Há tempos eu vinha amadurecendo a idéia de escrever uma coluna sobre a 24 Horas de Le Mans de 1969. Naquele ano, a clássica corrida francesa teve o final mais emocionante de sua história, com as últimas horas de prova acontecendo em ritmo de GP e uma intensa disputa pela vitória se estendendo até a bandeirada.
O impulso final para finalmente colocar na tela as emoções de Le Mans 1969 foi um filme de cerca de 40 minutos, “La Ronde Infernale”, produzido pela Castrol. Trata-se de uma verdadeira reportagem sobre a 24 Horas de Le Mans de 1969, com entrevistas e comentários técnicos. Boa parte do que você vai ler a seguir vem das informações dessa fita. Mas é claro que acrescentei outras informações e detalhes que tornam ainda mais empolgante a história desta corrida.
A 24 Horas de Le Mans integrava o Campeonato Internacional de Marcas (o nome “Campeonato Mundial de Marcas”, pelo qual ficou mais conhecido, só seria adotado em 1972). O prestígio desse campeonato era idêntico ao da Fórmula 1, a ponto de atrair grandes fabricantes e pilotos de altíssimo nível, incluindo os melhores da Fórmula 1. Cabe lembrar que naqueles tempos os pilotos corriam em vários campeonatos no mesmo ano: era a única forma de garantir um rendimento razoável. Salários milionários, desses que em um ano garantem um resto de vida tranqüilo para quem o ganha, são muito comuns na F 1 de hoje mas eram inexistentes na década de 60.
A 24 Horas de Le Mans seria a oitava das dez etapas do campeonato de Marcas de 1969. A Porsche já havia garantido o título, pois vencera cinco das sete etapas realizadas até então. Mas mesmo ela vivia um período de transição. O carro que a levara ao título era o 908, equipado com motor de 3 litros com 8 cilindros contrapostos (configuração também chamada de ‘boxer” ou “flat”). Para ganhar competitividade no ano seguinte, a Porsche havia construído um novo carro, o 917, equipado com motor de 5 litros e 12 cilindros contrapostos. O começo do desenvolvimento do 917 teve vários percalços, alguns até engraçados, e era nesse estágio que o 917 se encontrava naquela altura. Pouco tempo, tornou-se praticamente invencível.
Também estavam inscritas em Le Mans equipes oficiais da Ferrari, Matra, Alpine e Lola. Mas os maiores adversários dos Porsche eram os Ford GT 40 (motor V8 de 5 litros), especialmente os pertencentes à equipe John Wyer Automotive Engine – alguns preferiam chamá-la de Gulf Wyer, o nome do patrocinador (uma petrolífera) e o sobrenome do dono da equipe. A missão das duplas Jacky Ickx/Jackie Oliver e David Hobbs/Mike Hailwood era manter a invencibilidade da Ford, que desde 1966 vencera todas as edições de Le Mans.
Para a Porsche o desafio seria outro: depois de mais de uma década conquistando vitórias nas subcategorias, a marca trabalhava intensamente para ganhar a corrida pela primeira vez na classificação geral. A equipe oficial tinha cinco carros e era comandada por Rico Steinemann, um jornalista suíço que se transformara em piloto e conquistara o segundo lugar na 24 Horas de Le Mans de 1968, guiando um Porsche 907. Logo depois, Steinemann foi convidado para chefiar a equipe de competições da Porsche e abandonou o cockpit. As duplas Hans Herrmann/Gerard Larrousse, Rudi Lins/Willy Kauhsen e Udo Schütz/Gerhard Mitter correriam com os 908 LH (langheck, “cauda longa”, numa referência ao formato da traseira), enquanto Vic Elford/Richard Attwood e Rolf Stommelen/Kurt Ahrens correriam com modelos 917 LH. Como os 917 ainda precisavam de muitas horas de pista para resistir a uma corrida de 24 horas, a aposta da Porsche era nos 908, bem mais desenvolvidos. Havia ainda dois Porsche inscritos por equipes particulares: um 908/2L (cauda longa e cabine aberta) para Jo Siffert/Brian Redman e um 917 K (de “kurz”, curto) comprado por um pouco conhecido piloto inglês, John Woolfe.
O 917, em seu começo, era muito rápido mas bastante instável e difícil de dirigir – e Woolfe, que recebera seu carro apenas duas semanas antes de Le Mans, percebeu logo isso. Seu companheiro de equipe, Digby Martland, era – como Woolfe – um piloto amador, que corria apenas por diversão. Nos treinos livres, Martland deu duas voltas, rodou, voltou aos boxes e comunicou que não iria participar da 24 Horas de Le Mans. Para substitui-lo, Woolfe chamou o experiente piloto alemão Herbert Linge, que conseguiu o décimo melhor tempo nos treinos.
