Barrichello e o exemplo de Pete Best
Edu,
Sua coluna mais recente, sobre o Barrichello, deu-me a ocasião que eu esperava. Tenho ficado muito constrangida cada vez que ouço ou leio alguma das chorumelas desse moço, já não tão moço… Começou ainda antes do GP da Áustria do ano passado. Acho que começou assim que ele foi para a Ferrari e tirou daquela cabecinha dourada a idéia de que estava chegando para rivalizar com Schumacher.
Antes de falar sobre o Barrichello e sua relação com Schumacher, vou comentar uma aproximação que considero muito mais importante que a do brasileiro com o alemão. A MINHA relação com Schumacher! No já longínquo ano de 1993, eu era repórter da Folha de S. Paulo e cobria meu segundo e último GP do Brasil. No meio da tarde, abandonei brevemente meu Toshibinha (era assim que a gente chamava os laptops daquela época) para ir ao banheiro ao lado da sala de imprensa. Enquanto estou ali, ensaboando ou enxaguando minhas mãos, eis que sai de um dos boxes do banheiro feminino, quem? Michael Schumacher. Sorri espantada para ele e disse algo como “acho que você está no lugar errado”, em inglês. Ele respondeu com um simpático “é, parece”. E saiu. Sem lavar as mãos.
Essa é a íntegra de toda a minha relação com Schumacher. Um nada, para ser honesta, mas um nada que vou contar para o meu filho, assim que ele desgrudar do VHS Spills & Thrills, que ele chama carinhosamente de “a fita de batida”. E, se não estiver senil o bastante ou pelo menos ainda viva para conviver com um eventual neto, contarei a ele também. Vou valorizar esse “nada” porque foi meu único encontro “pessoal” com um piloto que está, segundo todo mundo que entende de Fórmula 1, entre os maiores de todos os tempos.
Aí, volto ao Barrichello, que convive com Schumacher desde o ano 2000. Imagine quantas histórias legais, mas muito mais interessantes que meu prosaico encontro sanitário, não deve ter esse moço, já não tão moço, para contar! Consta que os dois companheiros de equipe gostam de tragar um bom cubano após as corridas. Sabe-se que os dois freqüentam a mesma “academia”, um equipado espaço para condicionamento físico nas instalações da Ferrari, em Maranello. Isso sem contar os testes de inverno, os treinos privados, as próprias corridas, os eventos comerciais da equipe. Tudo bem que a dupla Schumacher/Barrichello não parece ter o espírito sacaneador-infantilóide de Senna e Berger, que viviam se arreliando mutuamente. Mas, PQP, muita coisa interessante, curiosa ou pelo menos relatável deve ter acontecido com eles. E o Barrichello, em vez de aceitar seu papel na história, de melhor companheiro de equipe, de fiel escudeiro de um dos maiores, quiçá maior piloto de todos os tempos, fica reclamando que não deram para ele uma viseira anti-embaçante, que o carro foi feito nos moldes do Schumacher, por isso não se adapta, que isso e aquilo.
Nos últimos tempos, sempre que penso no Rubinho, vem à minha cabeça a figura do Pete Best, que você deve saber quem é. Se não sabe, só para rememorar. O cara foi o baterista dos Beatles, preterido para dar lugar ao Ringo Starr. Tocou com os outros três naquelas baladas na Alemanha antes do primeiro disco, depois foi espirrado para fora do grupo. Pois esse cara, vivo que é, passou os últimos quarenta anos vivendo da fama de ter sido “quase um Beatle”. Seu site na internet (www.petebest.com) tem na home page uma ilustração singela, com quatro rapazes ao fundo e um quinto, separado, um pouco mais à frente. Meio pretensiosamente (ou não, sei lá), diz que foi ele que deu o “beat” (a batida) aos Beatles. Mas não nega nada: diz que foi mesmo demitido e se eterniza nessa fama reversa. Se você entrar no google e pedir Pete Best, vai encontrar 15.900 registros. Se pedir Rubens Barrichello, são 122 mil. Claro, o Pete Best é quase uma sombra na imprensa atual, enquanto o Rubinho está aí, na ativa. Natural que apareça mais. No entanto, acho que o Rubinho é mesmo mais importante que o Pete Best, que “quase foi”. O Rubinho não “quase foi”, ele é. É o segundo piloto da Ferrari, vencedor de cinco GPs, vice-campeão mundial de Fórmula 1. Mas ele parece não se conformar com esse destino glorioso. Ou não é glorioso um destino desse para um moleque que começou a correr de kart sem ter grana da família para financiar sua carreira?
Se eu fosse o Rubinho, viveria feliz de estar na cola do Schumacher. Acho que alguém já disse isso, no gepeto ou em outro lugar, mas o Rubinho tinha que ler e praticar aquela poesia atribuída ao Jorge Luis Borges, que diz que a gente deve tomar mais sorvete e comer menos lentilha. Curta a vida, carpe diem, cara! Mais uma vez: se eu fosse o Rubinho, faria tudo de novo que a Ferrari pedisse, assinava por mais umas duas ou três temporadas, me aposentaria por cima, pegaria meu boné, cheinho de dólares, e ia curtir a vida, a família. Com uns quarenta e poucos anos, eu lançaria um livro de memórias “Eu e o maior piloto de F-1 de todos os tempos”, daria entrevistas no mundo todo, comeria de graça em todos os restaurantes. Mas, como o Rubinho não sou eu, acho que ele vai continuar seu chororô, vai acabar a carreira melancolicamente daqui uns anos em alguma equipe média ou pequena, vai estar daqui uns cinco ou seis anos disputando a Stock Car brasileira e, ao contrário de muitos bons pilotos que já passaram pela Fórmula 1 e hoje divertem-se ou ganham a vida na nossa Stock, vai fazer isso com uma mágoa infinda, blasfemando contra os coitados dos mecânicos que trabalharem para ele, dizendo que não é obrigado a agüentar qualquer coisa que o desagrade, pois ele é um ex-piloto da Ferrari, um ex-vice campeão mundial, e que é um absurdo sacanearem ele desse jeito e…
Rubinho sofre porque quer ser mais do que a vida reservou para ele. Acho que os grandes caras, no esporte, na ciência, nas artes, nunca planejaram ser os melhores. Não consigo imaginar que o Schumacher tenha passado a adolescência maquinando como iria ser melhor que Nelson Piquet ou Alain Prost. Não acho que o Pelé tenha sonhado um dia em superar o Zizinho. Não acho que os Beatles (e não o Pete Best, os outros quatro, mesmo!) tenham conjecturado ser melhores que o Chuck Berry. Acho que todos queriam fazer como eles, estar perto deles. Quando eu fiz 18 anos e entrei para a faculdade de jornalismo, eu queria ser uma mistura de Edgard Mello Filho com Glória Maria: cobrir a temporada de Fórmula 1 e também algumas guerras, ir ao Afeganistão, escalar o Everest. Não foi o que a vida me reservou. Sou jornalista, tenho uma pequena editora junto com meu marido e sou muito feliz por isso. Fico contando minhas historinhas divertidas e acho que sou privilegiada. O Rubinho tem muito mais histórias para contar. E acha pouco.
Bjs,
Alessandra Alves (São Paulo-SP)