A era de grandes conquistas brasileiras na Fórmula 1 aconteceu num período de exatos 22 anos. Foi de 1º de maio de 1972 a 1º de maio de 1994. Na primeira data, Emerson Fittipaldi vencia o GP da Espanha, em Jarama e com isso começava a decolar na campanha que o levaria ao seu primeiro título mundial. E a segunda data nem é preciso dizer, todos lembram o que aconteceu naquele dia, e o que estavam fazendo naquele fatídico dia.
Durante esse longo período em que tivemos brasileiros no topo do mundo, as conquistas se expandiram e foram além da F1. Assim como já havia feito na F1, Emerson novamente bancou o bandeirante desbravador e recomeçou sua vida no automobilismo dos Estados Unidos. Não demoraria muito e já estava de novo no grupo dos vitoriosos, a ganhar corridas e obter grandes feitos, como o título da Cart em 1989 e suas duas vitórias nas 500 milhas de Indianápolis. Era “natural” ver brasileiros vencendo.
E nesse cenário, outro brasileiro também conquista um campeonato mundial. Talvez o título menos lembrado, e que é homenageado com justiça nesta coluna que escrevi com uma pequena ajuda do meu amigo Lucas Giavoni. Há 30 anos, o Brasil conquistava um título inédito com Raul Boesel, o de Campeão do Mundial de Marcas pela Jaguar.
Esse título nasceu de algumas portas na cara que Boesel tomou na vida.
O paranaense Raul despontou numa carreira meteórica: em apenas dois anos de Inglaterra (um na F-Ford, outro na F3) ele já estava na F1. Só que o começo em 1982 pela March foi muito difícil, e as coisas não ficaram melhores quando se mudou pra Ligier, que em 1983 projetou o pior carro desde que estrearam na F1, em 1976. Sem marcar ponto algum e sem ter a chance de mostrar seu potencial, estava sem lugar na categoria. Porta na cara.
Seguindo os passos de Emerson, Raul tentou explorar as oportunidades do outro lado do Atlântico. Assinou pela Dick Simon Racing e fez 10 corridas em 1985, e a temporada toda de 1986 da Indy. Ao final do ano, Carl Hass entrou em contato com ele. Fizeram um contrato de boca para a temporada de 1987, para que Boesel fizesse dupla com o lendário Mario Andretti na Newman Haas. Era a melhor oportunidade de sua vida.
Estava tudo OK, mas, às vésperas do Natal de 86 aqui no Brasil, Carl Hass telefonou e jogou um baldão de água fria. Mario Andretti não queria um segundo piloto na equipe, e como ele tinha muita influência com Paul Newman, o contrato acabou sendo cancelado. Como Boesel tinha apostado todas as fichas nesse negócio, ficou sem plano B, e novamente sem emprego. E o que era pior, com todas as equipes de F1 e de Indy já com vagas preenchidas. A grande oportunidade virou uma porta na cara ainda mais dolorida.
Literalmente sem ter pra onde correr, Boesel viu numa edição da revista AutoSport que a equipe Jaguar estava a procura de pilotos para disputar o Mundial de Marcas, e que estavam chateados, pois a maioria dos pilotos diziam que só topariam fazer parte do time se não arrumassem algo na F1. Boesel obviamente não tinha esse “problema”.
Raul se interessou e foi chamado para fazer um teste em Paul Ricard. A Jaguar já tinha sob contato Eddie Cheever, Jan Lammers e John Watson, de modo que havia apenas uma vaga.
No segundo dia de testes, Tom Walkinshaw, que era o dono da equipe, solicitou à equipe que colocasse um jogo novo de pneus para que Cheever andasse 20 voltas, e após isso, solicitou o mesmo para o Raul.
Boesel, que nunca havia guiado um Esporte-Protótipo em sua carreira, surpreendeu a todos. Com o novo XRJ8, completou as 20 voltas sendo mais rápido que Cheever, gastando menos combustível, numa época que o consumo de combustível para cada etapa era bastante crítico. E ele fez o teste “no escuro”, já que a equipe não mostrou os tempos de volta a cada passagem.
Walkinshaw ficou tão satisfeito que fez um pré-contrato ali mesmo, à mão, para ter Boesel no time. E logo em seguida já foram decididas as duplas para o campeonato: carro # 4 para Cheever e Boesel e carro #6 para Watson e Lammers.
Boesel formava uma dupla forte com Cheever, mas este foi chamado para correr pela Arrows na F1. Isso significava que quando o calendário dos dois campeonatos coincidisse, Boesel teria que fazer dupla com outro piloto. Walkinshaw chamou o dinamarquês John Nielsen. Mas Cheever afirmou com convicção que Boesel teria chances de ser campeão, frase que ficou na cabeça do brasileiro.
E não é que Cheever estava certo?
