Por mais que o paulistano relute, está impossível passar ao largo da grande festa promovida no aniversário de 450 anos de São Paulo. É uma avalanche de eventos, programas de televisão, livros – tudo falando desta querida e maltratada cidade. O momento é mais que oportuno para resgatar a origem dela. Se oficialmente a cidade foi fundada quando o Padre Anchieta se instalou no Páteo do Colégio, São Paulo é muito mais antiga. O encontro dos rios Tamanduateí e Annhangabaú já servia como o principal entroncamento dos caminhos utilizados pelos índios que habitavam a região. Era o “checkpoint”, a parada obrigatória para as nômades tribos neste rali humano de sobrevivência realizado há cinco séculos atrás. O tempo passou e a cidade cresceu, inchou, se expandiu como um parasita fora de controle. Mas manteve o espírito desbravador. Foi na capital paulista que surgiu o movimento bandeirante, um empreendimento fundamental para a exploração e colonização do interior deste interminável Brasil. +++ No mundo de hoje, com cada milímetro sendo coberto por satélites, mapas e aparelhos de GPS,os bandeirantes deixaram seus legítimos herdeiros: os participantes dos ralis Cross-Country. Está rolando agora o mais famoso deles, o Paris-Dakar, já em sua 26a edição. É um exercício de coragem num dos locais mais inóspitos do planeta, o deserto do Saara.
E nem o avanço tecnológico impediu que a prova deste ano seja considerada a mais difícil de todos os tempos. Nem tanto pelas especiais com mais de 700 quilômetros, consideradas longas mas de alta velocidade. O que deixou os participantes de cabelo em pé foram as dunas da Mauritânia. A combinação de uma areia finíssima com uma vegetação rasteira escondendo pedras sorrateiras deixou muita gente dormindo ao relento, esperando ajuda da organização para tirar suas máquinas destas armadilhas naturais. Muitos favoritos ficaram por ali. O esquema do Paris-Dakar é mastodôntico. A edição deste ano conta com mais de 11 mil quilômetros e um esquema de guerra para a caravana atravessar regiões praticamente desabitadas. Após chacoalhar por horas em terrenos irregulares, resta aos competidores tomar um banho gelado no caminhão-pipa (em pleno deserto, à noite) e entrar em suas barracas para dormirem umas três horas.
Tudo soa uma enorme roubada. Mas há exemplos abundantes de pessoas que não podem passar um ano sem participar dela: Jean-Louis Schlesser ou mesmo os brasileiros Kléver Kolberg e André Azevedo, há mais de uma década passando o mês de janeiro no Saara. Mesmo o super-campeão Ari Vatanen voltou: afundou seu carro numa poça e tratou de correr para a beira do riacho, avisando aos outros competidores para evitar atravessar as águas naquele trecho. É o espírito do rali. +++ O Brasil tem no Rally Internacional dos Sertões seu similar ao Paris-Dakar. O percurso é menor (cerca de 4.000 quilômetros), mas a aventura é a mesma. Ao atravessar a região mais esquecida do País, o evento proporciona aos competidores o contato com paisagens deslumbrantes, como as do Jalapão, no Estado do Tocantins. Rios, pedras, poeira e um emanharado de estradas estreitas confundem mesmo o mais experiente dos navegadores. Um desafio e tanto.
Tive o prazer de assistir ao DVD da edição 2003 e aconselho a quem encontrá-lo à venda não bobear. Após três horas de um show de imagens (apesar da chatíssima trilha sonora), resta ao espectador planejar o que fazer para tomar parte no evento. Adrenalina correndo solta o tempo todo, brigas e companheirismo, superação de todos os limites do ser humano estão neste saboroso cardápio.
No vídeo, o melhor exemplo do espírito bandeirante que impregna o evento é dado pelo motociclista Juca Porreta. Não, ele não anda entre os primeiros e, por isso mesmo, não tem que se preocupar com detalhes insignificantes como a vitória. Sua diversão é o contato com a natureza e com os habitantes dos lugares por onde o rali passa. Tudo temperado com versos de cordel feitos na hora por ele mesmo.
E o que mais impressiona é que, após uma quebra, uma capotagem, um atolamento, uma discussão mais ríspida com um adversário, os competidores invariavelmente sorriem e concluem: “rali é assim mesmo”. Ê, porreta! Saudações impregnadas de terra e lama,
Luis Fernando Ramos
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