10 Horas de Spa. Tudo ou nada?

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O Grand Prix da Bélgica de 1931 seguia o mesmo modelo dos GPs da Itália e da França daquele ano, com 10 horas de duração, dois pilotos por carro.

A rivalidade entre Alfa e Bugatti teria mais um capítulo crucial com a ausência da Maserati. Percebendo que seus carros estavam ficando para trás, os irmãos Maserati optaram por concentrar esforços visando o GP da Alemanha, que ocorreria na semana seguinte.

Pode parecer curioso atualmente, mas essa era apenas a terceira vez que essa prova era disputada em Spa-Francorchamps, circuito concebido em 1920.

Na primeira, 1925, Alberto Ascari venceu e estabeleceu o recorde de volta para os quase 15 km de extensão, 6’49”, média de 131,49 km/h, com uma Alfa P2 de 2.0L.

A segunda edição, em 1930, tinha sido vencida por Louis Chiron com uma Bugatti T35C também de 2.0L.

 

 

Para o duelo de 1931, a Alfa levou duas 2.3L de 8 cilindros em linha e uma terceira com mesmo motor mas na configuração Targa Florio, com o tanque de combustível exposto e bancos tipo “balde”.

Esta seria pilotada por Ferdinando “Nando” Minoia e Giovanni Minozzi, as demais por Nuvolari/Borzachini e Campari/Zehender.  Percebendo que faltava velocidade durante o GP da França, a Alfa fez modificações no eixo traseiro dos 3 carros.

A Bugatti levou três 2.3L também de 8 cilindros em linha, duplo comando de válvulas, para Varzi/Chiron, Divo/Bouriat e “W Williams”/Conelli. Tendo obtido bons resultados com pneus Dunlop no GP da França os carros continuariam calçados com essa marca.

Os pilotos eram membros da elite do automobilismo na época.

Borzacchini e Campari eram ases estabelecidos antes mesmo dos holofote se concentrarem em Nuvolari/Varzi, em uma época em que a Itália era um celeiro de pilotos de alta qualidade. Minoia e Minozzi eram jovens talentos em plena ascensão. Goffredo “Freddy” Zehender, nascido na Calabria, era conde e podia comprar carros de ponta, caso não tivesse lugar em equipe oficial.

O monegasco Chiron era outro ás consolidado há tempos, praticamente um terceiro elemento junto a Varzi/Nuvolari, sendo amigo e eventual colega de equipe de ambos. Albert Divo, parisiense, já tinha vencido duas Targa Florio. Outro parisiense, outro conde, Guy Bouriat tinha feito grandes apresentações pela Bugatti, em particular no GP da Europa do ano anterior, quase vencendo. “W. Williams” era o pseudônimo de Charles William Grover-Williams. Mãe francesa, pai inglês radicado na França, nasceu em Montrouge, região do Alto-Sena. Em 1929 tinha vencido o GP de Monaco, com sua Bugatti verde, e o GP da França. Tido como um gentleman reservado, era um personagem misterioso mesmo para seus colegas, inclusive porque não corria com seu nome real. Carlo Alberto “Caberto” Conelli era o terceiro conde do grid, natural de Belgirate, Piemonte, e também tinha reputação de piloto competitivo. Além de obter sucesso em outras categorias ele tinha sido piloto de caça na 1a. Guerra, na Esquadrilha Baracca, comandada pelo ás dos ases Itálianos, cujo emblema pessoal viria se tornar símbolo da Scuderia Ferrari no futuro. Com quatro vitórias em seu ativo, mereceu várias condecorações.

Completavam o grid seis inscrições independentes. Uma Alfa 2.3L que tinha participado das 24 Horas de Spa na semana anterior, como carro de 4 lugares. Para esta corrida eles removeram a carroceria, transformando o carro em um puro-sangue de 2 lugares. Pilotos: Henry Birkin e Brian Lewis.

Jean Pesato e Pierre Felix alinharam a Alfa 1750 6 cilindros com que tinham vencido as 24 Horas de Spa na categoria até 2 litros. Esta também foi transformada, ao longo dessa semana, para a versão Grand Prix.

Outro carro transformado era a Mercedes SSK dos belgas Henri Stoffel e Boris Iwanowski, também aliviada de todo peso possível.

Jean Pierre Wimille alinhou sua Bugatti 2.3L em dupla com Jean Gaupillat.

Finalmente, o construtor francês Charles Montier levou dois carros feitos por ele, equipados com motor Ford modelo A de 3.3L, 4 cilindros em linha. Ele pilotaria um e Ferdinand, seu filho, o outro.

