Cúpula do trovão

Zona de conforto
29/06/2019
Não adianta nem tentar
05/07/2019

Uma semana atrás, após o enfadonho GP da França, muitas vozes se apressaram a decretar que a F1 estava “morrendo”, ou que os pilotos da Fórmula Indy eram “tão bons quanto” os dela, e “ensinavam” como se fazer “corrida de verdade”. E então, no intervalo de míseros sete dias, uma pequena combinação de fatores se apresenta e a velha categoria rainha lembra a todo mundo que sim, quando se tem os melhores carros e pilotos do mundo – e ela os tem –, basta que sejam observados alguns postulados para que o espetáculo volte a ser tão bom quanto chegou a ser em seus melhores dias.

Não, a F1 não estava morrendo uma semana atrás, nem está livre de problemas sérios agora que produziu uma grande corrida. O que parece estar morrendo é o bom-senso, a disposição para analisar com alguma profundidade e debater com o mínimo de razão ou isenção, nestes tempos de pós-verdade e autoengano em que a paixão parece sempre ditar as pautas, deixando a sensatez em posição coadjuvante, de reação, sob ataque e descrédito.

Antes, todavia, de mergulharmos nos detalhes que escreveram a história do GP da Áustria de 2019, parece importante que lancemos um olhar mais distanciado, buscando entender em linhas gerais por que, afinal, a corrida foi tão boa. Inclusive porque uma interpretação equivocada destes fatores pode levar a direcionamentos equivocados no futuro.

Bom, para início de conversa é importante relembrar que nem toda corrida pode ser emocionante. Mesmo nos melhores anos, nos contextos mais favoráveis, sempre houve momentos de estabilidade, de dominação, de hegemonias e carência de disputas. E o oposto também é verdadeiro, mesmo os piores anos podem ter corridas empolgantes, deixando claro que (felizmente) existe uma componente casual que foge ao controle da pasteurização científica, sempre que os melhores pilotos do mundo disputam cada palmo de pista a mais de 300 km/h.

Mas, feita esta importante consideração, vamos lá: por que essa corrida foi tão boa?

Certo, para começar, existe a questão do posicionamento. Três dos cinco conjuntos de melhor desempenho ao longo do ano sofreram atrasos que provocaram diferenças entre a ordem de classificação e a hierarquia de ritmos, estabelecendo a condição básica para a existência de ultrapassagens: um conjunto mais rápido estar atrás de um conjunto mais lento.

Outro fator importante foi o equilíbrio de forças. As Mercedes, até então dominantes, ficaram relegadas à segunda fila, e na prova não tiveram ritmo para se impor às Ferraris ou à Red Bull de Max Verstappen. Como poucas vezes na história, o ritmo dos cinco primeiros esteve realmente próximo, o que inevitavelmente se traduz em boas corridas.

Por fim, impossível não pontuar que esteve relativamente fácil realizar ultrapassagens ao longo da corrida. Mesmo com desempenhos tão próximos, os conjuntos tiveram a chance de impor seus respectivos ritmos e escalar o pelotão, como quem joga videogame e vai avançando fase a fase.

Nesta altura, algum dirigente menos afeito a graxa e gasolina talvez esteja esfregando as mãos e dizendo: “Ótimo, então precisamos bagunçar o posicionamento, equilibrar os desempenhos e facilitar ultrapassagens, e assim todas as corridas serão emocionantes!”. E é aí que mora o perigo.

A experiência nos mostra que só existe uma forma legítima de promover diferenças entre os desempenhos de sábado e domingo, entre treinos e corrida, a fim de que exista méritos na composição do grid, e ainda assim o ordenamento inicial não reflita com exatidão a hierarquia de ritmos, tornando impossíveis as ultrapassagens. Este caminho, claro, passa por ampliar o leque de diferenças nas configurações de sábado e domingo, a começar pelo retorno dos pneus de classificação. Já durante as corridas, a melhor maneira de provocar tal cenário em meio à disputa é dar aos pilotos a condição, material e regulamentar, de escolherem se vão trocar pneus ou se vão arriscar ir até o fim com a borracha que largaram.

Quanto ao equilíbrio de forças, eu não posso deixar de lembrar o papel controverso que a pista desempenha nesta receita. Não dá para esquecer, por exemplo, que Felipe Massa conquistou na Áustria (em 2014) uma pole position pela Williams, com um carro que jamais seria tão competitivo noutras pistas. A pole de Leclerc neste fim de semana parece trazer algumas semelhanças com a de Massa, fazendo com que aquela frase de efeito besta – “o vencedor na Áustria há tempos não vence o campeonato” talvez mereça mais atenção do que de costume.

