O GUERREIRO RICARDO TORMO
– por Manuel Blanco
Caros leitores,
Este “Friends” teve origem na lista dos cinco pilotos de moto preferidos do Manuel Blanco, que mora na Espanha e é um de nossos leitores mais assíduos e atuantes. Ali, constava o nome de Ricardo Tormo, um piloto espanhol a respeito do qual eu sabia apenas que havia sido campeão mundial uma ou duas vezes.
Perguntei a Manuel a razão de incluir Tormo em sua lista – queria saber o que o espanhol tinha de tão especial para ser incluído entre seus cinco preferidos. Também quis saber se Tormo era da região de Valência, já que o autódromo local leva seu nome. A resposta é a que segue, e é uma das histórias mais comoventes que já conheci sobre um piloto de competição. (Luiz Alberto Pandini)
Querido Luiz,
Espero poder te transmitir a admiração que sinto pelo Ricardo Tormo. Efetivamente, ele era valenciano, e ainda hoje é venerado como um dos maores pilotos da história – e sem dúvida o maior de Valencia, ainda que só tenha vencido 2 títulos mundiais.
A sua história é fascinante e comovedora, pois nenhum piloto teve que superar tantas adversidades e sacanagens como ele. Os seus títulos foram conseguidos de forma épica, a sua carreira foi encerrada de forma trágica e a sua vida acabou de forma dramática.
O Ricardo nasceu numa pequena localidade ao sul de Valencia, no seio de uma família humilde. Ainda menino, começou a trabalhar na oficina mecânica de um tio. Logo mostrou grande habilidade para a mecânica e em 1971 participou de sua primeira corrida com uma velha motocicleta preparada por ele mesmo, e terminou em 2º lugar! Participou falsificando a assinatura dos pais e sem dizer nada pra eles, que não queriam que o filho se dedicasse a algo tão perigoso.
Vencida a oposição familiar, Ricardo participa no campeonato espanhol em 1973, e consegue a sua primeira vitória com uma moto, também preparada por ele mesmo. Em 1974, sofre um grave acidente que o mantém mais de um ano fora das pistas mas em 1976 volta e disputa o campeonato do mundo, sendo vice-campeão. Angel Nieto, o dominador das categorias menores naquela época, o chama para ser o seu segundo piloto em 1977 e Tormo acaba terceiro no mundial com uma vitória esplêndida na Suécia, numa corrida disputada sob forte chuva, e não seria a sua única vitória nessas condições pois outras vieram, demonstrando ser imbatível em pista molhada.
Em 1978, Ricardo ganha o seu primeiro título mundial na 50 cm³ com um equipamento ridículo. Em 1979 e 1980 a situação pouco muda no que se refere ao equipamento disponível, apesar de várias promessas de vários fabricantes. Ao que parece, o fato de ser espanhol não o ajudava muito naqueles tempos: com o Angel Nieto já dominando os circuitos, os patrocinadores não tinham muito interesse em ter outro espanhol lá. A Espanha acabava de sair duma ditadura e a situação política e econômica era muito complicada.
Em 1981 Ricardo, com ajuda de alguns amigos, conseguiu reunir algum dinheiro e pretendia comprar uma moto para disputar o campeonato por sua conta, mas nenhuma fábrica quis vender-lhe o equipamento. Então ele soube que a Bultaco, a fábrica das motos com as quais havia ganhado o seu título em 1978, estava a ponto de ir à falência. Ricardo tentou comprar uma moto deles, porém, quando chegou na fábrica, tudo era um autêntico desastre: a fábrica estava quase desmantelada e não havia nada que servisse por lá. Conversando com os operários que estavam em greve na porta da fábrica, Ricardo soube que a moto que ele tinha usado em 1978 ainda estava lá. Com ajuda dos próprios operários, achou a moto num velho armazém. A moto estava toda enferrujada e não havia nenhuma peça extra, nenhum motor de reserva, nada de nada!
