Edu,
Foram realizados treinos livres hoje de manhã e Coulthard fez o melhor tempo, seguido por Michael Schumacher, Kimi Raikkonen, Rubens Barrichello e as duas Williams. Mas vou comentar o quê a respeito? Como em todo treino de sexta-feira, fica a pergunta: essa ordem é resultado de treino ou texto dadaísta? (Textos dadaístas, para quem não sabe ou esqueceu, eram feitos colocando em um saco de papel as palavras que o autor pretendia usar. O artista embaralhava o conteúdo do saco, tirava os recortes aleatoriamente e nessa ordem ia escrevendo…)
Não dá. Por isso, prefiro aproveitar o embalo da vitória do Brasil sobre a Inglaterra na madrugada de hoje e passar a palavra para minha mulher, Alessandra. É ela quem vai responder às suas considerações futebolísticas da carta passada, pois eu não entendi patavina…
É isso mesmo: lá em casa, futebol é assunto exclusivo para minha mulher. Você não acredita, mas é verdade: eu não tenho a menor paciência para ver futebol, mesmo que seja final de Copa com o Brasil jogando.
Com a palavra, Alessandra Alves.
“Edu,
Não pensei que fosse viver para ver isso: o GPTotal falando de futebol! Mesmo que seja só por causa do clima de Copa, inevitável para a maioria, menos para o Panda, gostei muito de ver sua incursão nesse tema tão apaixonante para mim.
Sua percepção sobre a sucessão de erros em uma partida de futebol é muito procedente. Acho que essa tolerância excessiva com a incompetência da média dos jogadores tem duas razões.
Uma, talvez mais simples de explicar, seja a dinâmica das transmissões de TV. No próximo jogo que você assistir (deve ser Brasil x Inglaterra, daqui algumas horas, imagino) repare quantas vezes o locutor realmente “narra” as jogadas. Os locutores de futebol da TV parecem partir do princípio que o jogo é auto-explicativo, levando a sério a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras e simplesmente ignorando a maioria dos lances.
Falam sobre outros jogos que acontecem ao mesmo tempo, sobre as chances de classificação dos times em questão, conversam entre si (locutor, comentaristas, repórteres). Isso quando não gastam preciosos momentos do horário nobre anunciando as próximas atrações da emissora ou agradecendo pelos “deliciosos quitutes que o Fulano mandou aqui para a nossa cabine”.
Paradoxalmente, a transmissão pelo rádio é muito mais viva e rica em detalhes. Ouvinte há mais de vinte anos do locutor José Silvério, estou acostumada com suas interjeições do tipo “Nooooossa Senhora!” quando algum jogador comete erros do tipo que você mencionou na sua coluna. Futebol pelo rádio é um hábito enraizado no torcedor brasileiro. Futebol pela TV é arma na guerra pela audiência e isso parece criar um outro péssimo costume: ressaltar as más qualidades de um jogador pode soar como uma crítica direta ao “espetáculo”. Quem vai ser louco de bradar, em cadeia nacional, que “este jogo está um horror, só tem perna de pau fazendo um monte de besteiras”?
Mas, não vou jogar tudo nas costas dos colegas jornalistas. Há, sim, uma questão mais complexa relacionada a tudo o que você falou, que diz respeito à dinâmica do esporte. Não sei o quanto meu gosto é conhecido, mas antes quero deixar claro que a-do-ro futebol. Sou do tipo que estaciona o controle remoto no canal que estiver exibindo qualquer partida, seja antiga, seja inexpressiva, do Brasil ou do exterior. Gosto muito do esporte em si e das discussões em torno dele. Falo de futebol sempre que posso (não na minha casa, naturalmente), leio sobre futebol, sonho com futebol. Mas, já que você começou com as comparações, vamos a elas.
