Tocando o caos

Adivinhe Quem?
18/02/2025

Acima e ao longo da coluna, imagens dos carros 2025

 

 

Estamos tocando o caos com as mãos nuas no momento. Já aconteceu antes, está acontecendo de novo, poetas – “Tudo desaba; o centro não sustenta…” – e filmes de Hollywood o previram.

O caos ganhou força nas últimas semanas com a posse de Donald Trump, o elefante shitting no picadeiro, na definição de Muniz Sodré. Muitos avisaram que ele e seus seguidores voltariam com intensidade redobrada para uma nova tentativa de tudo demolir, parecida à que se viu nas primeiras décadas do século XX (quando, a exemplo de hoje, havia uma percepção generalizada de que o fim do mundo estava próximo) e que culminou em Hiroshima e Nagasaki.

A avalanche de ideias caóticas só cresce. É uma das táticas que move Trump e aventureiros como ele, “flood the zone with shit”, nas palavras do ideólogo e vigarista Steve Bannon. Seguirá sendo assim enquanto – de novo o poeta – faltar convicção aos melhores, enquanto “os piores estão repletos de uma intensidade apaixonada”.

 

 

Esta avalanche não é estranha a nós, que acompanhamos a Fórmula 1.

O que eram aquelas propostas de Bernie Ecclestone e Max Mosley, de revezamento de pilotos entre equipes durante a temporada ou de molhar artificialmente a pista durante um GP? E nem vou falar de opiniões de Bernie, tantas vezes repetidas, sobre mulheres-pilotos e de admiração a Hitler.

Em algum momento, trocou-se o flood of shit pelo capitalismo desavergonhado, obsceno e corrupto, uma realidade há muitos anos na categoria, começando pela venda por um trocado pela Fia dos direitos comerciais da F1 para Bernie e deste para bancos internacionais, sempre em meio a casos comprovados de suborno. Depois veio o fundo CVC, que repassou a mercadoria em 2016 às mãos da Liberty Media, cujo sócio principal é John Mallone, um típico capitalista americano dos que apoia a demolição pretendida por Trump.

 

 

Fórmula 1 e Trump?

Sim. Há vários pontos de contato. O furor expansionista – está aí o número recorde de GPs e a promessa de que serão ainda mais nos próximos anos – e o desprezo à tradição, com a perda de relevância dos GPs europeus, trocados sem maiores pudores por países exóticos, mas capazes de pagar muito mais pelo direito de integrar o circo.

Há também na Fórmula 1 um movimento de bem visível de repressão a manifestações que não sejam do interesse dos organizadores. Vocês imaginam que Lewis Hamilton e colegas poderiam agora se ajoelhar na pista e erguer o punho, em apoio ao movimento Black Lives Matter, como fizeram no GP da Áustria de 2020? E a Mercedes enviaria hoje ao pódio, como o fez no GP da Estíria 2020, a zimbabuense Stephanie Travers para receber o prêmio em nome da equipe, em demonstração de apoio à maior inclusão na categoria?

Mas há pontos de distanciamento entre o que se vê nos Estados Unidos no momento e na Fórmula 1. Na categoria, há um regulamento muito rígido, técnico, comercial e esportivo, regulando-se até o tipo de palavra que um piloto pode usar no rádio do carro, em oposição a uma disposição manifesta pelo governo americano que chega a ser insana, de desregulamentar tudo.

Também não se renega na Fórmula 1 as teses mais básicas do livre comércio, e nem poderia ser diferente, enquanto nos Estados Unidos há hoje todo um movimento de restrição ao comércio internacional, alguns entendendo ser ele um dos elementos que vulneraria a hegemonia americana.

 

 

O que não se pode negar é que a visão de Mallone e de seus executivos sobre a Fórmula 1 atingiu seus propósitos, ao menos os capitalistas, e isso é tudo que importa a gente como eles.

Em entrevista à AutoSprint no começo do ano, Stefano Domenicali comemora os ganhos de capital da atividade como um todo e das equipes em particular. Malone pagou declarados US$ 4,4 bilhões pela Fórmula 1 em 2016; agora, a categoria vale US$ 23 bilhões.

A valorização beneficiou também as equipes. Vejam, por exemplo, o valor atingido pela Williams. O fundo Dorilton Capital comprou a equipe por declarados 150 milhões de euros em 2021; hoje ela vale cerca de 1,1 bilhão de euros, mesmo tendo conseguido menos de 2,5% dos pontos da McLaren na temporada 2024. E não faz muito tempo que a Honda vendeu sua equipe por uma libra (2009) e a Marussia-Manor simplesmente faliu (2017).

 

 

Como não torço para bancos, pergunto: e a qualidade das corridas?

Mas estamos mesmo preocupados com elas? Será que não superamos a “falta de emoção” dos tempos de Bernie e hoje preferimos a “experiência” de participar no autódromo ou pela TV de todo aquele… O que mesmo a Fórmula 1 proporciona hoje?

Noto o desapego muito maior atualmente pelos aspectos técnicos e históricos da categoria, sobrando interesse por aspectos fofos e superficiais, como a pintura dos carros e capacetes, por exemplo, as presenças “vips” nos boxes, séries e filmes.

 

 

Mas, voltando a Trump e ao caos: o regulamento 2026 – combustível “sustentável”, baterias mais potentes e carbono zero até 2030 – será revisto? Trump odeia carros elétricos e está ferrando com as montadoras americanas que investiram dezenas de bilhões de dólares na inovação. Perguntem à Ford o que acha do “vamos perfurar, baby”, como disse Trump, em declaração de amor ao petróleo, bandeira despregada de quem o apoia – e que é de Lula também, por falar nisso.

E aí? Como é que fica? Voltaremos aos tempos da gasolina deflagrada? Dos motores de doze cilindros?

Para saber a resposta, pergunte ao caos.

Bom final de semana

Edu

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

3 Comments

  1. Rafael Friedrich disse:

    Concordo em número e grau com Fernando Marques. Bom final de semana a todos.

  2. Rubergil Jr disse:

    Sempre é bom ler os textos do Edu, para pensar e refletir.
    A F1 há muito tempo é um paradoxo, já descrito aqui muitas vezes.
    É legal? Sim, claro, mas podia ser mais.
    Mas ainda sim gostamos pela parte esportiva, que como já disse Frank Williams, “acontece no domingo das 14:00 as 16:00 – o resto é business”.

  3. Fernando Marques disse:

    Eduardo Correa,

    vejo tudo isso que você disse na coluna como uma sequela incurável da evolução constante da tecnologia e do “chamado politicamente correto ( nem sempre correto por parte dos governantes e dirigentes) em detrimento do automobilismo raiz … que não precisava e nunca precisou desses regulamentos idiotas para trazer emoções às corridas ,,,
    Infelizmente enquanto houver esse retorno financeiro , a Formula 1 tende a ser assim como é hoje em dia e pelo que vemos no futuro também …
    e enquanto tiver ibope vai … e vai continuar indo … penso que nos dias atuais o saudosismo são pra poucos … e como sou um deles confesso a minha infeliciadade com a atual realidade da Formula 1 e por que não da politica/politicos tbm, onde a cada dia que passa , passo mais batido e votando nulo …
    Graça a Deus temos o GEPETO que não nos permite esquecer da história do automobilismo …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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