O problema aqui é que a pista austríaca – outrora forte concorrente ao título de autódromo mais fascinante do mundo – hoje se destaca das demais praças justamente pela pobreza daquilo que demanda, pela forma como aproxima desempenhos ao nivelar por baixo as exigências. Pouco mais do que um triângulo que emenda pequenas drag races em cada uma de suas faces, a pista praticamente resume-se a um acelera-e-freia contínuo, no qual a capacidade de mergulhar um pouco mais rápido nas mudanças de trajetória pode compensar eventuais vantagens de motorização. Além disso, com tempos de volta pouco acima da casa do minuto, fica sempre mais fácil haver pequenas variações na composição do grid de largada.

Já no que diz respeito às ultrapassagens, o que vimos foram três zonas de acionamento da asa-móvel, iniciadas ainda em zonas de aceleração. Considerando que não existem grandes demandas aerodinâmicas na pista, seguir alguém dentro da margem de um segundo não parecia ser tão difícil, e os benefícios da aceleração com baixo arrasto foram tais que numa determinada altura Max Verstappen assinalou a melhor volta da corrida na mesma passagem em que superou a Ferrari de Sebastian Vettel.

Seria cabotino negar que os carros atuais da Fórmula 1 encontram enormes dificuldades para ultrapassar, e que algo precisa ser feito a respeito. Há todavia, que se buscar vias naturais para isso, que não deixem a cargo da deliberação externa definir se numa disputa o cenário será favorável a quem ataca ou a quem se defende. Na Áustria essa balança evidentemente pendeu em favor dos perseguidores, ofuscando um pouco o brilho das muitas ultrapassagens que observamos. Simplesmente estava muito difícil se defender.

Agora sim, a corrida.

Uma análise do grid de largada, com a devida atenção aos pneus que cada conjunto iria utilizar, apontava para o favoritismo de Max Verstappen e das Mercedes, espalhados entre a segunda e quarta colocações e calçados com pneus amarelos, mais resistentes que os vermelhos do pole Charles Leclerc, e do 9º Sebastian Vettel, que não havia marcado tempo na Q3. A alta temperatura (34º no ar, 52º na pista) só fazia aumentar a influência dos compostos.

E então, eis que as cartas voltaram a ser embaralhadas logo nos primeiros metros.

Ao apagar das luzes vermelhas a Red Bull de Verstappen dá um soluço, demorando o suficiente para atrasar sua progressão em relação ao pelotão. Ele cairá para sétimo – o prejuízo teria sido maior se a Curva Lauda não fosse tão próxima ao grid –, perdendo posição inclusive para Vettel, que, ao contrário, teve um arranque espetacular.

Lá na frente Lando Norris também pulou muito bem, chegando a assumir a terceira posição durante alguns metros, atrás apenas do líder Leclerc e de ValteriBottas. Hamilton e um surpreendente Kimi Räikkönen, no entanto, o superariam ainda na volta inicial, sem a ajuda do DRS. Atrás deles vinham Vettel, Verstappen e Gasly, todos andando muito próximos.

Na quarta voltaVettel supera a McLaren de Norris, e abre caça à Alfa Romeo de Räikkönen. Ele irá superar o campeão mundial de 2007 na volta 7, instantes antes de Verstappen fazer o mesmo em relação a Norris, dando início à irresistível progressão que o levará a abrir uma volta de vantagem em relação ao companheiro de equipe, que até aquela altura o acompanhava. A manobra de Max também reservaria outra curiosidade: a impressionante vibração da enorme torcida holandesa, perfeitamente audível mesmo em meio ao som dos carros. Uma experiência, por sinal, que iria se repetir muitas vezes ao longo do dia.

Quando alcançou a quarta posição, Vettel tinha um atraso de 9,8s em relação ao líder, Leclerc. Max Verstappen, por sua vez, assumiria a quinta posição na volta 9, a 14,6s do líder, e já 4,2s à frente de Gasly. A progressão destes números irá mostrar que Vettel estava ligeiramente mais rápido que o companheiro de equipe no primeiro stint. Ele e Max iriam trocar voltas mais rápidas nesta fase inicial, com todos os conjuntos superando sensivelmente as janelas para troca de pneus previstas pela Pirelli.

Apagado e isolado na terceira posição, Hamilton ganha espaço na transmissão ao reclamar, via rádio, que vinha perdendo pressão aerodinâmica na dianteira. Imagens recuperadas mostram que ele havia colhido a elevação que delimita as margens do traçado na cura 1, e agora perdia alguns décimos a cada volta em virtude dos danos provocados.

