Eduardo Correa observou, muitos anos atrás, que temporadas no esporte a motor estão sempre respondendo a algumas perguntas norteadoras, que sintetizam as principais dúvidas e expectativas do contexto em que se inserem. E sob este aspecto, tão central à construção das narrativas históricas, não seria exagero afirmar que a temporada 2021 da MotoGP já se se destacava, antes mesmo de nascer, pela qualidade e pela relevância das perguntas que propõe.
A primeira e mais importante delas é bastante óbvia: em quais condições (e em que altura do campeonato) se dará o retorno de Marc Márquez?
Tendo sido batido na campanha pelo título mundial apenas uma vez nas sete temporadas que disputou na MotoGP, Márquez era favorito absoluto ao título de 2020 até sofrer, logo na primeira etapa daquela temporada, o acidente que o manteve longe das pistas até os dias atuais. De fato, o vácuo de sua ausência foi tão poderoso que alterou por completo a dinâmica das provas e do campeonato, deixando a disputa em aberto e alçando diversos conjuntos a momentos de protagonismo.
Sem a presença de medalhões como Jorge Lorenzo ou Dani Pedrosa, e com Valentino Rossi e sua Yamaha longe dos melhores dias, coube a Fabio Quartararo dar a impressão de que as atividades continuariam a ser dominadas por um único piloto. Suas duas vitórias nas duas primeiras etapas, no entanto, deram lugar a uma campanha errática, que rendeu apenas mais uma vitória e a 8ª posição na tabela de pontos, atrás, inclusive do companheiro Franco Morbidelli, vice-campeão, também com três vitórias.
Na falta de um conjunto de referência em termos de competitividade, consistência se tornou a palavra de ordem. Basta observar que tivemos 9 vencedores diferentes num universo de 14 etapas, ou que o campeão Joan Mir venceu apenas uma corrida, igualando-se, neste aspecto, a Danilo Petrucci, 12º na tabela de classificação. Mir somou, em média, 12,2 pontos por corrida, o que significa dizer que se um piloto tivesse terminado todas as etapas na 4ª colocação poderia ter sido campeão sem subir ao pódio uma única vez.
A ausência de Márquez em Losail sinaliza o cuidado para retornar apenas quando estiver plenamente recuperado e em condições de ser competitivo. Para muitos, no entanto, a grande dúvida a respeito das condições de seu retorno não reside nos aspectos físicos, mas nos mentais. Até então um piloto que não hesitava ao assumir riscos decisivos na base do “ou venço ou caio”, e que em alguma medida havia se acostumado a uma rotina de cair sem se machucar, Márquez agora terá de lidar com uma consciência muito maior a respeito das possíveis consequências de um tombo. Trocar um ano no ápice da forma física por uma longa temporada de dores e sofrimentos não deixa cicatrizes apenas no corpo. O aspecto mental também sofre ferimentos.
Alguém poderia observar, por exemplo, que Valentino Rossi passou por algo semelhante após seu terrível acidente em Mugello, 2010, e desde então teve muitas dificuldades para conseguir competir no nível que havia mantido até então. Não seria exagero, portanto, dizer que a resposta que Márquez dará a esta pergunta terá enorme influência sobre os rumos do mundial de Motovelocidade nos próximos anos.
Como a ausência de Márquez afetou a concorrência?
Mas é claro que não foi apenas Márquez quem embarcou numa viagem diferente ao longo dos últimos 12 meses. Afinal, sua ausência teve também importante reflexo sobre toda uma nova geração de talentos, antecipando a oportunidade de que lutassem por vitórias e até mesmo pelo título mundial.
Naturalmente estes pilotos têm lidado com questionamentos a respeito do mérito de suas conquistas recentes, e se incomodam com isso. Todos sabem bem que a eventualidade de Márquez retornar de onde parou, vencendo a maioria das corridas, teria impacto destrutivo sobre a credibilidade de seus feitos, e não é difícil imaginar que algumas camadas de brio e autoconfiança tenham sido acrescentadas aos jovens leões que aguardam pelo retorno do rei.