Para o Mundial de 1987, o Jaguar XJR8, com seu espetacular motor V12 de 7 litros, finalmente conseguia encarar o já lendário Porsche 956/962, da equipe Rothmans oficial e as muitas equipes particulares.
Nas quatro primeiras etapas, duas vitórias para cada dupla: Watson e Lammers venceram a abertura em Jarama, e o terceiro round, em Monza, enquanto Boesel e Cheever venceram em Jerez e Silverstone, etapas 2 e 4. A Jaguar tomou um grande tombo na etapa 5, as 24 Horas de Le Mans, vencida pelo Porsche de Hans Stuck e Derek Bell, dois cobras do mundo do endurance. No único Jaguar que completou a prova, Boesel chegou apenas na 5ª colocação.
Depois de um 4º lugar em Norisring, Boesel voltou a vencer na etapa 7, em Brands Hatch, sua primeira vitória em dupla com Nielsen, que provou ser um bom substituto. O momento era todo de Boesel, que ganhou também em Nürburgring, e foi para a penúltima etapa, em Spa-Francorchamps, com chances de fechar o título de pilotos por antecipação. A Jaguar já era campeã entre construtores, mas Stuck e Bell ainda tinham chances matemáticas de roubar a taça do brasileiro.
Para não correr riscos, Walkinshaw inscreveu Boesel nos três carros que participariam da prova de 1000 quilômetros – recurso que era válido naquele campeonato. O #4 ficou nas mãos de Cheever e Nielsen, o #5 com a dupla de sempre de Watson com Lammers, e ainda havia o #6 para Martin Brundle e Johnny Dumfries.
Numa corrida sob forte chuva a partir da segunda hora, após uma batalha dura contra os Porsches e contra o Sauber que era cada vez mais rápido (e que dominaria a categoria a partir de 1989), o carro #6 surge com mais chances de vitória.
Boesel, que não tinha pilotado aquele carro por todo o fim de semana, respondeu às expectativas, conduziu o bólido com propriedade e recebeu a quadriculada em primeiro lugar, selando aquele título inédito, que ele ganhava de maneira isolada. Para completar a festa da Jaguar, Watson e Lammers venceram a etapa final de Fuji, e ficaram com o vice-campeonato.
Como eu disse lá no começo desse texto, o Brasil vinha de muitos títulos de todas as partes. Boesel venceu em 1987, mesmo ano do terceiro título de Nelson Piquet, e que ainda teve Ayrton Senna quase sendo vice. A Fórmula 1 estava muito em alta para os brasileiros, diferente do que acontece hoje, em que estamos prestes a não ter mais pilotos do país por lá com a (definitiva) aposentadoria de Felipe Massa.
Talvez hoje essa conquista fosse mais valorizada… seria como um brasileiro ganhando a FIA WEC pela Porsche ou Toyota nos dias de hoje. Até hoje são poucos os fãs brasileiros que gostam de endurance. Não faz parte da nossa cultura, tanto que meu texto anterior foi sobre a única participação de José Carlos Pace em Le Mans, quando ele correu pela Ferrari em 1973, chegou em segundo lugar e nunca mais quis aparecer por lá.
O próprio Boesel infelizmente não permaneceu no Mundial de Marcas para defender o seu título, o que talvez fosse um movimento para o público daqui gostar mais da categoria. Em 1988, voltou para a Indy, e até fez boas campanhas. Em 1993, foi 5º colocado, naquele inesquecível duelo em que Nigel Mansell foi campeão e Emerson foi vice.
O título de Boesel também é pouco valorizado porque o piloto, com um pouquinho de sorte, também seria vencedor das 24 Horas de Le Mans e das 500 milhas de Indianápolis. Ele bateu na trave nas duas.
A Indy 500 de 1989 ficou marcada pelo apoteótico final em que Emerson e Al Unser Jr. dividiram a curva e o americano levou a pior, indo parar no muro. Pois se Emerson também perdesse o controle e batesse (o que não aconteceu por muito, muito pouco), o vencedor seria Boesel, que estava em 3º, duas voltas atrás.
Em 1993, Boesel estava voando no começo, mas mais uma vez apareceu Mario Andretti para lhe puxar o tapete. Ele tomou um stop and go ainda no primeiro quarto de corrida, quando saiu na frente de Mario numa saída de pits em que o americano estava muito mais lento. Boesel perdeu uma volta, mas ainda sim chegou em quarto, com vitória novamente de Emerson.
E em Le Mans, Boesel participou três vezes. Após 1987, quando chegou em 5º, Boesel participou da prova em 1988, mas no Jaguar errado. Seu carro #3, que dividiu com John Watson e Henri Pescarolo, quebrou na volta 129, enquanto que o #2 do trio Lammers/Dumfries/Wallace venceu.