 

 

Dada a largada, Varzi assume a liderança e mesmo partindo parado completa a primeira volta 8 segundos abaixo do recorde de Ascari. Nuvolari está em seu encalço. Os dois travam seu aguardado duelo, curva a curva, sem tréguas, até que na terceira volta Tazio ultrapassa o amigo na curva Burneville. Na volta seguinte ele baixa o recorde para 6’25”, média de 139.32 km/h.

Como se espera, Varzi não relaxa e reassume a ponta no final da quinta volta.

Ao cabo da primeira hora, altura da 9a. volta, é Tazio quem lidera, com Achille em sua cola.

“Williams” em terceiro, seguido por Minoia, Wimille, Birkin, Divo, Campari, Stoffel, C. Montier, Pesato e F. Montier.

Antes de completar a terceira hora todos precisavam parar para abastecer e trocar pilotos/pneus. Assim a Alfa e a Bugatti que disputavam a ponta passam a ser conduzidas por Borzacchini e Chiron. Imediatamente Louis passou a perseguir Baconin, sendo bem sucedido na volta 25.

Mesmo fazendo média de 135,48 km/h, quase 4km mais lento que Nuvolari, ele aumenta a distância na volta seguinte.

Atrás de Borzacchini vinham Conelli, Minozzi, Bouriat, Gaupillat, Zehender, Lewis, Iwanowski, C.Montier, Felix e F. Montier. Traduzindo: Bugatti, Alfa, Bugatti, Alfa, Bugatti, Bugatti, Alfa, a ordem dos principais competidores.

No início da quarta hora Chiron bate o recorde da volta, marcando 6’22”, média de 140,41 km/h. Andando cada vez mais rápido, logo abaixa o tempo para 6’21”. Borzacchini não acompanha esse ritmo. Atrás dele segue Conelli, Bouriat ganhando a posição de Minozzi, depois Zehender e Lewis à frente de Gaupillat, os demais sem alteração.

Louis parece estar especialmente competitivo e na volta 37 marca 6’19”, média de 141,53 km/h, tempo que só é igualado por Baconin 5 voltas depois. Mas o monegasco continua empolgado, afinal ele tinha vencido a edição anterior dessa prova, e marca 6’18”06 mais adiante.

Esta acaba sendo a melhor volta da prova e novo recorde da pista.

A vantagem de Chiron já alcança 4 minutos, cerca de 9km. Estará impondo um esforço grande demais para a Bugatti?

Parece que sim porque pouco depois ele chega caminhando aos boxes. O magneto tinha entregado os pontos. Ele pega outro, as ferramentas necessárias e volta para fazer o reparo.

E assim toma uma volta de Borzacchini e Conelli.

Na altura da metade da prova “Williams” tinha substituído Conelli sem perder o segundo posto e Wimille estava no lugar de Gaupillat.

Após Chiron vinha Minozzi, tendo recuperado a posição de Bouriat. Birkin e Ivanowski tinham ultrapassado Zehender e Wimille, com Felix e os Montier fechando o cortejo.

Não era só o magneto. Não demorou muito para aparecerem outros problemas, parece que no comando de válvulas, e a audiência vê Louis encostar em definitivo a Bugatti ao lado da pista.

Campari não tem melhor sorte. Na reta que leva à La Source sua Alfa repentinamente pega fogo. Ele encosta, usa o extintor mas este não é suficiente para dominar o incêndio.

Então as equipes Alfa e Bugatti continuavam empatadas, agora dois contra dois. Mas logo a Bugatti de Divo/Bouriat tem o diferencial quebrado e também abandona.

Após 6 horas a ordem era: Nuvolari, “Williams”, Minoia, Lewis, Stoffel, Wimille, Pesato e os Montier.

A Bugatti tem apenas uma chance de ameaçar a vitória da Alfa. Nuvolari tem uma vantagem de 4 minutos sobre a T51 restante e assim o boxe dá instruções para diminuir o ritmo, o que ele faz.

Mas Conelli não é homem de fugir do combate e trata de diminuir a distância.

Após 7 horas Tazio, aquele que dava a impressão de ser incapaz de tirar o pé do fundo, está fazendo média de 133.6 km/h. Atrás de Conelli vem a Alfa de Minoia/Minozzi, 2 voltas atrás, a de Birkin/Lewis, 4 voltas atrás, os demais com 5 a 15 voltas de atraso.

Quando começa a penúltima hora Nuvolari está 4 km à frente de Conelli.

A Bugatti vem aos boxes para trocar piloto, pneus, freios e abastecer. Isto tudo leva meros 2 minutos e 02 segundos, excelente tempo para a época. É preciso lembrar que a Bugatti tinha desenvolvido um sistema pelo qual os tambores de freios saiam junto com as rodas, o que permitia que essa troca fosse viável nesse espaço de tempo.