O futebol é um esporte amigável com seus atletas a começar pelas dimensões. O campo deve ter no mínimo 90 metros de comprimento por 45 de largura. Isso dá uma área de mais de quatro mil metros quadrados. Dá para construir duas mansões, com jardins e piscina. Por que essa informação é significativa? Porque é tanto espaço que é impossível observar todo mundo o tempo todo. Isso dá uma certa “impunidade” ao jogador. Ele pode passar o jogo inteiro sem fazer nada, correndo (ou andando) de um lado para o outro, dar a sorte de receber um lançamento na medida, fazer um gol, sair para o abraço e ser aclamado astro da partida. Tivemos um assim, lá no Parque São Jorge. O Corinthians ganhou o Campeonato Brasileiro de 1990 em jogos cujas circunstâncias eram muito semelhantes ao que descrevi acima e o tal encostado era o então gordinho Neto, hoje um roliço dublê de comentarista e dirigente do Guarani.
Ainda no capítulo das dimensões: o gol oferece 7,32 metros de espaço entre suas duas traves. Olhe ao seu redor: se você estiver em um cômodo normal de uma casa, provavelmente não terá parede com mais de cinco metros para observar. O gol é ainda maior (e tem 2,44 m de altura!). A tarefa de 20 dos atletas ali escalados é colocar uma bola para dentro dessa área descomunal. Dois deles têm a hercúlea missão de impedir. Não vou entrar na onda do “esse até eu faria”, mas é irritante o número de gols que muitos atacantes perdem na cara do goleiro. Vou fazer uma comparação com outro esporte, o basquete. Não sei as dimensões de uma bola nem de um aro de basquete, mas acho que ambos estamos de acordo que um (o aro) é pouca coisa maior que o outro (a bola). E não está na linha dos olhos, como o gol, mas lá no alto, para dificultar ainda mais. E não é que aqueles gigantes se empenham em jogos que terminam cento e tanto a noventa e muitos enquanto vários jogos de futebol, com aquele gol enorme, com aquele campo imenso, terminam zero a zero?!
Para terminar, quero voltar à questão da tolerância excessiva com os erros dos jogadores, evocando ainda um outro esporte. O tenista Gustavo Kuerten, antes da contusão e da cirurgia no quadril, jogava um torneio por semana, entrando em quadra praticamente todos os dias. Em um ano – 2000 – faturou Roland Garros, venceu mais alguns dos chamados Master Series e terminou o ano em primeiro lugar nos dois rankings mundiais. Para Guga e os outros tenistas, o sistema de disputa é cruel: perdeu um jogo, está fora do torneio. É como disputar uma Copa do Mundo por semana. Mas basta uma fase menos brilhante ou mesmo uma série de campeonatos disputados em um piso que não favoreça seu estilo para as derrotas saltarem aos olhos dos desavisados. Tenho ímpetos de voar no pescoço do engraçadinho que solta um “o Guga perdeu de novo esta semana, esse cara já era”. O que esses desinformados talvez não saibam é que o tênis é um esporte-limite, como a Fórmula 1, e aqui os erros são os responsáveis diretos pelas derrotas, pelos acidentes. Um único vacilo e já era: não há com quem dividir a responsabilidade, porque não há outros dez companheiros no mesmo barco, não há “resultado injusto”, como no futebol. Por mais que eu goste de futebol (mais que de tênis e de Fórmula 1), não posso deixar de admitir que, do ponto de vista esportivo, ele é muito menos exigente que muitas outras modalidades.
Um último comentário: o atacante da Coréia que marcou o gol de ouro e desclassificou a Itália corre o risco de perder o emprego. O presidente do Peruggia, time que emprega o jogador, disse que ele não precisa mais voltar, porque teria traído o país que lhe acolheu ao desclassificar a Itália. O que é isso, agora? Todos os italianos resolveram que precisam ganhar, mesmo que seja na marra, na base do café-com-leite? Lembrei-me vagamente de Zeltweg…
Abraços,
Alessandra