Como tudo (quase ) (re)começou
– Victor Lagrotta
Muita gente hoje acompanha o automobilismo a partir das façanhas de Piquet e Senna, tem alguma lembrança de Emerson e vaga recordação de Chico Landi. Entretanto existe uma falha temporal, uma vez que após as últimas corridas de Landi na Europa nos anos 50, só ressurge Emerson em 1969. O que ocorreu?
A FIA exigia que houvesse uma única entidade representativa por país, e essa primazia era disputada pelo ACB (Automóvel Club do Brasil, de olho na receita das anuidades, como tinham o RAC na Inglaterra e o ADAC na Alemanha) e pela CBA (Confederação Brasileira de Automobilismo, estabelecida em 1961, já nos parâmetros da FIA), que foram à justiça para esclarecer quem seria o representante do país no exterior. Com o imbróglio jurídico, a FIA suspendeu a concessão de licenças para pilotos brasileiros até decisão final da justiça, que já naquele tempo era mais lerda que a Minardi…
O piloto Ricardo Aschar, do Rio de Janeiro, foi informado de que pilotos graduados em escola de pilotagem na Inglaterra recebiam a licença do RAC (Royal Automobile Club) e podiam disputar a categoria de entrada, que era a Fórmula Ford. Ricardo se mandou para lá, fez o curso na Jim Russell Driving School, conseguiu a licença e tornou-se, em 1968, o primeiro piloto brasileiro a participar de provas internacionais depois de quase 10 anos. Se não me engano ele tinha parentes morando lá, o que facilitou as coisas. No início dos anos 60, Wilsinho Fittipaldi disputou uma prova em Punta de Leste com um F-3 projetado e construído pela Willys (Interlagos, Aero, Rural, Jipe), mas ele provavelmente correu com uma licença provisória da FIA. Idem Christian Heinz quando sofreu seu acidente fatal na 24 Horas de Le Mans de 1963.
Ao ouvir a história de Ricardo, Emerson seguiu o mesmo caminho em 1969 e o resultado todo mundo sabe. No ano seguinte foram Moco, o Wilsinho e o Antonio Carlos Avallone, que foi correr de F-5000. Nesse tempo, as proezas do Emerson começaram a ser destaque e o assunto incomodou o governo militar, que deu uma mãozinha para que o assunto ACB e CBA fosse resolvido. Ao que me consta, o Emerson correu com licença do RAC até 1.973.
A terceira onda teve alguns personagens muito legais, e conheci um deles, chamado Sergio, piloto do Rio de Janeiro, que foi contemporâneo de Rafaele Rosito. Como todos os brasileiros, eles morriam de saudade das coisas da terra, e no caso dos gaúchos o que eles mais sentiam falta era o churrasco, principalmente uma boa costela assada na brasa. O segundo ponto em comum entre os brasileiros no exterior é que todo o mundo conhecia alguém na Varig, que funcionava como embaixada informal do país no exterior (Caetano Veloso e Gilberto Gil iam até a loja para ler os jornais censurados, não que isso acrescentasse muito…), então a turma dos pampas armou com um comandante da Varig, de boa estirpe de churrasqueiros, para trazer uma peça de costela bovina para fazer um churrasco (bem antes de barreiras sanitárias). Imaginem o clima e a logística, a turma de gaúchos disputando quem assava melhor, o novilho abatido à tarde no sul, a conexão de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, o comandante escondendo a valiosa carga na alfândega de Londres, um monte de brasileiros convidados, incluindo a tripulação responsável pelo importabando, etc.
Bem, os moços podiam saber como acelerar, mas não sabiam nada da legislação ambiental de Londres, onde, devido a um problema grave de inversão térmica nos anos 50 era proibido acender fogo (incluindo lareira, churrasqueira, braseiro e isqueiro). Lá pelas tantas, um inglês muito dos chatos, certamente desconhecedor do prazer quase sublime de um bom churrasco, cheirou um incêndio em certo quarteirão e chamou os bombeiros. Instantes depois, um bombeiro inglês meteu o machado na porta em um sobradão inglês. Para quem não sabe, as casas vitorianas inglesas têm uma frente estreita, de 5 ou 6 metros e uma profundidade de 30 metros, com um longo corredor conectando a sala, copa, cozinha e quintal. No final do longo corredor tinha uma porta vai-e-vem, que foi com o pezão e o jato de água do bombeiro, e veio com um socão de mão cheia de um dos pilotos gaúchos, indignado pelo ato terrorista do bombeiro.
Depois de tudo amistosamente esclarecido no distrito e perante o juiz, com ameaças não concretizadas de deportação, os bons gaúchos ofereceram um churrasco a toda a corporação, desta vez no paddock de Brands Hatch, e com carne inglesa. O Sergio deve ter gostado muito, porque quando o conheci ele tinha um chassis mais adequado a piloto de Formula Truck, do que F-3.
Victor Lagrotta |