Mil! (2)

Predestinado a vencer
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O bom, o mau e o feio
23/07/2019

Em minha coluna anterior, falei sobre como a complexidade moldou a Fórmula 1 atual. A diferença, disse eu, não era tanto de ingredientes – tecnologia, glamour, excelência, presentes na categoria desde seu início –, mas de intensidade. Antes, as coisas eram discretas, sutis, lentas, por assim dizer; agora, tudo é acintoso, escancarado, urgente.

Há um ingrediente, no entanto, que inverte esta situação: era onipresente no passado, tornou-se quase que imperceptível no presente, a ponto de mal ser lembrado. Duvido que 99% dos amantes da Fórmula 1 sequer se lembrem dele quando os carros vão para a pista.

Falo de Tânatos, personificação da morte na mitologia grega, aquele que tem “o coração de ferro e as entranhas de bronze”. O mito deu nome à pulsão de morte, conceito criado por Sigmund Freud para definir o impulso instintivo e inconsciente de busca da morte ou destruição que em maior ou menor escala habita em todos nós.

Na década de 50, Tânatos cobrou a vida de 17 pilotos em GPs, sete deles americanos disputando as 500 Milhas de Indianápolis, ou em testes. Nos anos 60, foram 12 mortes, mais dez nos anos 70 e quatro entre 1980 e 1986. Desde então, foram três: Roland Ratzenberger, Ayrton Senna e Jules Bianchi, este em 17 de maio de 2015, nove meses depois do acidente que sofreu durante o GP do Japão, em Suzuka.

As estatísticas falam por si: é forçoso reconhecer que a pulsão de morte era muito mais presente entre os pilotos do passado, inclusive porque havia uma quantidade significativa menor de GPs, menos oportunidades, portanto, para Tânatos mostrar seu focinho imundo. Entre 1950 e 1959, por exemplo, foram disputados 84 GPs, coisa que, atualmente, se faz em quatro anos. Trazendo a proporção dos anos 50 para a atualidade, estaríamos chorando a morte de 42 pilotos – dois grids inteiros – ao final desta década.

Alberto Ascari, Wolfgang von Trips, Jim Clark, Jochen Rindt, Ronnie Peterson, Gilles Villeneuve e outros pilotos do passado não eram inocentes; sabiam e sabiam muito bem os riscos que corriam, a ponto até de brincarem com a ideia e não marcarem compromissos para depois da próxima corrida em que estavam inscritos. Flertavam com a morte, certamente se compraziam com isso, numa manifestação infantil de machismo. Alguns deles se manifestaram abertamente contra medidas elementares de segurança nas pistas e nos carros. Alegavam, baseados numa postura que hoje definimos como “liberal”, que ninguém era obrigado a correr em meio a árvores, precipícios e pessoas. Se o faziam, era porque queriam fazê-lo, conscientes dos riscos e de que isso poderia cobrar-lhes a vida.

Não creio que Lewis Hamilton e Sebastian Vettel se lembrem de arrumar um lugar para Tânatos em seus carros, quando se aprontam para um treino de classificação ou um GP, quase que as únicas oportunidades que lhe restaram para pilotar, já que por contrato não podem, ao contrário de seus antepassados, competir em outras categorias, e os treinos livres estão virtualmente extintos agora.

Não é a pulsão de morte que os impulsiona, pelo menos não de forma tão flagrante quanto no passado, e não se trata aqui de questionar a coragem de Hamilton, Vettel & Cia. O Mercedes F1 W10 e seus rivais são muito provavelmente os carros mais potentes e rápidos jamais fabricados na categoria. Domá-los não é coisa para qualquer um.

O que ocupou o lugar de Tânatos?

Talvez seja – quem diria! – o simples avanço da civilização.

O psicólogo e linguista Steve Pinker disse em livro recente que nunca a humanidade fomos tão pouco violentos. Sei que nem sempre é fácil acreditar nesta afirmação, mas os grandes números não mentem.

O século XX começou com o homem se deslocando a uns 20 km por hora na boleia de uma charrete. Normal que se assombrasse com algo passando à sua frente a 200 km/h, velocidade que carros de corrida atingiram já nos anos 30. Normal também que pilotos se sentissem super-homens por domarem aqueles monstros metálicos, mesmo que isso frequentemente significasse perder a vida. Nesse sentido, são especialmente emblemáticas as histórias de Achille Varzi, Rudolf Caracciola e Nino Farina, pilotos que, sobrevivendo aos seus tempos áureos nas pistas, quase que não se conformaram em seguir vivos, expondo-se continuamente a riscos desnecessários e incongruentes.

A civilização da Fórmula 1 se materializou pela elevação do seu grau de segurança e é o legado mais importante da geração de pilotos como Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi e Niki Lauda e de dirigentes como Bernie Ecclestone, Jean Marie Balestre e Max Mosley.

