FIA ainda no mês de maio pra nunca mais voltar aos calendários da F1.

O substituto escolhido, de imediato, foi o autódromo de Jerez, pista muito usada para testes, bastante conhecida por pilotos e equipes e fácil de arrumar para sediar a corrida. Como o circo já havia disputado o GP da Espanha em Barcelona, o round final ganhou o nome de GP da Europa.

E quando eu digo que as duas provas finais de 1997 foram dramáticas, não estou exagerando. No Japão, os dramas começaram já no segundo treino livre. Naquela sessão, Jacques Villeneuve não tirou o pé enquanto o regresso Olivier Panis estava encostado na grama com problemas em sua Prost. Com a bandeira amarela à mostra e, para estupefação de toda a F1, o canadense líder da tabela de pontos estava simplesmente SUSPENSO da corrida japonesa.

Vindo do automobilismo americano, Jacques Villeneuve sabia muito bem o que significava um pano amarelo costurado numa haste sendo mostrado por um fiscal de pista. Porém, Villeneuve já tinha desrespeitado duas outras vezes bandeiras amarelas durante a temporada e se fosse pego novamente, o canadense seria excluído da próxima corrida.

A Williams agiu logo e garantiu uma liminar para que Villeneuve participasse da prova em Suzuka. Mas todos sabiam que o canadense seria desclassificado quando a liminar fosse julgada. Restava a Jacques tentar atrapalhar ao máximo a corrida do vice-líder Michael Schumacher para diminuir os danos que teria se o alemão da Ferrari marcasse muitos pontos. Villeneuve ficou com a pole, superando Schumacher por apenas seis centésimos, mas o alemão teve um aliado que Villeneuve não contava.

Assim como Jacques, Eddie Irvine tinha feito parte de sua carreira no automobilismo japonês. Se havia uma pista que o irlandês adorava, essa pista era Suzuka. Irvine se colocou em terceiro no grid, com Heinz-Harald Frentzen apenas em sexto na outra Williams, fora de qualquer possibilidade de agir como escudeiro. Com toda essa confusão fora das pistas, a tensão havia subido muito e havia um medo: Villeneuve estava na pista única e exclusivamente para jogar Schumacher para fora da pista?

A tática da Ferrari, bolada pelo sempre brilhante Ross Brawn, entraria em ação com Irvine ultrapassando Schumacher na segunda volta e logo partindo para cima de Villeneuve. Numa manobra ousada, Irvine assumia liderança da corrida, deixando Villeneuve e Schumacher novamente juntos. Villeneuve fazia uma corrida de marcação homem a homem em Schumacher: não deixava ultrapassar, mas impunha um ritmo muito baixo, fazendo com que Mika Häkkinen, Frentzen e todo um pelotão encostasse nos dois.

A esperança de Villeneuve era que outros pilotos atacassem Schumacher, mas Frentzen não conseguia ultrapassar Häkkinen para depois partir para cima de Schumacher. A corrida ficou assim até a primeira rodada de paradas nos boxes. Schumacher parou uma volta antes de Villeneuve e quando rasgava no final da reta dos boxes, Villeneuve voltou à pista de forma mais vertical possível, claramente jogando o seu Williams em cima da Ferrari de Schumacher.

O alemão não recuou e deu uma forte guinada para a direita, tomando a posição de Villeneuve. Como esperado, a Ferrari mandou o coelho Irvine tirar o pé para Schumacher assumir a ponta e vencer.

Villeneuve sentiu o golpe tático da Ferrari e perdeu ritmo durante a corrida. Acabaria apenas em quinto, superado por Häkkinen e Frentzen. Este último, até superou Irvine e tentou caçar Schumacher, mas não conseguiu tomar de seu rival alemão a vitória. Schumacher reassumiu a ponta do campeonato faltando uma corrida para o fim. A diferença era de apenas um ponto entre Schumacher e Villeneuve, que como esperado, acabou desclassificado da corrida.

Duas semanas depois, a F1 chegava a Jerez num clima tenso e pesado similar ao de Suzuka em 1989, em que todos poderiam imaginar de que algo poderia acontecer. A tensão subiu ainda mais nos treinos livres.

