A Retribuição

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A década de 30 foi fervilhante para o mundo do automobilismo, as competições e corridas eram mais e mais lugares para as demonstrações de superação e evolução tecnológica, diversas indústrias se envolviam nas competições, na Europa o destaque ficava para italianos, alemães, franceses e ingleses.

Já havia um campeonato da pré-Fórmula 1, não oficial é verdade, e entre os anos de 1930 até 1938 competidores disputavam a primazia de vencer. Dentre as marcas na disputa, destacavam-se no lado alemão a Mercedes e a Auto Union. No lado italiano, a Alfa Romeo se impunha sob a liderança de Enzo Ferrari, que acabou afastado da Alfa e fundou a sua escuderia, a mítica Ferrari.

Aí veio a guerra, e tudo parou…

A Europa foi um dos principais palcos da Segunda Guerra Mundial e a destruição acabou com sonhos, carreiras, vidas e muitos projetos

No auge da guerra no território italiano, Milão foi ocupada, as batidas e prisões aumentaram dia a dia. O esforço de alguns admiradores, mecânicos e simpatizantes da Alfa Romeo fizeram uma diferença que seria sentida anos mais tarde: um pequeno número das Alfettas 158 permaneceram armazenadas dentro da fábrica de Portello, com o risco de serem levados como despojos de guerra.

Vários técnicos e trabalhadores da Alfa Romeo decidiram que elas deveriam ser removidas e começaram o planejamento clandestino de carregá-los em caminhões. Vários apaixonados admiradores da Alfa se ofereceram para esconder ao menos um modelo.

Dentre esses admiradores estava o campeão de lanchas Achille Castoldi, que estabeleceu um recorde mundial de velocidade em 1940 usando um motor do modelo Alfa Romeo 158.

Após o término da guerra, quando as corridas foram retomadas e os Alfa 158 apareceram, para alguns eram cópias, mas a ligação entre os modelos do Alfa 158 antes e depois da guerra não eram apenas uma questão de design semelhante: havia também uma continuidade física, ainda que alguns precisaram repor algumas peças, mas eram os carros originais de antes da guerra.

Desde o final dos anos 30, Achille Castoldi competia em barcos. Além de piloto, era engenheiro e, junto com seu primo Mario, buscava ser competitivo em diversas competições náuticas. Em 1940, Achille estabelece recorde na classe 400 kg com o barco modelo hidroplano Arno. A marca foi estabelecida em 210,98 km/h. O detalhe é que seu barco era equipado com o motor do Alfa Romeo 158, o mesmo usado nos carros de competição.

O hidroplano de competição Arno era concebido pelo chamado design de três pontos, que fora criado e patenteado por Adolph e Arno Apel no final dos anos 1930. A concepção era a de um desenho que permitisse um fluxo de ar entre o barco e a água, com o objetivo de fazer o barco voar sobre a superfície, em vez de viajar através dela.

Depois de 1951, Castoldi terminou a relação com Alfa Romeo e mudou seu foco para competição de velocidade pura, enquanto buscava um novo fornecedor de motor. Seu objetivo era, agora, o recorde na classe 800 kg.

É nessa fase que Enzo Ferrari vai entrar e ter uma importante contribuição

As preparações para o recorde de Castoldi começaram em 1952. Ele tinha amizade com Alberto Ascari e Luigi Villoresi e logo veio a ideia de equipar o seu barco com um motor Ferrari. Viajou então para Maranello com seus dois amigos, com a missão de comprar um V-12 da Ferrari.

Enzo Ferrari tinha a característica bem italiana de ser uma pessoa passional e ele logo se encantou com a ideia, ainda mais depois de saber que Castoldi fora um dos que salvaram as Alfa 158. Enzo resolve, inclusive, conduzir pessoalmente a preparação e coloca o corpo técnico disponível para essa missão.

Com essa benção, o motor escolhido é o V-12 versão 375 que dera à Ferrari sua primeira vitória na F1, Silverstone 51, com Froilan Gonzalez, e redneu à equipe seu primeiro Mundial, em 1952

O barco de Castoldi, chamado de Arno XI, foi construído como um projeto de hidroavião de três pontos pelo estaleiro Cantieri Timossi de Timossi Azzano localizado no Lago Como. Um belo exemplo de forma e função em partes iguais, o hidroavião apresentava uma estrutura de madeira sólida revestida por compensado marítimo com um acabamento em verniz de mogno adicionado a um chassi auxiliar de metal com uma forte estrutura para lidar com a enorme potência, com a tampa do motor e o exterior da cabine devidamente pintado no vermelho rosso, característico dos carros Ferrari.

