Qualquer um que ame e conheça o esporte a motor certamente guarda o Circuito da Guia, em Macau, em lugar especial no coração.
Ostentando um dos traçados mais bipolares já concebidos, remetendo em parte à locura ainda maior que costumava ser o nosso saudoso Circuito da Gávea, a pista de Macau tem espaço tanto para cotovelos em trechos onde a largura permite apenas a passagem de um carro por vez quanto para uma enorme zona de aceleração entremeada por curvas de alta velocidade, tornando o acerto da máquina um delicado compromisso entre necessidades muito conflitantes.
Considerando a velocidade que é capaz de abrigar, as ondulações típicas de traçados citadinos e a virtual inexistência de áreas de escape, a simples idéia de uma corrida de motocicletas em Macau já seria, por si só, uma insanidade. Mas claro, o cenário piora bastante quando estamos falando de um grid composto por máquinas poderosas e pilotos nem sempre experimentados ou habilidosos o suficiente para domá-las em cenário tão impróprio e improvável.
Despropositada ou não, a participação de motos em Macau começou modestamente em 1954, como uma prova para entusiastas locais. E, a rigor, nunca foi muito além disso, jamais alcançando o mesmo grau de relevância desfrutado pela corrida de monopostos, que desde 1983 é disputada em carros da Fórmula 3.
Agora imaginem por um momento que, por um pretexto qualquer, uma equipe oficial da MotoGP decidisse interromper suas férias e levar seu principal piloto para tomar parte nessa prova que não tem relevância alguma, tanto mais quando se leva em conta a disparidade de desempenho que tal combinação teria em relação aos demais conjuntos. Tudo a perder, nada a ganhar… Loucura pura e simples, não?
Pois é, mas foi exatamente isso o que Kevin Schwantz e a equipe Suzuki fizeram na edição de 1988 da prova. Transportando para o mundo das quatro rodas seria mais ou menos como se Lando Norris e a McLaren de Fórmula 1 se inscrevessem a sério numa corrida local de carros de Turismo estilo GT3, e todo mundo aceitasse isso com normalidade.
A chance de vermos algo análogo na atualidade tende a zero, levando-se em conta os contratos cada vez mais restritivos que não apenas vedam a realização de atividades de risco alheias às obrigações de pista, como chegam ao detalhismo de estipular medicamentos que podem ou não ser ingeridos, entre outras precauções. Todavia, quem viveu os anos 80 sabe bem que o mundo era muito diferente quando crianças circulavam livremente e sem capacete em meio ao trânsito acelerando ciclomotores ou walk machines, para citar apenas um exemplo de algo inimaginável que apenas 35 anos atrás era tido como normal.
A competição em si, esquece, foi uma barbada. Nos treinos o texano pulverizou o recorde da pista em nada menos que sete segundos(!), e na corrida teve basicamente duas preocupações: assegurar que faria a primeira curva na frente, para não ter de correr riscos desnecessários em disputas por posição, e manter a roda dianteira no ar o maior tempo possível, divertindo a si mesmo e ao público com ousadia cada vez maior.
E, menino, como ele se divertiu! No início ainda de forma um tanto tímida e tendo a preocupação de olhar para trás a fim de se certificar de que não havia nenhum perseguidor por perto, mas rapidamente se dando conta de que a diferença de desempenho era mesmo abissal e de que a única chance que teria de perder a corrida seria caindo por conta própria. Não satisfeito em empinar em retas, Schwantz extravazou sua incrível habilidade também em zonas de aceleração estreitas e curvas em meio a subidas e em altas velocidades, e logo já estaria tirando os pés da moto ou tirando uma das mãos do guidão para acenar às câmeras, tudo isso com a bendita roda dianteira apontando para o céu.
O primeiro contato que tive com imagens dessa prova se resumiu a um corte em câmera lenta de uma dessas empinadas espetaculares, inserido numa das edições da emblemática série Havoc, que compilava em fitas VHS acidentes ocorridos nas mais diversas categorias competitivas do esporte a motor naquele recorte temporal que praticamente coincidiu com os anos 80 do século passado. Quando penso a respeito, tantos anos depois, rendo-me à evidência de que não havia a menor chance de não me apaixonar pelo esporte a motor tendo sido apresentado a eventos como esses, ou aos vídeos e às revistas que cobriam Paris-Dakar, Camel Throphy, as temporadas da F1 e tantos outros.