Na volta 22 Bottas vai aos boxes, e Vettel o segue. A Ferrari, todavia, não estava pronta, e enquanto o finlandês fica parado por 3,5s o alemão perde 6,1s e volta à pista em oitavo, 1,2s atrás de Gasly. Na volta seguinte é Leclerc quem troca pneus, em 2,6s, voltando à pista em terceiro, a sete segundos de Max e 14 de Hamilton. Na mesma volta Vettel já supera Gasly, que irá trocar pneus na volta 26 e cair para 13º. O tetracampeão, em fim de semana de muito azar, ainda volta a perder um pouco de tempo quando Räikkönen se dirige aos boxes bem à sua frente. Com pista livre, no entanto, ele se revelaria o conjunto mais rápido da pista até as trocas de Hamilton e Verstappen, nas voltas 31 e 32, respectivamente.

Hamilton opta por trocar o bico, gastando 11 segundos para isso. Retorna à pista em quinto, mas sem ritmo para acompanhar os quatro primeiros. Verstappen, por sua vez, voltaria em quarto, a 3,5s de Vettel, que havia recuperado terreno e estava a apenas 9,1 do líder, e 5,0s de Bottas. Hamilton estava a 6,1s de Verstappen, e essa distância seria ampliada rapidamente nas próximas voltas.

Com pneus 10 voltas mais novos, Verstappen se aproxima paulatinamente de Vettel, segundo mais rápido na pista, que também descontava lentamente sua desvantagem em relação a Bottas e Leclerc. Na volta 50, quando finalmente assume a terceira posição, Max está próximo o suficiente para atacar os líderes. Vettel, por sua vez, decide ir aos boxes na mesma volta, abrindo mão de brigar com Bottas pelo último lugar no pódio. Ele irá retornar à pista com pneus vermelhos, na quinta posição, a 8,6s de Hamilton.

Verstappen tem uma bolha bastante visível no pneu dianteiro direito, mas isso não parece afetar seu desempenho. Com muita solidez ele caça e supera Bottas, e sustenta a pressão até alcançar Leclerc, no clímax da corrida.

A quatro voltas do fim surge uma oportunidade, e Max mergulha com decisão na curva 2. A manobra parece concretizada, mas Charles se mantém por fora e traciona melhor, recuperando a liderança numa disputa de qualidade excepcional. Mais uma volta e a história se repete, só que desta vez Mad Max não parece disposto a deixar espaço e faz valera máxima “Dois homens entram, um homem sai”, que tanto marcou o terceiro filme da franquia estrelada por Mel Gibson. Charles novamente tenta se defender, mas é tocado e não tem alternativa a não ser avançar pela área de escape a apelar para a direção de prova.

A manobra de Verstappen terminou por manchar uma atuação até ali impecável. Basta observar que durante a disputa pela liderança ele e Leclerc puseram uma volta sobre Gasly, que 60 giros antes o acompanhava de perto. Na penúltima volta Vettel ainda superou Hamilton pela quarta posição, mas a tensão ainda iria continuar por mais de três horas após a bandeirada, enquanto todos aguardavam pelo posicionamento dos comissários a respeito do movimento que decidiu a prova.

O precedente aberto no Canadá tornava tudo mais complexo, mas no fim prevaleceu o entendimento de que nenhuma medida que pudesse alterar o resultado da pista deveria ser tomada.

Internautas atentos trataram de se lembrar que, a exemplo do que aconteceu com Mika Häkkinen e Michael Schumacher na Bélgica, ano 2000, a manobra entre Verstappen também parecia responder a assuntos inacabados do passado.

Resta saber se ambos agora estão quites, ou se teremos novos encontros desta natureza no futuro.

Forte abraço, e uma ótima semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

8 Comments

  1. wladimir disse:

    Excelente análise, Marcio. Só tenho uma ressalva: Como é que Max merecia ser punido se foi Leclerc que fez o contato (que poderia até ser mais grave não fosse a habilidade dos dois no controle daquela curva)? Acho que você está sendo tão Emanuelle Pirro quanto o próprio (sem ofensa) para analisar o episódio. Quanto à pista austríaca me faz lembrar, em muitos casos, a saudosa Jacarepaguá e a Interlagos original. Nas duas nem sempre os vencedores tornavam-se campeões ao final. E muitos outros carros que tinham ótimos desempenhos em quaisquer das duas ficavam apagados no resto do ano.