Mesmo assim, ele decidiu afrontar o campeonato, mas ainda precisavam de um pouco de dinheiro. No fim, recebeu 5 milhões de pesetas de uma fábrica de móveis da sua região natal – sob a condição de que, se não ganhasse o campeonato, teria que devolver o dinheiro. Imagine, ele tinha que disputar o campeonato com a obrigação de ganhar, usando uma só moto e pilotando com cuidado para não quebrar nada nem cair, pois isso seria o fim de tudo e sua ruína. Nessas terríveis condições, e sendo ele mesmo quem preparava a moto, com a ajuda de um amigo (dormiam no trailer junto a todo o material), Ricardo Tormo bateu a poderosa equipe Van Dienn-Kreidler do piloto Stefan Dorflinger, conseguindo seis magníficas vitórias.
Com este título, a equipe holandesa contratou Ricardo para os seguintes dois anos e parecia que, por fim, Ricardo teria uma boa moto. Mas tudo foi muito diferente pois ele, em nenhum momento recebeu bom material. Depois se soube que a equipe não tinha nenhum interesse em que ele fosse campeão, pois os grandes investimentos que eles faziam eram para que Dorflinger fosse campeão e, assim, cumprir os seus objetivos comerciais. Tinham contratado Ricardo só para que não voltasse a estragar os seus planos outra vez. O próprio Dorflinger admitiu isto alguns anos depois, declarando que esse tinha sido um dos mais negros episódios da história do motociclismo.
Até o final de 1983, Ricardo Tormo conquista 8 títulos nacionais na Espanha, em 50 cm³ (1977 a 1980) e 125 cm³ (1979 a 1983). Em 1984, Ricardo vai para a Derbi, a marca espanhola com a qual Angel Nieto tinha começado a sua carreira. Passam todo o inverno trabalhando no desenvolvimento da moto e, vistos os promissores resultados, decidiram contratar um segundo piloto. Ricardo recomenda Jorge Martinez, outro piloto valenciano. Os testes eram feitos nas ruas da zona industrial onde estava a Derbi, e alguns operários ficavam nos cruzamentos, para avisar algum eventual motorista que não devia entrar na área. Um dia, uma mulher não respeitou as indicações do operário e entrou na área de testes, justamente no momento em que Ricardo vinha a mais de 170 km/h. Ricardo ainda conseguiu evitar o choque frontal, mas acabou raspando no carro. Porém, uma raspada naquela velocidade não foi brincadeira e só a carenagem da moto e o macacão evitaram que a sua perna direita fosse amputada. No entanto, as feridas foram brutais: tinha terríveis fraturas em toda a perna e o fêmur tinha sido arrancado da bacia.
O conselho dos médicos foi amputar a perna, mas Ricardo insistia que precisava dela para pilotar. Disseram-lhe que nunca voltaria a andar normalmente e sem a ajuda de muletas, mas ele dizia que a sua forma natural de “andar” era em cima de uma moto. Durante anos esteve submetido a intensos tratamentos médicos, sofrendo mais de 20 operações cirúrgicas, e prolongados períodos de penosa recuperação e reabilitação.
Jorge Martinez ganhou 4 títulos mundiais e 8 títulos nacionais com a Derbi que seria do Ricardo. Outro piloto valenciano, Manuel Herreros, entrou na Derbi como segundo piloto do Jorge e também venceu título mundial na 80 cm³ (e acho que algum nacional). Como você pode ver, se o Ricardo não tivesse sofrido o acidente, a sua lista de títulos é bem provável que seria mais longa.
Quando parecia que o calvário de Ricardo estava prestes a acabar (ele inclusive já tinha pilotado uma moto, subindo com a ajuda de alguém), um exame medico de rotina detectou leucemia, o que o obrigou a longos e agressivos tratamentos médicos. Mas tudo foi inútil: Ricardo veio a falecer em 1998.
O Ricardo viveu o tempo suficiente para ver o circuito da comunidade valenciana que, para honrar-lhe, recebeu o seu nome. Seu nome completo era Ricardo Tormo Blaya. Nasceu na pequena cidade de Ayacor em 07 de setembro de 1952 e faleceu em 28 de dezembro de 1998.
Como você vê Luiz, os números nunca poderiam dar a justa medida da grandeza do Ricardo. Sei que os fatores extradesportivos são os que mais me influem na hora de colocar o Ricardo entre os meus favoritos mas casos como o seu não acontecem todos os dias.
Abraços,
Manuel Blanco (Espanha)