E Boesel ainda teve outra oportunidade em 1991, novamente pela Jaguar. Chegou em 2º, derrotado por aquele Mazda 787 com motor rotativo que só se tornou competitivo porque Jacky Ickx foi contratado pela marca só pra fazer lobby junto à organização de Le Mans pra que o peso do carro fosse reduzido. Como era mais leve, consumia menos combustível, justamente o que fez Boesel ter que reduzir no final.
Com mais tempo nas endurances, e com algumas vitórias importantes que acabaram não vindo, o inédito título de Boesel, e o próprio piloto certamente seriam mais valorizados aqui no Brasil.
Abraço!
Mauro Santana
P.S.: O Jornalista Rodrigo Mattar fez um grande especial sobre esses 30 anos do Boesel, detalhando cada uma das corridas daquele campeonato. Vale a pena conferir!
8 Comments
Muito bem lembrado, Mauro. Lembro que o Boesel se queixou de não ter sido valorizado aqui. Também lembro que Gil De Ferran também não obteve a repercussão merecida. Pelo menos nós vamos lembrar e valorizar.
Excelente caro Mauro !
Tem que se prodigar mais !!
abs. Manuel
Grande Manuel!!
Agradeço o elogio, e assim que possível, irei escrever novamente.
Grande abraço!
Mauroi,
justíssima a lembrança do título mundial de Endurance conquistado pelo Raul Boesel em 1987. Prova que se ele tivesse um carro de ponta na Formula 1 poderia ter conquistados muitos triunfos também … vi ele começar na Stock Car Brasileira num Opala Platinado com patrocínio da TV Globo e bem novo andava de igual para igual contra feras da época como Paulo Gomes, Ingo Hoffman, os irmãos Giaffone, Reynaldo Campelo entre outros … aliás o seu sucesso na Stock que o motivou ir tentar a sorte na Europa … e se deu muito bem pois teve uma carreira internacional sólida e duradoura … sempre achei o Raul bom de bota …
Por curiosidade fiz uma pesquisa rápida no google e listei alguns títulos de pilotos brasileiros pelo mundo afora entre 1969 (ano em que o Rato partiu para Inglaterra) e 1994, sem ser na Formula 1.
Na Formula Ford Inglesa: Ayrton Senna em 1981
Mauricio Gulgemin em 1982
NA Formula 3 Ingklesa – Emerson Fittipaldi em 1969
José Carlos Pace em 1970
Nelson Piquet em 1978
Chico Serra em 1979
Ayrton Senna em 1983
Mauricio Gulgemin em 1985
Rubens Barrichello em 1991
Gil de Ferran em 1992
Na Formula 3 Internacional – Roberto Moreno em 1988
Christian Fittipaldi em 1991
Ou seja nestes 30 anos foram muito mais glórias que muitos nem imaginam.
Não se pode jogar simplesmente no lixo todo o sucesso que os pilotos brasileiros conseguiram … o automobilismo brasileiro precisa urgentemente reagir …
Parabéns pela coluna
Fernando Marques
Niterói RJ
Esqueci do titulo do Emerson na Indy em 1989
Fernando MArques
Agradeço Fernando!
E realmente, vendo este seu levantamento fica claro como tivemos sucesso nas pistas mundo a fora.
E com certeza, após estes tempos sombrios que pairam sobre o nosso automobilismo, o sucesso voltará a brilhar para nós.
Abraço!
Abraço!
Mauro,
Torci muito pelo Boesel na época, acompanhava este campeonato de resistência pelas revistas e a 4 rodas chegou a lançar fita VHS ao final da temporada.
Realmente a visibilidade da categoria no Brasil ficou comprometida pela falta de tradição e pelos títulos da dupla Piquet/ Senna na F1.
E como eram bonitos estes protótipos do Grupo C: Jaguar, Porsche, Mercedes, Toyota, Mazda etc.!! Era bem legal a disputa de motorzão aspirado contra os turbos e os rotativos.
Acontece que com a crescente popularidade da categoria, levando muito público aos autódromos, Ecclestone ficou com medo da concorrência com a F1 e sendo vice-presidente da FIA à época influenciou por uma mudança de motores, o que ocasionou o desinteresse das fabricas e a categoria minguou.
E por pouco não aconteceram as vitorias de Boesel em Le Mans(onde estamos na fila sem ganhar na geral até hoje) e em Indianapolis. E aquela questão de estar no lugar certo na hora certa influenciou bastante.
Márcio
Agradeço Márcio!
Eu também acompanhava este campeonato da mesma maneira que você, pelas revistas, e também tive o privilégio de poder assistir ao VHS que a 4 Rodas fez em homenagem ao título do Boesel.
E realmente os protótipos do Grupo C eram lindos demais.
Aliás, se analisarmos o esporte a motor do anos 80, olha, era demais, pois a F1 em plena era turbo, F-Indy, Grupo B Rally, Grup C no Mundial de Marcas, Motovelocidade, Motocross, e até as corridas de Lancha Off Shore.
Foi uma década Mágica!
Abraço!
Mauro