No começo do ano, Villeneuve e Irvine podiam ser vistos várias vezes conversando no paddock, mas o canadense não perdoou a forma como Irvine se comportou em Suzuka, criticando-o bastante antes da corrida em Jerez. Durante um dos treinos livres, ambos se encontraram na pista, e a ocorrência não foi nada amistosa. Os dois quase se esbarraram de forma intencional. Quando chegaram aos seus boxes, Villeneuve saiu do seu carro direto para o da Ferrari, sendo contido por Jean Todt.

Se os dois rebeldes Villeneuve e Irvine não se bicavam, o mesmo podia se dizer dos alemães Schumacher e Frentzen. Além de rivais dentro das pistas nas categorias de base alemãs, eles também disputaram o coração bela Corinna fora das pistas e Schumacher ganhou a parada. Era uma guerra aberta entre os quatro pilotos de Williams e Ferrari. Num circuito de difícil ultrapassagem, a classificação seria essencial.

E em meio a toda essa tensão, ficou registrado para a história um número: 1 minuto, 21 segundos, 72 milésimos. Esse tempo para sempre será lembrado pelos fãs do automobilismo e da F1. O primeiro a chegar nessa marca foi Villeneuve, que assim ficava com a pole provisória. Faltando dez minutos para o fim do treino, foi a vez de Schumacher marcar exatamente esse tempo. E então Frentzen também cravou a mesmíssima marca.

httpv://youtu.be/KVpi5IhzBDY

Incrível! Não apenas os dois candidatos ao título tinham marcado 1:21.072, como um terceiro piloto tinha empatado! Em 1997, os três primeiros não iriam posar para as câmeras, mas havia sorrisos de cada lado, mesmo com toda a tensão reinante.

Se em Suzuka, Schumacher teve o apoio de Irvine, em Jerez o irlandês foi discreto na classificação (7º) e desta vez, era Villeneuve que estava cercado de aliados, com Frentzen em terceiro e seu antigo companheiro de equipe (e rival de Schumacher), Damon Hill em ótimo quarto lugar com a Arrows. Detalhe: menos de um décimo atrás.

No dia da corrida final, 26 de outubro de 1997, Villeneuve teria mais uma luta pela frente. Ele não acordou bem, estava debilitado e com febre, condição pouco favorável para enfrentar um rival do quilate de Schumacher numa luta mano a mano. Afinal, como se não bastasse a velocidade do rival, o canadense ainda teria que se preocupar com a folha corrida do alemão.

Três anos antes, Michael não teve muito pudor em jogar seu carro em cima de Damon Hill em Adelaide para conquistar seu primeiro título. Em vantagem no campeonato, Schumacher poderia usar do mesmo expediente, ainda mais depois de Villeneuve ter jogado pesado em Suzuka na reta dos boxes. Havia a sensação de dèjá vu no ar.

A largada seria uma prova do que viria pela frente. Villeneuve não larga bem, se atrapalha com Frentzen e Schumacher toma a ponta. Sem muito o que fazer, o canadense abre caminho para que o companheiro fosse o primeiro a atacar Schumacher. Seria ele a fazer o serviço sujo para a Williams?

A dupla da McLaren, com Coulthard à frente, assumiu o quarto e quinto lugar e de forma tranquila, se manteve atrás de Villeneuve. E não seria por acaso. Frentzen ficava próximo de Schumacher, mas em nenhum momento esboçou alguma ultrapassagem, ficando claro que Villeneuve estava perdendo tempo esperando alguma atitude do companheiro de equipe.

Na volta 7 acontece a troca de posições entre os pilotos da Williams. Villeneuve perdeu 1s para Schumacher nesse lance. Logo, porém, os dois líderes estavam bem próximos, numa corrida de tirar o fôlego, mas sem nenhum grande lance de emoção. Estavam se estudando, como dois grandes lutadores de boxe nos primeiros rounds de uma luta.