Uma vez finalizado, o Arno XI foi inscrito na corrida dos Campeões na Itália em janeiro de 1953, com Castoldi que alcança uma velocidade de máxima não oficial de 199,6 km/h, antes de tentar uma corrida de mão dupla oficial. Para apimentar a história havia um competidor rival de Castoldi, Mario Verga, que recebeu o apoio da Alfa Romeo e seguia competindo na classe 800 kg, obtendo uma velocidade recorde de 202.26 km/hoje, equipado com o motor da Alfa Romeo 159. Seu barco era chamado de Laura. Duas semanas depois, Verga bate novamente o recorde, chegando a 226.5 km/h.

Destemido, Castoldi tinha o motor 4.5-litro 375 F1 V-12, agora novamente reconstruído e altamente modificado, e contava com o apoio oficial da Ferrari. Desta vez, o V-12 foi afinado para funcionar em metanol, permitindo compressão muito mais alta, junto com superalimentadores gêmeos e quatro carburadores. A potência produzida subira de 450 para 600 hp, uns 200 hp mais do a especificação usada na F1.

Uma vez atualizado e pronto para competição, Castoldi tentou bater o recorde no Lago Iseo, na Lombardia, na manhã de 15 de outubro de 1953, com Alberto Ascari e Luigi Villoresi presentes.

Dessa vez, Castoldi finalmente alcançou seu objetivo, com uma velocidade máxima no sentido mão dupla de 241.708 km/h. Esse recorde ainda permanece valendo até os dias atuais.

No ano seguinte, Castoldi sobreviveu a um acidente na classe 1.700kg e resolve se aposentar. O vitorioso Arno XI foi colocado em um estaleiro e retornou às competições em 1958 pelas mãos do engenheiro e piloto Nando Dell’Orto, que correu em diversos campeonatos até 1963, tendo conquistado recordes e três títulos europeus em sua categoria. Em 1968, Dell’Orto se aposenta e, junto com ele, também o Arno XI.

O barco é guardado em um armazém no subúrbio de Milão e fica esquecido até 1990, quando um colecionador o compra e inicia um meticuloso processo de restauração. O glorioso V-12 retornou a Maranello, é reconstruído em suas características originais.

Restaurado, o Arno XI volta à água em 2004 e recebe destaque na galeria Ferrari, tendo recebido as boas-vindas de Piero Ferrari, que felicitou o dono pela eficácia, autenticidade e qualidade alta da restauração. O chefe da equipe da Ferrari Classic Luigino Barp, comentou: “Esse é um dos mais importantes motores da história da Ferrari. Restauramos as Ferraris mais raras e valiosas já fabricadas, mas, obviamente, só trabalhamos em motores e carrocerias de carros. Restaurar esse motor Ferrari de 1952, especificamente construído à mão para esse feito único, se tornou a emoção de toda uma vida para todos nós na sede da Ferrari. Imagine ser um técnico de ponta na Ferrari e poder trabalhar exatamente nas mesmas peças que o próprio Enzo Ferrari ajudou a projetar e produzir”

Desde 2012, o Arno XI está emprestado ao mundialmente famoso museu da Ferrari na Itália. A embarcação já foi vista por centenas de milhares de visitantes. O barco foi exibido lado a lado com a Ferrari ganhadora da F1 em 1951, mostrando do domínio da Ferrari na terra e na água.

E pensar que toda essa história só foi possível graças ao gesto de retribuição que Enzo Ferrari teve para Achille Castoldi, por ele ter sido protetor de um dos carros da Alfa Romeo.

Pensando em retribuição e solidariedade nos tempos atuais, fica o pedido que se cuidem e se protejam.

Até a próxima!

Mário

 

 

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

10 Comments

  1. Pedro Alexandre Zaini disse:

    Caro amigo, é um prazer e um privilégio ler seus relatos sobre a formula 1 a o mundo que gira em sua volta. Muito obrigado pelo seu empenho em nos manter informados e entretidos nesses tempos difíceis. Grande abraço. Pedro Zaini

  2. Fernando Marques disse:

    Agora respirando um pouco mais … que linda lancha … que design!!! … me lembro de ter visto algumas corridas de lanchas aqui em Niterói na Praia de São Francisco nos anos 70 … achava incrível … esta coluna me trouxe essas lembranças a tona …

    Fernando Marques

  3. Fernando Marques disse:

    mario

    sensacional … estou sem palavras …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  4. Lucas Giavoni disse:

    Belíssima história!

  5. Mauro Santana disse:

    Grande Salu!

    Mais uma vez o amigo nos brindando com outra história incrível.

    Show!!

    Abraço!!!

    Mauro Santana

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