Quem gostava de automobilismo no início da década de 1930 não tinha dúvida: o circuito mais difícil das grandes provas era Nürburgring, depois da inacreditável Targa Florio.
22.810 km no meio do que se tornou conhecido como Inferno Verde.
Em 1932 era nessa pista que iria ocorrer o Grand Prix da Alemanha, a terceira das grandes provas em circuito fechado e palco de inúmeras exibições memoráveis.
Naqueles tempos pioneiros o regulamento técnico era compreensivelmente aberto, não prevendo limites em relação ao conceito do carro, peso nem combustível, o que em tese favorecia a criatividade.
Os concorrentes inscritos estavam divididos em três grupos.
O Grupo I compreendia os carros de corrida mais potentes da Europa, com motores sem limite de capacidade cúbica. Eles deveriam cumprir 25 voltas, o equivalente a 570,25 km.
O Grupo II abrangia carros com motores de 800cc a 1500cc e deveriam cumprir 23 voltas. O Grupo III tinha motores de 350cc a 800cc e os carros teriam que completar 19 voltas.
Contrariando o que determinava o regulamento, ao invés de observar o limite de 5 horas de duração o Automóvel Clube da Alemanha adotou o critério de número de voltas.
O vencedor de cada categoria receberia um anel (ring em alemão) de ouro, similar ao que conhecemos entregue aos vencedores das 500 milhas de Indianapolis. Cada piloto que largasse receberia um taça comemorativa.
Embora a economia alemã ainda estivesse fraca devido às colossais dívidas da 1a. Guerra, o valor total dos prêmios a serem distribuídos alcançava 30.000 Reichsmark e devia ser uma soma atraente porque vieram concorrentes da França, Hungria, Italia, Luxemburgo, Suíça e Tcheco-Eslováquia, além dos locais.
A Alfa Romeo se faria representar por Tazio Nuvolari, Mario Umberto Borzacchini e, novamente, Rudolf Caracciola, todos com a Tipo B/P3, 2,6L 8 cilindros em linha.
A Bugatti inscreveu Louis Chiron e Achille Varzi, pilotando as T51 de 2,3L, 8 em linha. Dreyfus e Lehoux se inscreveram como independentes, também com T51. Nenhuma T54, de 5.0L.
Evidência de que Ettore estava revendo as falhas desse projeto ou pensando em outro.
A Maserati inscreveu uma 8C de 3L, 8 em linha para Amedeo Ruggeri. O próprio Ernesto Maserati se encarregou de pilotar uma 1,1L 4 cilindros.
A Mercedes tinha sido obrigada a se ausentar das competições nesse ano, reflexo da conjuntura adversa. Hans Stuck deu algumas voltas com uma SSK mas desistiu, percebendo que teria grande chance de passar vergonha. Mas havia a equipe alemã PiLeSi, com Paul Pietsch pilotando uma Bugatti T35B 2,3L, 8 em linha, e Hans Lewy uma T51.
Os demais países se fizeram representar no Grupo II, motores até 1,5L.
Earl Howe inscreveu uma Delage 15S 1,5L 8 em linha, Archibald Fane sua Frazer-Nash verde 1,5L 4 em linha e Eric Siday outra, vermelha, ambas com compressor.
O suíço Henry Täuber inscreveu uma Alfa 6C 1,5L 6 em linha, o luxemburguês Joseph Zigrand uma Bugatti T37A 1,5L 4 em linha.
A França tinha Madame Anne-Cecile Rose-Itier com uma Bugatti T37A, José Scaron com um Amilcar MC0 1,3L 6 em linha e Pierre Félix com um FG Lombard de 1,1L 4 em linha.
Hungria: László Hartmann, com Bugatti T37A e o Conde Stefan Gyulai com Alfa 6C.
Os alemães Willi Seibel, Carl Wagner e Hans Simons pilotariam T37As, Ernst Günther Burggaller uma T51, reforçando assim a presença da Bugatti.
O Grupo III foi composto por 7 carros, motores até 0,8L. O alemão Gerhard Macher inscreveu um DKW extraordinário, de 2 cilindros em linha, 0,78L. Seu compatriota Walter Bäumer um Austin 0.75L 4 em linha, Fritz Hedderich e Bobby Kohlrausch BMWs Wartbugs, que tinham o Austin Seven como base, 0,75L 4 em linha. O Marques de Belleroche outro Austin, mas de 6 cilindros em linha, também 0,75L.
O britânico Hugh Hamilton e o tcheco Hugo Urban Emmerich inscreveram MG Midget Tipo C, 0,75L 4 em linha.