Antes da corrida, uma polêmica. A Porsche havia criado para os 908 e 917 um sistema de aletas (pequenas asas) articuladas com as suspensões. Nas retas, elas atuavam como spoilers. Nas curvas, o movimento das suspensões mudava o grau de inclinação das aletas, deixando-as mais baixas no lado externo (reduzindo a pressão aerodinâmica) e mais altas no interno (proporcionando maior pressão e, conseqüentemente, tração para as rodas do lado interno). A Porsche percebeu logo que isso não daria nenhuma grande vantagem, mas encheu-se de brios quando a FIA proibiu o sistema. Conseguir a liberação do sistema transformou-se em ponto de honra. Para provar que o 917 seria inguiável sem as aletas, Stommelen fez uma demonstração assustadora para os representantes da FIA, o público e os jornalistas. Chegou-se a um acordo: as aletas seriam admitidas, mas nos 908 elas deveriam ser fixas. Horas depois da tal demonstração, Stommelen contou a Elford que havia conduzido o 917 de maneira absolutamente errática – apenas para se divertir e dar mais argumentos à Porsche em sua batalha contra a FIA.
Nos treinos, os Porsche conseguiram os cinco melhores tempos, com o 917 de Stommelen/Ahrens sendo o mais rápido (3min22s9). O melhor carro de outra marca foi a Ferrari 312P de Pedro Rodriguez/David Piper. Os Ford GT 40 de John Wyer ficaram apenas em 14º e 15º lugares. Tempos de treinos e ordem de largada, porém, têm importância reduzida em uma corrida de 24 horas – e mais ainda com a “largada Le Mans”, em que os carros ficavam de um lado da pista, encostados no box (na época, em qualquer autódromo, a separação entre a área de rodagem do box e a pista propriamente dita limitava-se a uma faixa pintada no asfalto) e os pilotos no outro.
Às 14 horas do dia 14 de junho de 1969, todos os pilotos escalados para largar estavam a postos. O diretor de prova começou então a subir a bandeira da França e, ao abaixá-la, deu o sinal para que todos os pilotos corressem para seus carros. Ickx enfrentou um pequeno problema e, quando finalmente conseguiu dar a partida, todos os outros carros já haviam desaparecido à sua frente. Pouco antes do final da primeira volta, John Woolfe bate em um muro a 210 km/h. O Porsche 917 K pega fogo e Woolfe morre a caminho do hospital.
Os Porsche 917 LH de Stommelen e Elford disparam na frente, mas na segunda volta Elford pára rapidamente no box: a porta do 917 não estava bem fechada. A vantagem sobre os demais era tão grande e a parada foi tão rápida que Elford volta em terceiro lugar, atrás de Siffert. Logo depois, o 917 recupera a posição.
Com quatro horas de corrida, o 908/2L de Siffert/Redman lidera com boa vantagem sobre o 917 de Elford/Attwood. Mas logo depois o câmbio começa a ter problemas que vão obrigar Siffert/Redman a abandonar a corrida. Elford/Attwood assumem a liderança. Duas horas depois, Herrmann/Larrousse perdem quase meia hora nos boxes por problemas na suspensão do 908. O carro cai para o décimo lugar.
Na metade da prova – ou seja, por volta das duas horas da manhã –, a Porsche está nos três primeiros lugares: Elford/Attwood lideram com o 917, seguidos pelos 908 de Mitter/Schutz e Lins/Kauhsen. Mais uma hora de corrida e o carro de Mitter/Schutz bate forte ao tentar ultrapassar o GT 40 retardatário de Hobbs/Hailwood. Schutz, que estava ao volante, nada sofre, mas o carro está fora da corrida.
Ao amanhecer, o panorama é o mesmo: Elford/Attwood lideram com cinco voltas de vantagem sobre o 908 de Lins/Kauhsen. O Ford GT 40 de Ickx/Oliver está em terceiro, mas não ameaça o segundo colocado. E em quarto aparece o 908 de Herrmann/Larrousse. A única novidade é o abandono do 917 de Stommelen/Ahrens. O carro, que desde o começo da prova vinha tendo problemas diversos, parou de vez por causa de um vazamento de óleo.
