1984, parte 1

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A temporada de estreia de Ayrton Senna ainda tem muito a nos revelar sobre sua personalidade e sua capacidade como piloto.

Que tal entregar um carro projetado por Rory Byrne, empurrado por Brian Hart e preparado por Pat Symonds para Ayrton Senna pilotar? Poucos ousariam discordar que estamos falando aqui de uma combinação com potencial suficiente para brigar por títulos mundiais, e foi exatamente esse time de medalhões que a saudosa e romântica equipe Toleman conseguiu alinhar no já longínquo ano de 1984. Uma parceria estabelecida antes do auge dos principais envolvidos e longe dos grandes orçamentos que suas respectivas competências logo iriam justificar, mas, ainda assim, interessante o bastante para merecer uma análise mais detalhada, que vá além dos resultados obtidos, bem como das batidas – ainda que geralmente mal contadas – histórias da emblemática corrida em Mônaco, da não classificação em Imola e do desfecho litigioso da parceria ao fim da temporada.

Passados mais de trinta anos, algumas entrevistas recentes jogaram nova e reveladora luz sobre certos episódios, ajudando a compreender, também, a qualidade do serviço realizado ao longo do ano por aquele grupo de jovens brilhantes. Convido os leitores, portanto, a um passeio em nosso DeLorean, rumo a 1984.

Jacarepaguá, 25 de março

A equipe iria começar a temporada ainda utilizando o modelo TG183B, que na temporada anterior havia apresentado desempenho bastante decente, tendo terminado por cinco vezes na zona de pontuação. Durante os meses do inverno europeu, contudo, o projeto havia se tornado bastante defasado, num momento em que as equipes desenhavam carros efetivamente adequados (e não adaptados, como tantas vezes ocorreu em 1983) ao fim dos fundos projetados e das minissaias. Ainda assim, nos treinos Ayrton marcou o melhor tempo entre os carros equipados com pneus Pirelli, girando 1,78s mais rápido que seu companheiro, Johnny Cecotto. O bom desempenho individual, contudo, não levou o futuro tricampeão além da 16ª colocação no grid, tendo sofrido com pneus que dechapavam e com uma quebra de motor que Brian Hart atribuiu a excesso de rotações. Na corrida, Senna chegou a andar em 13º antes de inaugurar a lista de abandonos ao ficar sem pressão no turbo.

Kyalami, 7 de abril

Após a falha no Rio, Brian Hart conseguiu rastrear a origem do problema até encontrar peças problemáticas fornecidas pela Holset, que foram prontamente alteradas. A evolução, contudo, não impediu que Senna enfrentasse problemas com a baixa pressão de óleo, e um motor que rateou durante toda a sexta-feira. No sábado, uma pequena melhora e o 13º lugar no grid.

Ainda no início da corrida Ayrton voltou a ter problemas com o turbo e, para piorar ainda mais, colheu detritos na reta principal enquanto olhava pelos retrovisores, danificando a asa dianteira. O carro perdeu downforce e, por mais incoerente que possa parecer, tornou-se ainda mais pesado para manobrar pelo volante. Senna limitou-se a levar o carro até o fim, num esforço que lhe valeu seu primeiro ponto na F1, mas o obrigou a ser tratado por desidratação ao fim da prova.

Zolder, 29 de abril

Problemas elétricos que afetaram o sistema de ignição levaram Ayrton a se classificar apenas na 19ª posição, meio segundo e três posições atrás de seu companheiro de equipe. Na corrida, nenhum avanço: diante das ondulações da pista e do radiador instalado no bico, a altura do carro teve de ser aumentada, prejudicando a estabilidade do conjunto. Senna novamente levou o carro até o fim, desta vez na sétima posição, duas voltas atrás da vencedora Ferrari de Alboreto.

Interlúdio 1: Dijon, teste secreto de pneus, data desconhecida

Ainda sob contrato com a Pirelli, a Toleman realizou um teste secreto com a Michelin em Dijon. Que, nas palavras de Alex Hawkridge, chefe da equipe Toleman, simplesmente por ter sido realizado já “diz muito sobre o que Pierre Dupasquier, homem forte da Michelin à época, pensava sobre Senna”.

Ainda de acordo com Hawkridge, “a Michelin levou dois caminhões cheios de pneus velhos – todos velhos – porque tinham um contrato com a McLaren que os impedia de fornecer a especificação mais recente a novos times. Dupasquier, que era muito sagaz, basicamente foi ao estoque para misturar e combinar, procurando para ver se havia algo no velho inventário que pudesse funcionar. (…) No fim do dia, Ayrton estava marcando tempos mais rápidos do que aqueles assinalados pela McLaren com pneus de 1984 no último teste que haviam realizado ali, cerca de três semanas antes. Portanto, nós ficamos muito confiantes de que, se pudéssemos misturar e combinar aqueles velhos pneus, ficaríamos muito bem servidos.”

“Anunciar a troca de fornecedor em Imola não desceu nada bem, e não era o que havíamos planejado fazer, mas foi o que aconteceu em função da logística, das circunstâncias e prazos de comunicação. Além disso, quando começamos a trabalhar com a Michelin encontramos uma realidade bem diferente da que, ingenuamente, acreditávamos que iria ser, com a fábrica trazendo carregamentos e nos dando a chance de escolher os compostos. Em vez disso, Dupasquier nos dava o que acreditava que iria funcionar, que era diferente do que nós e Senna acreditávamos. Assim, na realidade das corridas, nós jamais tivemos por parte da Michelin a performance que esperávamos.”

