Na primeira vez que viajou no tempo e modificou o próprio destino, Marty McFly se deu bem. Com sua interferência no passado, transformou o pai fracassado e a mãe alcoólatra em um casal bem sucedido e feliz. Na segunda vez, a aventura deu uma confusão dos diabos: viajando para o futuro, Marty permitiu que se criasse um “passado alternativo”, no qual a família McFly se estrepava inteira na mão de Biff, ovilão da história.
Esse poderia ser um resumo dos dois primeiros filmes da trilogia “De volta para o futuro”, estrelado por Michael J. Fox, série-ícone dos adolescentes dos anos 80, diversão inofensiva e garantida para todas as idades. E por que lembrar esse filme em um site dedicado à Fórmula 1?
Não, não é por causa do De Lorean, o carro guindado à condição de máquina do tempo graças ao engenho e à arte do carismático Doc Brown, personagem de Christopher Lloyd. O De Lorean é freqüentemente associado à Fórmula 1 porque o chassi desse modelo foi criado por Colin Chapman, o mítico fundador da Lotus, morto em 1982, em condições que muita gente considera suspeitas até hoje (estaria ele vivo em uma fazenda do Mato Grosso?). Não, isso é outra história.
A associação do filme com a categoria pareceu-me um bom mote depois que li a coluna do nosso Luis Fernando Ramos, o Ico, muito bem fundamentada e apoiada na tese de que o carro de Ayrton Senna quebraria “se” o GP de Mônaco de 1984 não tivesse sido interrompido na 31ª volta. Esse monossílabo de duas letras parece ter sempre lugar cativo nas discussões esportivas.
Ah, como seria bom poder entrar naquele De Lorean do amalucado Doc Brown e mudar os resultados que não nos foram favoráveis. Eu mesma teria muito trabalho a fazer a bordo daquela engenhoca, e começaria programando a máquina para o dia 5 de julho de 1982, iria até o estádio Sarriá, em Barcelona, e daria um jeito de tirar aquele maledetto Paolo Rossi de campo, ou pelo menos o Toninho Cerezo, ou pelo menos pediria ao Telê, “pelo amor de Deus”, para mandar o time segurar a bola no campo de ataque depois do gol de empate do Falcão.
Alguns seguidores da Fórmula 1 gostam de fazer o que chamo de futurologia do passado, tentando adivinhar o que teria acontecido “se” tal coisa tivesse ou não acontecido, e nesse campo fértil da imaginação, nunca faltam especulações sobre o que teria acontecido “se” Senna não tivesse morrido.
Na história da Fórmula 1 “moderna”, há vários episódios em que um lance, uma curva, um acidente, uma decisão de momento acabaram interferindo no destino do campeonato e, vejam vocês mesmos, na maioria das vezes o “se” ajudou muito mais os pilotos brasileiros ou pelo menos trabalhou algumas vezes contra dois grandes desafetos da maior parte da torcida do Brasil – sendo mais clara, Alain Prost e Michael Schumacher.
— GP da Holanda de 1981: na 18ª das 70 voltas, Carlos Reutemann, que vinha em quinto, bate em Jacques Laffite ao tentar passar para quarto. Supondo que ambos tivessem prosseguido até o final nessas posições, os dois pontos do quinto lugar teriam dado a Reutemann o título no final do ano (terminaria um ponto à frente de Piquet, e não atrás).
— GP da Áustria, 1982: Alain Prost (Renault) abandona a cinco voltas do final porquebra do turbo, quando liderava. Keke Rosberg termina a corrida em segundo, apenas 0s1 atrás do vencedor Elio de Angelis. Esse resultado acaba decidindo o campeonato: Rosberg foi campeão com 44 pontos e Prost foi o quarto com 34. Se tivesse vencido na Áustria, Prost teria marcado 43 pontos na temporada; Rosberg, que terminaria em terceiro, perderia dois pontos e cairia para 42.
— GP de Mônaco de 1984: corrida interrompida na 31ª volta, com Prost em primeiro, Senna em segundo e Bellof em terceiro. Como não foram percorridos 75% da distância prevista, a prova vale apenas metade dos pontos e Prost marca 4,5, e não os nove da vitória. No final do ano, perde o título para Niki Lauda por 0,5 ponto. “Se” a corrida de Môanco tivesse prosseguido; “se” Senna e Bellof ultrapassassem Prost e “se” os três terminassem nessa ordem, Prost teria marcado os 6 pontos do segundo lugar, já que a Tyrrell, equipe de Bellof, foi posteriormente desclassificada da temporada e perdeu todos os pontos.
— GP de Portugal de 1986: Piquet e Senna disputam o segundo lugar até o primeiro rodar, a poucas voltas do final. Piquet cai para quarto (perde uma posição para Prost) e termina em terceiro devido ao abandono de Senna na última volta, por falta de gasolina. Se Piquet tivesse terminado essa corrida em segundo, à frente de Prost, teria sido campeão da temporada.
— GP da Hungria de 1987: Mansell lidera até faltarem sete voltas para o final, quando cai a porca da roda traseira direita. Piquet vence. No final do ano, a diferença de pontos entre Piquet e Mansell foi de 12 pontos – que seriam descontados se Mansell tivesse marcado os 9 pontos da vitória da Hungria, mais os três que Piquet marcaria a menos se chegasse em segundo. Com Piquet e Mansell empatados nos pontos, o inglês ficaria com o título por ter mais vitórias.
— GP da Hungria de 1997: Damon Hill perde a vitória nas últimas voltas para Jacques Villeneuve, devido a uma pane na caixa de câmbio, quando tinha mais de 30 segundo de vantagem. Villeneuve chegou à última corrida do ano com 1 ponto a menos que Schumacher, e todos lembram o que aconteceu (para quem já esqueceu, Schumacher deu uma fechada acintosa em Villeneuve e acabou fora da corrida). Se Hill não tivesse perdido a corrida da Hungria, a vantagem de Schumacher seria de 5 pontos, e o alemão não precisaria tentar tirar o adversário da corrida ao ser ultrapassado: mesmo que Villeneuve ganhasse, ele poderia terminar em segundo e ficaria com o título por 1 ponto.
(Com um agradecimento especial à enciclopédia Pandini que ajudou a reconstituir a saga do “se”.)
Todos esses pilotos citados que perderam corridas e títulos por detalhes – os que estão vivos, naturalmente – adorariam entrar no De Lorean de Doc Brown e dar um jeito de modificar os maus resultados, claro. Reutemann teria conseguido seu título, Piquet seria tetra, e não tricampeão, Prost seria penta (ou hexa), Mansell seria bi e Schumacher… Bem, Schumacher já seria octa, mas acho que ele seria, de todos, o que menos bola daria para o De Lorean.
A tentação de viajar no tempo e modificar o próprio destino é, talvez, uma das mais antigas e recorrentes fantasias do ser humano. Você mesmo já deve ter pensado como seria diferente sua vida “se” tivesse escolhido outra profissão, ou “se” pudesse modificar algo que disse ou que fez, ou “se” tivesse conhecido antes certa pessoa. Você pode achar que estou influenciada pela época, é tempo de festas, afinal, e é isso mesmo: fico com as palavras finais do Doc Brown, no “De volta para o futuro 3”, quando ele ensina a Marty McFly a mais singela das lições: “Tudo está por ser feito, você fará sua vida, só depende de você”.
Nesta minha última coluna de 2004, desejo a todos os leitores do GPtotal um ótimo 2005, que todos tenhamos cada vez menos vontade de entrar no De Lorean para consertar alguma coisa que não deu muito certo.
Alessandra Alves |