Pode-se contingenciar os motivos de cada um para dispensar tanta atenção

à segurança ativa e passiva na categoria, o que, vale lembrar, a encareceu significativamente. Mas, por mais maldosas que possam ser estas motivações, não há motivo para rebaixá-las. Ainda bem que foi assim. Tânatos, ainda que siga escondido por aí, é muito menos presente nas pistas hoje.

Que bom que é assim.

Mas de vez em quando escapa alguma coisa. Foi legal ver o evidente prazer de Hamilton em cravar a pole em Paul Ricard sob vento forte, que alterava as condições da pista a cada momento. “Eu amo isso”, disse o inglês, um largo sorriso no rosto, à repórter Mariana Becker.

A Fórmula 1 não está nem aí para Edmund Burke, autor da frase “aqueles que não conhecem a história estão condenados a repeti-la”, e lá vamos nós de novo com aquele papo de “nova Fórmula 1” a partir de 2021.

Carros asa, pneus de perfil fino (duas coisas difíceis de serem juntadas), simplificação da aerodinâmica (de novo!), reabastecimento (de novo!), proibição de cobertores pneus (LOL), limitação de controles eletrônicos, menos horas nos túneis de vento, blá blá blá.

A repetição rotineira desgasta a receita. De repente, poderíamos apelar para o sarcasmo e tentar ideias estapafúrdias, como sortear os carros entre os pilotos corrida a corrida e encharcar a pista propositadamente. Ideias idiotas parecem bem-vindas atualmente na política brasileira e mundial. Por que não tentá-las também na Fórmula 1?

E, claro, lá por 2028, anunciamos “uma nova Fórmula 1” para 2030.

Bom final de semana a todos

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

10 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Excelente Texto Edu!

    Este tema me deixou tentado em fazer uma pesquisa sobre quantos acidentes fatais ocorreram também na Motovelocidade.

    Concordo contigo sobre este novo regulamento, e muito provavelmente teremos um resultado final do “mais do mesmo”.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Fernando Marques disse:

    Minto,

    só agora reparei o incêndio por trás da Tyrrel …

    me descupem

  3. Fernando Marques disse:

    Edu,

    assim como Rubergil Jr., as fotos da sua coluna são demais da conta. Muito show. J. Stewart em 3 momentos sensacionais. A primeira foto com Stewart de lado, certamente com o pé no fundo do acelerador segurando o carro no braço, é fantástica. Se o Rubergil não estiver certo, pode ser o carro de 1970, já que ele foi campeão em 69 e deve ter usado o numero 1 também. A segunda é um da Equipe Matra de que deu o titulo a ele em 69. Apesar dos franceses ter um carro com motor Matra, Stewart usou um Ford. A ultima é a Tyrrel de 72 ou 73. Junto a Ferrari de Ickx.
    O nível das fotos exemplifica o alto nível de seu texto.
    Para mim uma autêntica aula de Formula 1 e da sua história resumidas em sensatas palavras.
    A Formula 1 precisa urgentemente a voltar a ter carros que façam curvas como o da foto acima, e assim deixarem de ser carrinho de autorama como são hoje em dia.

    Nota 1000

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Rafael Friedrich disse:

      Pois é, é o que mais sinto falta na Fórmula 1 atual, carros em trilhos é de lascar. Boa semana a todos.

  4. Rubergil Jr. disse:

    Essa foto do Tyrrel e do Ferrari lado a lado (1972 ao que me parece, sem pesquisar) é maravilhosa, lindíssima, talvez a mais bela que e tenha visto este ano.

    Mas a foto inicial do artigo… confesso que me arrepiou pela carga emocional, e fiquei uns 5 minutos pensando nela.

    Que texto Edu. Mais um artigo matador – já que é pra falar de morte…

    Rubergil Jr

    • Edu disse:

      Obrigado, Rubergil

      sobre as fotos, Tyrrell e Ferrari de Stewart e Jacky Ickx estão alinhados em 3o e 4o lugares pra largada em Clermont-Ferrand 1972. Stewart, tomou quase dois segundos do pole Chris Amon, mas ganhou a corrida, com Emerson terminando em 2o. Ickx teve problemas e se arrastou até o final da prova, marcada pelo excepcional desempenho de Amon, que só não ganhou por conta de um pneu furado, e também pelo famoso acidente que vitimou Hemult Marko.

      Quanto às outras fotos, na preto&branco vemos Stewart e seu Matra Ford em Silverstone 69, uma das grandes corridas do escocês, aquela em que duelou com Jochen Rindt. A foto do incêndio, mostra Stewart passando pelos carros de Ickx e Jackie Oliver. Os dois escaparam do acidente, que gerou um córrego de fogo atravessando a pista. Também neste GP a vitória foi de Stewart.

      Abraços

      Edu

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