O circo chegou a Nürburgring duas semanas antes, usando como base a… digamos… cidade… de Adenau (hoje deve ter uns 3.000 habitantes).
Na segunda-feira da semana da corrida começavam as atividades de pista e os treinos se iniciavam no dia seguinte, indo até o sábado, das 10:00 às 16:00.
Ao longo dos treinos, com temperatura alta, as equipes calcularam que os pneus durariam entre sete e nove voltas, portanto poderiam ser um fator determinante na corrida.
Earl Howe e José Scaron se acidentaram mas sem grandes consequências, nada que os impedisse de alinhar no domingo.
Invariavelmente dando o máximo de si Nuvolari logo bateu o recorde da pista nos treinos, com média de 123km/h, 11’02″.
Com o evidente fracasso do modelo com motor de 5,0L da Bugatti e a momentânea dificuldade da Maserati, após a morte do líder Alfiero, estava claro que se não ocorresse nada de extraordinário o vencedor estaria a bordo de uma dominante Alfa.
E aí começam as especulações nos boxes: que piloto sairá vencedor?
Borzacchini nunca tinha corrido nessa pista, apesar de toda sua experiência.
Caracciola, ao contrário, já tinha se sagrado vencedor 3 vezes, conduzindo Mercedes.
Restava Tazio, sempre capaz de desequilibrar o jogo.
Mudança nas condições meteorológicas no domingo.
Nublado, frio, com ventos. Parece que os pneus iriam durar mais.
Público estimado em mais de 100.000 pessoas.
Na última hora Achille foi proibido de correr pelo médico, porque o ferimento que teve no olho durante o GP da França, duas semanas antes, ainda não estava curado. Uma severa perda para a equipe de Molsheim.
Os organizadores colocaram os carros mais potentes na frente, para não serem atrapalhados no início. O Grupo III fechava o grid.
Assim a primeira fila foi composta por Nuvolari, Lehoux e Caracciola. A segunda por Lewy e Borzacchini. A terceira por Pietsch, Ruggeri e Chiron. A quinta por um solitário Dreyfus, seguido por Seibel, Fane e Howe, depois Siday e Simons, depois Wagner, Hartmann e Täuber, E. Maserati e Rose-Itier, Zigrand, Scaron e Gyulai, Burgaller e Félix, Belleroche, Urban-Emmerich e Macher, Hamilton e Bäumer, Kohlrausch e Hedderich.
A largada foi dada às 10:00.
Imediatamente Rudolf assumiu a ponta, seguido por Tazio, Borzacchini, Chiron, Dreyfus, Lehoux, Täuber com Howe no seu encalço. Lewy começou a se sentir mal e foi aos boxes, a Bugatti de Piestch também, vazamento no radiador. Como eram da mesma equipe, um carro ficou sem piloto e um piloto sem carro, Pietsch assumiu o de Lewy.
Ruggeri vem para os boxes na segunda volta para trocar uma roda traseira mas os mecânicos descobrem problemas insanáveis no motor e ele é obrigado a abandonar.
Chiron tinha passado por Borzacchini mas logo também seu motor começa a falhar. Pára nos boxes, trocam velas, examinam cabos e descobrem que o problema é o distribuidor.
Caratsch segue tranquilo na liderança, a ordem das Alfa não se altera nas 3 posições da frente.
Lehoux também abandona, problemas no eixo traseiro.
Dreyfus consegue andar próximo de Mario Umberto mas sem a menor possibilidade de ameaçar o italiano.
Com o problema no distribuidor resolvido Chiron volta mas… a sorte não estava mesmo com os pilotos principais da Bugatti. Uma mangueira se rompe e um esguicho de óleo quente vem atingir um de seus olhos. Visita obrigatória ao depto. médico.
Após 5 voltas Caracciola lidera com quase um minuto de vantagem sobre o mantuano. A seguir vem Borzacchini, Dreyfus e Pietsch. Este é quem vinha merecendo o título de Piloto do Dia, se houvesse na época, por executar com brilhantismo uma escalada do nono ao quinto lugar. Mas… na volta seguinte exagerou na Südschleife, entrou rápido demais, derrapou e capotou, virando 3 vezes no ar. Nürburgring não perdoa. Teve sorte de sair com meros arranhões e hematomas.
Após primeiros socorros no olho avariado Chiron retorna à pista.
Não era mesmo o dia da equipe oficial Bugatti: duas voltas depois o eixo traseiro quebra.
As atenções então se voltam para questões internas da Alfa.
Rudolf diminui o ritmo, Tazio não.
Na volta 8 o mantuano vira em 11’10”. Na seguinte abaixa para 10’49”4, com a impressionante média de 124,6 km/h, melhor volta da prova.
Na volta 10 um tranquilo Caratsch toma um susto ao ver outra Alfa passar por ele.
Mas logo em seguida Nuvolari faz seu pitstop, para combustível, água, óleo e pneus, operação completada em 2’40”.
Parece pouco tempo? Tazio achou que não. Deduziu que Aldo Giovannini, o chefe da equipe, instruiu os mecânicos para agirem com estudada lentidão, de modo a não ameaçar a vitória de Caracciola diante de seu público.
Após 10 voltas a ordem no Grupo I era Tazio, Rudolf 4 segundos atrás, Borzacchini a pouco menos de 3 minutos, seguido por Dreyfus a mais de 4 minutos do líder.
Na volta seguinte era a vez de Caratsch parar no boxe. Enquanto os mecânicos cuidavam do carro ele trocou os goggles, tomou uma água e conversou calmamente com Giovannini, que sinalizou que ele era o favorito para vencer. Tudo isso levou 1m35s.
A parada de Borzacchini demorou 1m15s.
Nuvolari precisou fazer uma parada extra de 20s para verificar o nível do óleo e assim Caracciola reassumiu a liderança, livrando pouco mais de 1 minuto de vantagem.
Essa diferença e a ordem continuaram inalteradas até a volta 20, mas nas 5 voltas finais Tazio reduziu a diferença para a metade.
Como estava longe de ser um pato manco Rudolf também aumentou o ritmo e a prova acabou cerca de 13 minutos antes de completar 5 horas. Como ninguém reclamou, porque não teria benefício algum tal a supremacia da montadora lombarda, o resultado foi validado.
Glória para a Alfa na Alemanha, desta vez com o requinte de ter um piloto alemão como vencedor.
Sinal indiscutível de que seus carros poderiam vencer mesmo não tendo Tazio ao volante.
A equipe italiana se sagrava campeã européia e o mantuano campeão europeu, conforme as regras vigentes. Se fosse feita uma pesquisa sobre valor de marca na época Alfa Romeo deveria ocupar o primeiro posto, ao menos na Europa.
No Grupo II a corrida foi bem menos previsível.
A Delage de Earl Howe era muito rápida nas retas mas Henry Täuber era um piloto talentoso e explorando a maneabilidade de sua Alfa ultrapassou o britânico nos trechos sinuosos antes de completar a primeira volta.
O conde Gyulai assumiu a terceira posição.
Tentando acompanhar o suíço na sexta volta Howe tem problemas de ignição e falta de pressão na bomba de gasolina, e com isso perde a posição para o conde.
Volta, mas com a bomba inoperante é obrigado a manter a pressão com a mão.
Täuber mantém a liderança sem ameaças, uma vez que Gyulai tem que abandonar na volta 15 com problemas de motor. Hartmann assume o segundo posto, mas 6 minutos atrás.
Ruggeri, que assumiu o volante da Maserati de Ernesto, vem em terceiro, mas muito atrasado.
Burgaller teve problemas com as velas na sua Bugatti T51 logo no início e para piorar o eixo traseiro quebra pouco depois.
As Frazer Nash também abandonam, a de Fane com a transmissão quebrada e a de Siday com vazamento no tanque de combustível. Felix também fica pelo caminho.
Então mais uma vitória Alfa na categoria imediatamente abaixo à dos big guns: Täuber, Hartmann, Ruggeri, um valente Howe em quarto, Wagner, Ziegrand, Scaron, Siebel, Simons e Madame Rose-Itier era a ordem sob a bandeira quadriculada.
No Grupo III apenas 2 dos 7 carros que largaram completaram a prova.
Hamilton liderou desde a segunda volta com seu MG Midget, sendo seguido por Kohlrausch com seu BMW Wartburg, que tinha largado na frente.
No Grupo II cinco dos 10 concorrentes abandonaram e no I cinco dos 9.
5 eixos quebrados, 5 motores idem, no total.
O alto índice de quebras sinaliza o grau de exigência do circuito.
Mais um motivo de orgulho para a Alfa, tendo dominado impecavelmente o Inferno Verde em todos os quesitos, e uma Bugatti menor, pilotada por Simons, no Grupo II.
Até a próxima
Carlos Chiesa
1 Comments
Chiesa,
mais uma coluna que é um deleite … na verdade pensa bem … naqueles idos tempos de automobilismo raiz, o jogo e os interesses das equipes já prevaleciam … seja por qual fosse a razão … afinal quem bancava os carros eram as equipes … elas tinham esse direito, e têm até hoje … se fosse dono de uma equipe não agiria de forma diferente … salve Lance Stroll né?
Fernando Marques
Niterói RJ