Faltam menos de três horas para o final da prova e poucos duvidam que a Porsche finalmente vai conseguir sua primeira vitória na classificação geral da 24 Horas de Le Mans. Mas o experiente Rico Steinemann sabia que não podia considerar a corrida ganha. E se preocupa com a queda de ritmo do 917, que passa a rodar 10 segundos mais lento que o tempo estabelecido horas antes para poupar o equipamento. O ambiente no box da Porsche fica ainda mais tenso quando o 908 de Lins/Kauhsen entra no box, com o câmbio travado. Não há o que fazer: o carro é retirado da corrida. Logo depois, exatamente às 10h59, Attwood, ainda líder, encosta o 917 no box – também por problema no câmbio, sem possibilidade de conserto. Os alto-falantes anunciam o abandono da dupla líder e o público das arquibancadas localizadas na reta dos boxes se levanta para, de pé, aplaudir os dois pilotos durante vários minutos.
Começa então uma nova corrida. O Ford GT 40, com Ickx ao volante, assume a liderança. Dez minutos depois, o belga pára no box e Herrmann passa à frente, até parar para abastecer, trocar pneus e dar lugar a Larrousse. Os dois carros iniciam uma batalha épica pela vitória e se alternam na liderança. Teoricamente, o Porsche 908 LH, mais ágil e veloz, poderia facilmente superar o Ford GT 40. Mas aquele carro tinha problemas que nem mesmo pilotos experientes e rápidos como Herrmann e Larrousse poderiam anular por completo. Para compensar o tempo perdido no começo da corrida, os dois pilotos passaram a andar o mais forte possível. Depois de quase 24 horas de corrida e 18 de funcionamento no limite, o motor se ressentia do esforço e perdera potência, atingindo 400 rpm a menos do que antes. John Wyer, por sua vez, decide que Ickx guiará até o final da prova, sem alternar com Oliver. Com isso, não apenas aproveitaria mais a capacidade do piloto belga (já nessa época reconhecido como um dos melhores do mundo) como evita uma eventual perda de tempo durante uma ou duas voltas, necessárias para Oliver “sentir” o carro e encontrar o ritmo da corrida.
Faltando menos de uma hora e meia para a bandeirada, Ickx faz seu último abastecimento. Duas voltas depois, Larrousse pára no box para encher o tanque e entregar o 908 a Herrmann. O alemão sai logo atrás de Ickx e começa a se aproximar. Mais duas voltas e Herrmann vê uma luz vermelha acender no painel: as pastilhas de freio estavam no fim. O piloto alemão simplesmente segue adiante: naquelas circunstâncias, parar para trocar as pastilhas era algo fora de cogitação.
Faltando menos de uma hora, Ickx e Herrmann trocam seguidamente de posição e chegam a percorrer lado a lado longos trechos do traçado de 13,8 km. A maioria do público presente a Le Mans passa a torcer pelo Porsche: afinal, um de seus pilotos é o francês Larrousse. Para acrescentar ainda mais emoção, o Ford GT 40 de Hobbs/Hailwood passa a disputar diretamente o terceiro lugar com a Matra-Simca MS 650 da dupla Jean-Pierre Beltoise/Piers Courage.
A três voltas da bandeirada, Herrmann lidera, mas Ickx percebe as dificuldades do 908 nas frenagens e o ultrapassa na chicane antes da reta dos boxes. Os dois carros vão andar juntos até Ickx receber a bandeirada. Hailwood/Hobbs completam a festa de John Wyer ao terminarem na frente da Matra de Beltoise/Courage.
O futuro, porém, recompensou a todos os protagonistas da grande disputa. Em 1970, Rico Steinemann levou a Porsche à vitória em Le Mans, com Herrmann/Attwood conduzindo um 917K. Seria a primeira das 16 vitórias da marca na 24 Horas de Le Mans. Em 1973 e 1974, seria a vez de Larrousse vencer a corrida, pilotando uma Matra. Logo depois, pendurou o capacete e assumiu o cargo de diretor esportivo da Renault, que ocupou até fundar sua equipe de Fórmula 1 no final de 1986. E Ickx, que infligiu à Porsche a derrota mais amarga de sua história, foi contratado da marca alemã nos anos 70 e 80. Por ela, venceu quatro edições da 24 Horas de Le Mans. Seu recorde pessoal, de seis vitórias nessa prova, só foi igualado em 2004, pelo dinamarquês Tom Kristensen.
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Esta é minha última coluna do ano. A todos os nossos leitores, colunistas, colaboradores e amigos, desejo boas festas e um ano de 2005 pleno de saúde, felicidade e sucesso.
Luiz Alberto Pandini |