A Alfa líder também pára e Borzacchini assume, com 2 minutos de vantagem sobre “Williams”, que tem ordem para dar tudo que tem.

E ele entrega. Virando na faixa dos 6’30″ vai descontando em torno de 10 segundos por volta.

Estaria acontecendo algo de anormal com a Alfa?

Borzacchini pára nos boxes e relata que está tendo problemas de alimentação de combustível.

Os mecânicos atacam o assunto e Nuvolari é encarregado da última perseguição, a prova se aproxima do final. Mas a Alfa sobe a Eau Rouge com o motor falhando. Tazio completa a volta e entra nos boxes, informando que o problema está na bobina.

Os mecânicos trocam a peça mas não a tempo de evitar que a Bugatti imponha uma volta de vantagem.

Tazio parte novamente e com seu tradicional empenho passa “Williams”. Mas nem ele consegue descontar a volta de vantagem. Cruza a linha de chegada 1/4 de volta à frente do vencedor.

Computando os tempos de parada da Bugatti e da Alfa, a primeira esteve nos boxes por um total de 5’4″ e a segunda por 8’45”.

Curioso é que Chiron, apelidado “A velha raposa” por sua astúcia, parece ter esquecido que a prova durava 10 horas. Nuvolari, com a imagem de piloto “tudo-ou-nada”, foi perfeitamente capaz de manter um ritmo suficiente para uma liderança livre de sustos e só perdeu a corrida por um diagnóstico errado do companheiro em momento crítico.

Após Nuvolari chegaram mais 2 Alfa, sendo que Nando Minoia se tornou o campeão europeu, secundado por Campari por diferença mínima.

“W Williams” retirou-se das corridas em 1933, tendo se tornado o piloto inglês mais bem sucedido antes da 2a. Guerra. Quando eclodiu o conflito foi para a Inglaterra, alistou-se e, sendo perfeitamente fluente em francês, foi recrutado pelo SOE (Special Operations Executive, o setor dos comandos ingleses) para atuar na Resistência Francesa, aproveitando seus contatos para organizar células e esforços. Consta que foi fuzilado pela Gestapo.

Seria uma época em que gigantes povoavam o automobilismo?

 

Carlos Chiesa

 

 

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

5 Comments

  1. Fernando marques disse:

    Não citei os Fittipaldis, pois apesar de conhecer a história deles, eu era criança na época e nada sabia…
    Não caso do Piquet, são contrário, já tinha idade. E já acompanhava sua carreira.
    Os Fittipaldis não tinham dinheiro mas por causa do Barão nasceram o mundo das corridas.
    Bem diferente do Piquet que corria escondido dos pais, que nunca tiveram nenhum contato com o automobilismo.

    Mas os Fittipaldis são grandes exemplos.

    Fernando Marques

  2. Carlos disse:

    Conelli era um conde, creio que tinha uma certa condição confortável. Mas Williams não, parece que seu pai era treinador de cavalos contratado por algum rico francês. Williams conseguiu comprar sua Bugatti trabalhando como motorista de carros de luxo para a elite francesa. Os Fitti também não eram propriamente milionários, embora tivessem uma boa condição. Como se sabe, criaram a fábrica de volantes e a venderam para ir para a Europa. Também participaram de rallye de regularidade patrocinado por uma cia. aérea européia para obter passagem sem custo.

  3. Carlos disse:

    Olá Fernando. Também sou fascinado por Spa. Só pelas histórias que encontro já fico com a certeza de que era uma época de gigantes. Conelli, que não teve uma carreira regular na categoria, tinha sido praticamente um ás da caça italiana. Não era um riquinho metido a besta posando de (falso) herói. E “Williams”… o sujeito saltou de pára-quedas na França ocupada e passou uns 3 anos organizando células e atividades da Resistência, até ser traído. Foi torturado e finalmente fuzilado pouco antes do final da guerra. A meu ver, eram rivais pra lá de respeitáveis para Nuvolari e Varzi, p. ex..

  4. Fernando Marques disse:

    Chiesa,

    mais uma história fantástica e sensacional … SPA é SPA … sempre foi desde o inicio dos anos 1900 … é meu circuito preferido mesmo apesar das mudanças que sofreu em nome da segurança pela Formula 1 …

    ” Seria uma época em que gigantes povoavam o automobilismo? ”

    Não resta duvidas que sim … quem viu jamais esqueceu …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Fernando marques disse:

      Chiesa,

      Exemplos de pilotos como o Conelli e o Williams que não eram riquinhos sempre tiveram a minha admiração … Ainda mais no caso deles em época que a Europa vivia em guerras … Esses caras certamente eram excepcionais.
      Talvez aí resida este fato a ter Piquet como o melhor piloto brasileiro da história na fórmula 1.

      Fernando Marques

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