TRATAMENTO VIP?

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A semana do Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 é a mais agitada para os jornalistas que trabalham com automobilismo. Uma enxurrada de eventos e o grande destaque dado pelos veículos de mídia asseguram horas e horas de muito trabalho e diversão (somos também, acima de tudo, apaixonados por corridas, embora a paixão deva permanecer isenta na hora da reflexão). Como já está virando tradição, a maratona foi aberta com a coletiva da Bridgestone do Brasil, que sempre traz a presença dos pilotos locais que utilizam a marca.

Foi uma ótima oportunidade para medir o estado de espírito de Rubens Barrichello antes da corrida mais importante do ano para ele: bem-humorado, otimista e mostrando que já aprendeu a lidar com a pressão natural de correr no País. “O momento é muito bom. Chego no Brasil com aquele pensamento dos últimos anos: jogar em casa é jogar sempre bem. Tem de começar na sexta-feira com um trabalho bom no acerto do carro. Vamos lutar com os melhores, esperando largar na primeira fila e cumprir um sonho de longa data.”

Claro que o piloto foi bombardeado por perguntas sobre a distribuição de forças na Ferrari. No ano em que só conseguiu vencer depois que o companheiro Michael Schumacher ganhou o título, seria mesmo inevitável que o assunto aparecesse. E as respostas foram interessantes, ainda que contraditórias às vezes. Primeiro, o piloto refutou qualquer possibilidade de ser ajudado no domingo. “Quem acha que o Schumacher vai me dar um presente no fim-de-semana está acreditando em Papai Noel. Ele vai chegar aqui para marcar mais recordes e continuar sua carreira maravilhosa”, disse.

Depois, abriu seu coração sobre como se vê dentro da equipe. “Quando eu cheguei na Ferrari, tudo era diferente. Com o Irvine, a equipe era baseada em um carro só, até com o consentimento do próprio piloto. Me sinto orgulhoso em falar que hoje esta história mudou, depois de todas as conquistas, depois de tudo aquilo que eu consegui demonstrar dentro da equipe.”

Rubens Barrichello também fez questão em afirmar que seu equipamento é exatamente o mesmo de Schumacher, mas apontou uma diferença na atenção que a equipe dedica a cada piloto. “O equipamento é igual, pneu, motor, chassis, tudo isso. Mas a atenção que eu luto para ter dentro da equipe vem mudando. Depois do título do Michael, a equipe deu uma relaxada, acabou me dando um pouquinho mais de apoio e liberando estas energias positivas, que é o que eu sempre precisei. Isto não é uma reclamação, é uma coisa que eu sempre falo lá dentro. As duas vitórias vieram após um relaxamento da equipe aonde as energias ficam divididas 50% e isto me favorece bastante. A luta é para que nos próximos dois anos as coisas possam ser assim desde o início.”

No final, acabou se contradizendo. “Se concentrar em um piloto só é um modelo ultrapassado. As coisas mudaram na Ferrari desde a Áustria-2002. Hoje, eu tenho um tratamento VIP e me sinto mais preparado do que nunca para ser campeão.” Os números não apontam isto: Na atual temporada, Michael Schumacher soma 2.500 quilômetros de testes a mais que Barrichello. Pior: no mês de janeiro, quando o F2004 foi lançado, o alemão andou um total de 2.400 kms, contra 600 do brasileiro. Quatro vezes mais.

Como o leitor bem-informado sabe, é nos testes que o piloto aprende as nuances de seu carro e os detalhes do comportamento dos pneus. Assumindo uma carga de trabalho maior (no caso, uma distância igual a oito corridas inteiras), o alemão espertamente cria um handicap para seu companheiro de equipe. É uma tática válida e antiga, praticada por pilotos da estirpe de Jim Clark, Jackie Stewart e Ayrton Senna. Fórmula 1 é isso aí.

O que Barrichello está dizendo é muito claro e só não enxerga quem não quer. Não existe esta história de equipamentos diferentes na Ferrari. Ninguém sabota o trabalho do brasileiro, que não se cansa de declarar seu amor à equipe (“É na Ferrari que, se Deus quiser, serei um dia campeão do mundo”, foi uma de suas frases na coletiva). Também não dá para viver pichando o piloto, achando que todos os problemas do mundo são culpas de uma suposta incompetência dele (o tipo de visão de um ufanista frustrado). O que existe é uma estrutura que concentra o trabalho em Michael Schumacher, e que tem funcionado com a precisão de um relógio suíço. Anti-ético? De maneira nenhuma. Vencer é o nome do jogo, e isto a Ferrari tem feito sem parar.

E o mesmo tipo de divisão ocorre em outras garagens, perguntem para Antonio Pizzonia ou Christian Klien sobre a experiência de correr na Jaguar ao lado de Mark Webber. Em qualquer equipe de qualquer categoria de automobilismo é assim: o novato chega e fica só com as migalhas do trabalho do queridinho do chefe. Mas se tiver competência, sorte e jogo de cintura, pode ir comendo pelas beiradas e terminar um dia com o prato principal. Não foi o que aconteceu com Emerson na Lotus, Piquet na Brabham e Senna na Lotus (e na McLaren)?

O que é muito importante observar é a determinação do piloto brasileiro. É claro que Schumacher é melhor que Barrichello e dá raiva em muita gente ver este último falar todo ano que vai brigar para bater o companheiro de equipe e ser campeão, o que nunca acontece. Mas daria mais raiva se Rubinho fizesse o mesmo que Gerhard Berger em sua época na McLaren: reconhecer a superioridade do companheiro de equipe e jogar de vez a toalha, refutando a possibilidade de ser campeão enquanto estivesse ao lado um piloto como Ayrton Senna.

Ora, Berger foi capaz de derrotar Senna em uma ou outra corrida, assim como Barrichello faz com Schumacher. Se, com paciência e perseverança, o brasileiro continuar cavando seu espaço na equipe sem bater de frente com ninguém, pode um dia realmente começar o ano em igualdade de condições. Vai que assim seus esporádicos domingos de gênio se tornem mais freqüentes e ele realmente tenha uma briga bonita com o alemão. Ou então este resolva se aposentar de repente. Se Rubinho tiver com a moral alta lá dentro, pode passar a receber um tratamento VIP de verdade. É esta a sua aposta. Quem sabe ela não dá certo?

Um abraço e até a próxima semana,

Luis Fernando Ramos
GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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