Imola, 6 de maio

As fontes divergem quanto ao motivo que impediu a Toleman de testar na sexta-feira. Há quem diga que o imbróglio com a Pirelli nasceu de um teste que não foi devidamente pago; há quem diga que nasceu a partir do anúncio do iminente acordo da equipe com a Michelin.

O fato é que Ayrton voltou a sofrer com problemas de ignição na chuvosa manhã de sábado, e depois com a falta de pressão na bomba de combustível na última sessão de classificação, ficando fora de um GP pela única vez em sua carreira.

Interlúdio 2: Corrida dos Campeões, Nürburgring, 12 de maio

Tendo sido convidado a integrar o time de campeões na corrida festiva organizada pela Mercedes para a inauguração do novo traçado de Nürburgring graças à desistência de Emerson Fittipaldi, que estava envolvido no processo de qualificação para sua primeira participação nas 500 milhas de Indianápolis, Senna agarrou a oportunidade com unhas e dentes. E, debaixo de chuva, bateu com equipamento idêntico todos os campeões mundiais vivos, exceto Fangio, Stewart, Andretti, Piquet e o já citado Emerson, além de uma farta lista de estrelas do esporte.

A vitória no evento não contou pontos para nenhum campeonato, mas certamente deu a Senna a confiança necessária para saber que poderia enfrentar e bater os melhores do mundo, desde que tivesse equipamento para isso.

Dijon, 20 de maio

O aguardado Toleman TG184 finalmente fez sua estreia, e Senna estava maravilhado com seu comportamento, agora calçado com pneus Michelin de 1983. “Não dá para comparar o equilíbrio deste carro com o do anterior. Sinto que posso tirar tempo de qualquer um nas curvas”.

Apesar do sensível salto no desempenho, Ayrton perdeu um jogo de pneus de classificação quando Niki Lauda lançou o motor logo à sua frente, e assim não conseguiu ir além da 13ª colocação no grid. Na corrida o conjunto conseguiu alcançar a 9ª posição, antes de abandonar novamente por problemas relacionados ao turbo.

Mônaco, 3 de junho

Ao longo de toda a sua carreira, Ayrton Senna jamais encontrou condições de pista tão favoráveis às suas principais virtudes (numa abordagem mais abrangente, a capacidade de encontrar e quantificar o grip com extrema rapidez) do que em Mônaco, 1984. Pista de rua, sob chuva de intensidade variável. Disputa em meio a dúvidas e experimentações constantes, que jamais deixaram os pilotos chegarem à terceira fase da pilotagem (repetição). E, para melhorar, a alegada inexistência de pneus de chuva de 1983 deu a Senna, momentaneamente, uma importantíssima paridade de compostos em relação aos melhores times. Era tudo que ele precisava para brilhar.

A história todos conhecem, mas os detalhes nem tanto. Em recente entrevista ao jornalista Tony Dodgins, Alex Hawkridge rasgou elogios que, se tivessem partido de um brasileiro, certamente teriam sido classificados como “exagero de viúvas”.

“Sua performance em Mônaco em 1984 foi espantosa, porque ele tinha menos experiência do que qualquer um, e ainda assim, tecnicamente, pilotou tão melhor que todos os demais, usando as marchas para controlar sua tração e o acelerador para conservar a pressão do turbo. A combinação dos dois fatores significou que às vezes ele era 5s mais rápido que Prost numa única volta. Ridículo.”

“Na era turbo você sabia quando era Senna quem estava chegando, mesmo quando ele estava a uma milha de distância, especialmente num lugar como Mônaco. Ele era o único que constantemente ficava pedalando o acelerador em meio às curvas para manter o turbo girando rápido, de modo a ter menos lag nas zonas de aceleração. Isso funcionou muito bem na chuva, conjugado ao fato de que ele estava trocando as marchas muito antes dos demais pilotos.”

“Para ‘telegrafar’ o acelerador ele estava patinando a embreagem, o que teria sido uma estratégia extremamente arriscada se você não tivesse o toque de um anjo. Ele sabia exatamente em que ponto a embreagem iria colar e assim podia pedalar o acelerador. Quando você estava fora da janela de potência num motor turbo, o boost não aparecia até, digamos, 8 mil rpm. Então, se você pudesse manter as rotações neste patamar, ia manter o turbo girando muito próximo do ponto em que ele começa a entregar o torque.”

“Havia duas técnicas sendo aplicadas: uma envolvia patinar a embreagem e modular o acelerador, e a outra passava por saber quanto de acelerador você podia telegrafar antes de perder tração. Era uma combinação das duas coisas. Na Loews ele patinava a embreagem e em outros lugares, como a Rascasse, ele estava telegrafando o acelerador logo abaixo da curva de torque. Ninguém o disse para fazer aquilo ou o ensinou a fazer, ele simplesmente fez. Para ele era apenas uma coisa óbvia a se fazer, mas ninguém mais estava fazendo.”

“Aquelas eram o tipo de coisas que as pessoas não compreendiam em relação a Senna. Nós sabíamos porque ele estava pilotando para nós, mas mesmo quem estava supostamente observando não tinha ideia do quão bom ele era. Ele obviamente era julgado por seus resultados, mas ninguém sabia realmente como ele os estava obtendo.”

A íntegra desta entrevista pode ser vista no excelente livro “Ayrton Senna: all his races”, que recomendo fortemente.

O restante desta história a gente conta em nosso próximo encontro.

Forte abraço, e tenham todos uma ótima semana.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

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