Se hoje a Williams bate recorde de pit-stops, nos anos 1990 chegava a ser folclórico a forma como a Williams se atrapalhava nas paradas dos seus pilotos, o contrário do que acontecia com a Ferrari. Em Jerez, porém, a Williams trabalhou de forma exemplar, executando pit-stops mais rápidos do que a Ferrari e deixando Villeneuve ainda mais próximo de Schumacher. Quando ambos voltaram à pista, estavam atrás de Frentzen, que estava para parar. O alemão segurou seu compatriota, fazendo com que Villeneuve indicasse claramente onde tentaria a ultrapassagem: no final da reta oposta, na curva Dry Sack.

Com a chegada dos retardatários, a presença do diretor ferrarista Jean Todt nas equipes rivais era constante. O francês pedia para que aliviassem com o alemão. E sugeria que não fizessem o mesmo com Villeneuve.

O inexpressivo argentino Norberto Fontana estava guiando pela Sauber (com motor Ferrari) naquele dia e estendeu o tapete para Schumacher. Quando chegou a vez de Villeneuve, o argentino segurou o piloto da Williams por algumas curvas, fazendo o canadense perder tempo. Fontana diria, anos depois, que começou a corrida com a instrução de segurar Villeneuve, quando se encontrassem na pista, algo que ninguém havia notado na época, pensando ser Fontana apenas um retardatário ligeiramente atrapalhado.

A segunda rodada de paradas aconteceu sem modificações nas posições, e as coisas teriam que ser resolvidas na pista. Sem táticas, sem joguinhos. A câmera onboard da Williams número 3 mostrava uma caçada espetacular. Para Jacques, era passar; para Michael, segurar. Antes de fazer seu ataque pela ponta, Villeneuve ensaiou de forma bastante discreta um mergulho na Dry Sack, e logo recolheu.

Na volta seguinte, a 48, Villeneuve joga seu carro com tudo por dentro e de forma repentina naquele trecho, pegando Schumacher totalmente de surpresa. O lance que definira um dos melhores campeonatos da Fórmula 1 viria na forma de uma tentativa de ultrapassagem ousada, e de uma tentativa de defesa polêmica.

O alemão demorou alguns décimos de segundo para reagir ao lance e o fez da pior forma possível: jogando seu carro em cima de Villeneuve. O movimento de mãos de Schumacher era nítido e flagrante. Mas ao contrário de 1994, o alemão não foi eficaz na sua tentativa de garantir o título debaixo de pancada. Sua roda dianteira direita bateu com força na Williams de Villeneuve, mas atingiu apenas a lateral, sem tocar nas suspensões e sem danificar o radiador. O choque causou danos apenas moderados na Williams, enquanto a barra de direção da Ferrari, que seguia em direção à brita, quebrou-se.

httpv://youtu.be/jJJZBgNK7FA

Era fim da linha para Schumacher. Mas o carro de Villeneuve resistiria? O canadense fez as 22 voltas finais com um ritmo bem irregular, dando vários sustos para quem torcia por ele e tratava-o como o mocinho da história. O ritmo estranho, entretanto, era proposital, pois a Williams precisava pagar uma dívida.

Antes da corrida, as britânicas Williams e McLaren acertaram um pacto entre seus pilotos (que não sabiam do acordo), juntando forças contra a Ferrari. Se Villeneuve estivesse com o título garantido, a McLaren, que estava disposta a ajudar durante a prova segurando Schumacher se necessário, ganharia a corrida.

Para Ron Dennis, porém, não bastava a vitória, esta tinha que acontecer com o piloto que ele queria. Mika Häkkinen, depois de um começo de temporada difícil, finalmente mostrou sua habitual velocidade na segunda metade, só que com muitos azares com quebras de equipamento. Ele estava merecendo finalmente vencer na Fórmula 1.

Ron Dennis tinha uma clara preferência pelo finlandês. Coulthard vinha em segundo, com Häkkinen logo atrás. Faltando dez voltas, com Villeneuve tirando o pé, Dennis mandou Coulthard deixar Hakkinen passar. O escocês se fez de desentendido e respondia que não estava escutando o seu rádio.

Foi preciso uma ameaça um pouco mais enérgica para que Coulthard deixasse o colega passar. A frase exata para o escocês foi “se não deixar Mika passar, você está demitido, ok?”. Na derradeira volta, Villeneuve deixou a dupla da McLaren passar. Na reta de chegada, o canadense quase perde a terceira posição para Gerhard Berger e sua Benetton, que passou Irvine na abertura da volta e chegou colado, em quarto, em sua última corrida na F1.