    • Olá Wladimir, obrigado por escrever.
      Começando pelo fim, acredito que o fenômeno que você observou a respeito das pistas brasileiras tivesse uma forte influência do calendário. Muitas equipes vinham para cá com seus carros do ano anterior, ou já da temporada atual mas ainda não devidamente desenvolvidos, e por isso a hierarquia aqui não era a mesma do miolo da temporada. Em termos de atributos, certamente Jacarepaguá e mais ainda a Interlagos antiga não se comparavam à pista austríaca atual.
      Quanto à minha interpretação do acidente, ela se baseia no fato de Max não ter deixado espaço para que Leclerc se mantivesse na pista, algo que considero um dogma para qualquer disputa por posição.
      Abraço, e escreva sempre.

  2. Stephano Zerlottini Isaac disse:

    Márcio, sempre brilhante em seu texto. Eu estava esperando, hehehe!
    Posso fazer duas considerações? Na minha opinião, se fosse possível acabar com DRS, diminuir apêndices aerodinâmicos (para permitir que se “pegue” o vácuo melhor e acabar com esse Mario Kart injusto, em que que está na frente não tem como se defender) e , sobretudo, acabar com essa obrigatoriedade de para para trocar pneus (além da existência dos de classificação, e alterações de configuração treino/corrida)… Penso que isso (e, claro, as adaptações técnicas necessárias para que isso seja feito com segurança) ajudaria a possibilidade de conjuntos mais lentos se classificarem melhor e, eventualmente, esquentar as coisas. Quantas vezes Senna, na Lotus, não fez isso?
    E, permita-me dizer, achei limpa (embora dura) a manobra de Max. Houvesse um muro ali do lado de fora, Charles teria arrefecido, obrigatoriamente. (Em tempo, sei da regra do “espaço de um carro entre o oponente a linha externa da pista”. Mas quer saber, “let them race”. ) Abraço fraterno.

    • Grande Stephano, obrigado pelo retorno de sempre.
      Concordo totalmente contigo em relação às suas sugestões. Já no que diz respeito ao Verstappen, eu penso que o correto teria sido deixar espaço, como na primeira vez. Mas entendo seu ponto, e o respeito.
      Forte abraço, e tenha uma ótima semana.

  3. Salve Fernando.
    Concordo contigo. Penso que pilotos sempre precisam deixar o mínimo de espaço, e essa cultura de “espalhar” deveria ser duramente combatida.
    Pessoalmente, não teria mudado o resultado de pista nem do GP do Canadá nem neste agora, mas teria aplicado advertências a Vettel e Verstappen, de modo a deixá-los “pendurados” até o fim do ano.
    Abraço, e obrigado pelo retorno de sempre.

  4. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    equilíbrio de forças … a Formula 1 precisa disso … por diversos fatores isso aconteceu no GP da Austria
    Com relação a ultrapassagem do Verstappen, fica claro que este regulamento usado permite dois pesos duas medidas … já vimos varias situações semelhantes na Formula 1 … ora há punição ora não …
    Estes dirigentes precisam rever este regulamento …
    Na minha opinião Verstappen merecia punição … os circuitos atuais permitem os pilotos a fazerem este tipo de manobra que Verstappen fez por causa das grandes áreas de escapes, que acabam não trazendo risco de vida a quem é jogado pra fora … antigamente era ao contrário e havia mais respeito entre os pilotos … eu acho esta manobra ilegal …
    Em todo o caso não posso deixar de dizer que a corrida foi boa demais …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  5. Mauro Santana disse:

    Grande Texto, amigo Márcio!

    Com relação a corridas com poucas emoções, o GP da Áustria de 1986 foi uma corrida com poucas emoções, e com uma vitória tranquila do Prost.

    Ou seja, mesmo na fantástica temporada de 1986, numa pista incrível como era o aquele saudoso traçado da pista austríaca, aquele GP em especial, foi sem grandes emoções.

    Mas sim, se os dirigentes atuais se atentarem a estes detalhes que você lembrou, e que muito já conversamos, a F1 pode entrar novamente no rumo certo.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • É verdade, meu amigo.
      Aquela já não era minha configuração favorita da pista, pois preferia quando não havia a chicane após a reta de chegada.
      Mas, de todo modo, seria capaz de ficar vendo aqueles carros percorrendo aquela pista o dia todo, de tão bonito que era. A corrida não foi memorável, mas havia muito de automobilismo ali.
      Abraço!

Deixe um comentário para Márcio Madeira Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *