O Edu, que às vezes maneja as palavras como Michelangelo conduzia um cinzel, resumiu a corrida de Rubens Barrichello em Ímola com o adjetivo “latrinária”. Manifestações similares foram observadas na maioria esmagadora da mídia e do público brasileiro que acompanha a Fórmula 1. Para piorar, o brasileiro justificou seu mau desempenho com o fato de ter ficado preso ao tráfego, como se “ultrapassagem” fosse um substantivo em papiamento (para quem não sabe, o idioma falado na região das Antilhas Holandesas: GPtotal também é cultura), não em português.
Brasileiros criticando o piloto Barrichello é algo tão tradicional na categoria quanto o fato dos carros terem quatro rodas. O volume só aumenta depois de desempenhos pífios como este. Não é à toa que recebemos na última semana perguntas similares de alguns leitores: na Áustria, Gerhard Berger sofria o mesmo tipo de pressão quando corria com Ayrton Senna?
Sim, recebia. E recebia pelo mesmo motivo que Rubens: sempre uma desculpa após um desempenho abaixo do esperado. Por isso, os torcedores apelidaram Berger de “hätte, wäre”, o que numa tradução aproximada seria “teria (ganho), não fosse”. Um pouco de auto-crítica com certeza faria bem à imagem de ambos.
É curioso observar diversos paralelos entre a trajetória destes dois na Fórmula 1. O mais óbvio e significante é o fato de terem surgido como lógicos sucessores de dois dos maiores pilotos da história. Barrichello conseguiu seu primeiro pódio na corrida anterior à morte de Ayrton Senna. Berger venceu sua primeira prova no ano seguinte à aposentadoria (definitiva) de Niki Lauda.
Os dois também sofreram o mais grave acidente de suas carreiras em Ímola: Berger escapou milagrosamente vivo quando sua Ferrari virou uma bola de fogo após uma batida na Tamburello, em 1989; Barrichello iniciou a bizarra seqüência de acidentes do odioso fim-de-semana de 1994. Hoje, o austríaco admite: “Nunca mais fui bom como era antes, em todos os quesitos passou a faltar algo do jovem Berger.” Que eu saiba, Barrichello nunca tocou no assunto, mas sou da opinião de que o acidente na Variante Baixa também o tornou mais lento.
Mas há uma reviravolta nesta história. Hoje em dia, sete anos após pendurar o capacete, Gerhard Berger é tratado como um semi-deus das pistas e, acreditem, desfruta de tanto prestígio e popularidade em sua terra natal como Jochen Rindt e Niki Lauda. É figura requisitada nos grandes eventos sociais e é estrela de diversas campanhas comerciais. Mesmo sem título mundial, compõe uma espécie de “santíssima trindade” do automobilismo austríaco.
Duvido que, no Brasil, Rubens Barrichello atinja o mesmo status que Emerson, Piquet e Senna. E me arrisco a discorrer sobre os três motivos de minha crença. O primeiro deles: Berger jamais se colocou como sucessor de Lauda, mesmo no início da carreira. Seu jeito informal, sua atitude descontraída com o automobilismo jamais permitiu comparações com o profissionalismo absoluto e as estratégias metódicas do tricampeão austríaco.
O brasileiro, ao contrário, aceitou passivamente o fardo que a nação lhe colocou sobre os ombros após a tragédia de Ímola. Jovem, com um carro médio, acreditou e fez acreditar com algumas declarações que daria continuidade a uma tradição vencedora de muitos anos. Fez a bobagem de fundir a pintura de seu capacete com o de Senna no GP do Brasil de 1995, criando uma inevitável metáfora de que estava lá para substituí-lo. Com as derrotas, começaram as desculpas do tipo “teria ganho, não fosse…” E a paciência do povo brasileiro nunca foi das maiores.
O segundo motivo é de ordem pessoal. Gerhard Berger possui um carisma extraordinário. Foi o último piloto da Ferrari a ser contratado após um desejo expresso do Comendador Enzo. Colecionou amizades na Fórmula 1 e jamais falou mal das equipes porque passou. Com seu jeito adolescente, tratava seus companheiros e chefes de equipe de igual para igual (certa vez, numa brincadeira, fechou o registro de ar do cilindro de Ron Dennis quando os dois mergulhavam no Pacífico). Desta forma, conseguiu cumprir o papel de segundo piloto nos seus anos de McLaren sem jamais ver sua posição diminuída ou ridicularizada.
Barrichello, por outro lado, só conseguiu mostrar harmonia total dentro de uma equipe nos seus anos de Stewart. Suas passagens na Jordan e na Ferrari foram marcadas por declarações e ações desastradas que causaram um certo mal-estar. Hoje em dia, parece completamente passivo dentro da equipe de Maranello. E suas eternas desculpas lhe tiraram completamente o crédito que ganhou dentro das pistas com a mídia e o público do mundo todo, do Brasil em especial. Ao final de seu contrato, especula-se sua ida à Stock Car, mas ninguém o vê como diretor-esportivo de alguma grande fábrica, como ocorreu com Berger.
Para encerrar, há uma séria questão cultural. Para um austríaco, o fato de um compatriota seu ser o segundo piloto com mais largadas na Fórmula 1 e ter nas estatísticas um número maior de voltas mais rápidas que Ayrton Senna é o suficiente para endeusá-lo. Para um brasileiro, nada além da vitória é aceito. Vamos fazer um paralelo com o basquete: se o time verde-e-amarelo perder para os craques da NBA por 110 a 80, a imprensa vai dizer que nem ameaçamos os americanos. Mas se os austríacos perderem por este placar, serão tratados como heróis por saírem derrotados por apenas de 30 pontos. Sério!
Os motivos para isto são históricos: o Brasil é um país gigante que surgiu do nada. A Áustria era um reino gigante que encolheu profundamente. Não podemos esquecer também de outro detalhe: em geral, adoramos ser patriotas e encaramos o esporte como uma exibição de nosso nacionalismo. Quando vencemos, o triunfo é de todos (é a “nossa” Seleção, o “nosso” Ayrton Senna). Quando perdemos, o fracassado é o atleta (ninguém nunca escreveu pro GPtotal perguntando sobre o “nosso” Ricardo Rosset, o “nosso” Marco Greco). Na Áustria, escaldada por duas guerras mundiais e onde nacionalismo pode ser confundido com nazismo, os esportistas são vistos apenas como o que são, esportistas. E, se olharmos os currículos de Berger e de Barrichello sob olhos esportivos e despidos de ufanismo, são carreiras que mereceriam respeito. Não fosse a mania irritante de ficar dando desculpas. Hätte, wäre…
Abraço e até a próxima semana!
Luis Fernando Ramos |