Häkkinen se juntava ao rol de vencedores da categoria em seu 96º GP. E com um terceiro lugar, Villeneuve se sagrava campeão mundial de F1. Tornou-se imortal a imagem dos dois pilotos da McLaren carregando Villeneuve nos ombros no pódio.

httpv://youtu.be/lMhxHoPyWjI

Na pista, a luta havia acabado. Mas a temporada ainda não havia chegado ao fim. O mundo inteiro condenou a atitude de Schumacher, que acabaria tendo o seu vice-campeonato cassado, mas mantendo todos os seus números (pontos, poles, vitórias) que conquistou em 1997. Ou seja, o alemão praticamente não foi punido, mas sua carreira extremamente vitoriosa para sempre foi, assim como em 1994, marcada por mais um episódio de vigarice.

Quando foi trazido dos Estados Unidos pela Williams, Jacques Villeneuve, então campeão da Indy, tinha a missão de ser o ‘anti-Schumacher’ na F1, além de fazer com que a Williams parasse de perder para o alemão, mesmo tendo um carro melhor, como acontecera nos tempos de Damon Hill. Jacques ainda tinha como predicado carregar o sobrenome e a aura do seu pai, o mítico Gilles Villeneuve.

Quinze anos depois de sua morte, Jacques Villeneuve conquistava o título que todos queriam que seu pai ganhasse. Em duas temporadas na F1, Villeneuve tinha um vice e um campeonato no bolso e parecia que ele seria o piloto a desafiar um abatido e arranhado Schumacher nos próximos anos pelo estrelato da F1.

O que ninguém sabia era que ao Villeneuve deixar a McLaren vencer em Jerez, desperdiçava a sua última chance de ganhar na F1. O round final de 1997 acabou tendo um peso simbólico muito grande, já que foi uma espécie de passagem de bastão.

O pai dos ganhadores carros da Williams da primeira metade da década, Adryan Newey, se transferiu para a McLaren ainda em 1997 e, juntando a mudança de regulamento com a saída da Renault, a Williams nunca mais seria campeã na F1. Villeneuve não pôde defender seu título e nunca mais seria o brilhante piloto dos seus primeiros anos na F1.

A mudança de regulamento na F1, tornando os carros mais estreitos e trazendo os esquecíveis pneus frisados, estragou um pouco a F1. A temporada 1998 começou com um domínio avassalador da McLaren, a pondo de Ron Dennis apostar de que faria uma temporada ainda mais perfeita do que dez anos antes.

Mas a temporada seria salva justamente pelo crucificado Schumacher, que soube, mais uma vez, tirar no braço a diferença técnica que sua Ferrari tinha para a McLaren de Häkkinen, que demorou muito a vencer, mas conquistou dois títulos de forma incontestável.

Os números mostram o quanto 1997 foi uma temporada inesquecível. Seis pilotos diferentes (Villeneuve, Schumacher, Frentzen, Coulthard, Häkkinen e Berger) de quatro equipes (Williams, Ferrari, Benetton e McLaren) venceram pelos menos uma corrida naquele ano.

Quinze pilotos, de oito times distintos (juntam-se aos vencedores Jordan, Sauber, Arrows e Stewart), subiram ao pódio nas dezessete corridas de 1997. A Tyrrell ainda seria o nono time a pontuar, mesmo usando velhos motores V8 e apenas a simpática Minardi acabaria o ano não pontuando, sempre lembrando que na época a pontuação ia só até o sexto lugar. Como grande curiosidade, os rivais pelo título Villeneuve e Schumacher, que lutaram por todo o ano, acabariam a temporada sem dividir o pódio em uma corrida sequer, algo inédito e certamente muito difícil de repetir.

Além das várias histórias de superação que aconteceram durante a temporada, protagonizadas por pilotos e equipes, a temporada de 1997 ficou marcada por um final inesquecível e polêmico, além de uma classificação final em que três pilotos marcaram exatamente o mesmo tempo: 1:21.072.

Abraços,
JC Viana.

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

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