Naturalmente ninguém sente mais o peso desta situação do que o atual campeão, Joan Mir. Ele sabe que, quando Márquez retornar, terá de provar se seu título foi em alguma medida ocasional, como ocorreu em anos como 1999, 2000 ou 2006, ou se sua ascensão, ainda que tenha sido antecipada, em algum momento se tornaria inevitável.
O que se pode esperar de Valentino?
Incríveis 25 anos após fazer sua estreia no circuito mundial, Valentino Rossi continua encontrando prazer em competir com pilotos que nem ao menos eram nascidos quando ele já era campeão do mundo.
Com um carisma que sobrevive à longa escassez de resultados, o Doutor continua mobilizando multidões e sendo um personagem importantíssimo para a popularidade da MotoGP, mesmo que passando atualmente pela inusitada situação de guiar para uma equipe satélite. Dito isso, não custa observar que no atípico ano de 2020 a Petronas Yamaha foi justamente o time que mais venceu corridas, e que Rossi terá seu desempenho medido a partir do comparativo com o atual vice-campeão, Franco Morbidelli.
Evidentemente a paixão de Valentino pelo esporte, bem como a reciprocidade do sentimento que os fãs reservam ao velho campeão, estão mais do que provadas. Ainda assim, Rossi jamais deixou de ser competitivo, e sabe que precisa melhorar seu jogo se quiser justificar sua permanência na elite do esporte por mais um ou dois anos, ou, ao menos, para que sua despedida se dê de maneira honrosa e digna da fantástica história que foi escrita.
No Catar, Rossi apresentou ótimo desempenho na classificação, tendo assinalado o 4º melhor tempo, ainda que parte disso se deva ao oportunismo de comboiar o pole Bagnaia nos momentos decisivos. Na prova, no entanto, o desempenho jamais foi competitivo, ainda que em seu favor seja justo lembrar que ele esteve sempre à frente de Morbidelli.
Como está a hierarquia entre os conjuntos?
A última das perguntas, aquela que questiona como está a hierarquia de desempenhos entre os conjuntos, deveria ter sido parcialmente respondida em Losail, mas a experiência nos mostra que a corrida noturna no Catar nem sempre representa um bom indicativo do que será visto nas etapas posteriores.
Nos treinos, a Ducati de Bagnaia foi inalcançável, baixando de forma significativa o antigo recorde da pista. A julgar pelo que vimos nesta etapa, o grid da MotoGP reúne as motos mais rápidas já construídas, e isso sempre tornas as coisas mais interessantes. As Yamahas também apareceram muito bem nos treinos, ainda que nos metros iniciais da prova o novo dispositivo de largada das motos italianas tenha se mostrado superior à concorrência.
Os ritmos de prova mais fortes foram os de Maverick Viñales, que escalou o pelotão desde a oitava posição até a vitória, e do campeão Joan Mir, que largou em 10º e alcançou a 2ª posição poucas curvas antes da bandeirada, apenas para ser engolido pelas Ducatis de Zarco e Bagnaia na reta final. De fato, as Desmosedici estão tão brutais que em dado momento do fim de semana Zarco registrou novo recorde de velocidade máxima ao ser cronometrado a incríveis 362,4 km/h.
Talvez a constatação mais importante, contudo, seja a de que as motos não se afastaram demais ao longo da prova, sendo possível ver mais de uma dezena delas na mesma tomada inclusive nas voltas finais. A depender de como as diferentes máquinas venham a se adaptar às próximas pistas, não seria surpreendente vermos a ordem que se estabeleceu em Losail sendo subvertida.
A perspectiva de competitividade, no entanto, fica a depender fundamentalmente do tipo de desempenho que Marc Márquez será capaz de arrancar da Honda, que na corrida inicial não conseguiu ir além da oitava colocação, com Pol Espargaró. Tal como na icônica música “Anunciação”, de Alceu Valença, a motovelocidade já escuta os sinais da iminente chegada do hexacampeão espanhol, numa manhã qualquer de domingo.
A MotoGP volta a correr em Losail no próximo fim de semana, antes de seguir para a maravilhosa pista de Portimão, no Algarve, dia 18 de abril.
Márcio Madeira
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Preciso ficar mais ligado no Mundial de motos … Ano passado praticamente votei Nulo e passei batido.
Fernando Marques
Niterói RJ