Se em nosso encontro passado confidenciei que sob o aspecto mecânico meu momento favorito do esporte a motor situa-se no fim da era analógica, entre a segunda metade dos anos 80 e o início dos anos 90, sob o aspecto da variedade de eventos e a liberdade de atuação confiada aos pilotos seria fácil argumentar que o paraíso chegou (e passou) ainda mais cedo.
Podemos lembrar, por exemplo, que Ayrton Senna consolidou sua reputação de top driver em 1984 ao bater diversos campeões mundiais de múltiplas eras, além de um belo punhado de pilotos de destaque noutras categorias do esporte a motor, numa prova disputada em Nürburgring ao volante de modelos Mercedes de rua. Ou que Roberto Pupo Moreno chamou a atenção do mundo ao bater os dois últimos campeões mundiais de Fórmula 1 numa corrida de Fórmula Pacific em uma pista banal de uma milha perdida em algum lugar da Austrália, em 1981.
No limiar dos anos 90, os maiores astros do motociclismo internacional, fossem eles da velocidade das pistas de asfalto, dos vôos do MotoCross, do equilíbrio do Trial ou da resistência das provas de longa duração, eventualmente se encontravam e competiam em provas mistas que por fim deram origem às chamas supermotos, máquinas híbridas que reuniam características de categorias distintas e normalmente eram aceleradas em traçados que misturavam diferentes tipos de pavimento.
Tudo isso, contudo, parece até brincadeira de criança quando voltamos ainda mais no tempo, para décadas como as de 70, 60 ou 50 do século passado. Naquela altura, quem tivesse vínculos com o esporte ou suficiente facilidade de deslocamento poderia ver, numa mesma temporada, Jim Clark desfilar seu virtuosismo em provas da F1, se batendo contra os melhores pilotos de monopostos da América em Indianápolis (e também noutras praças), na descontraída Tasman Series na Oceania ou mesmo em provas de subida de montanha ou corridas locais ao volante de carros de turismo como o Lotus Cortina.
Nos anos 50 alguém suficientemente sortudo poderia ver titãs como Fangio e A. J. Foyt competindo numa mesma prova realizada no lendário oval de Monza, além de acompanhar o Maestro em Le Mans ou atravessando cidades noite adentro numa edição das Mille Miglia, como se vê-lo guiar carros de F1 em Nürburgring, Spa antiga ou Pescara não fosse privilégio grande o suficiente.
Nesse mesmo recorte temporal, um fã do motociclismo de velocidade poderia ver a disputa entre dois dos maiores guidões de sempre, Giacomo Agostini e Mike Hailwood, extrapolar os limites dos grandes prêmios – e havia muitos deles além dos que integravam o calendário oficial – para avançar em meio aos riscos impiedosos e tão seletivos da Ilha de Man.
Poderíamos lembrar também das interações entre pilotos de diferentes mundos sob o guarda-chuva da Iroc, além de um monte de outros eventos que neste contexto se tornam redundantes. Mesmo em tempos não tão distantes ainda podíamos ver os maiores pontuadores da Indy reunidos no Marlboro Challenge ao término da temporada, pilotos de F1 duelando ao volante de lindos BMW M1 na Procar, ou alguns dos melhores pilotos do mundo competindo uns contra os outros ao volante de karts, quer fosse em Bercy, na França, ou aqui mesmo, no Brasil, no Desafio das Estrelas que durante anos foi promovido por Felipe Massa.
Em provas oficiais, até pouco tempo atrás os melhores pilotos do mundo sobre duas rodas ainda lutavam para evitar que suas máquinas perdessem o contato com o asfalto no mergulho do Saca-Rolhas, em Laguna Seca, para citar apenas um exemplo.
Claro, ainda temos motos flertando com os 370 km/h em Mugello na MotoGP, e a Race of Champions segue proporcionando encontros e desafios de enorme interesse no intervalo entre uma e outra temporada. Todavia, à medida que os aparatos de segurança avançam mais e mais, deveríamos sempre retornar a velhas determinações questionando se os tolhimentos ao aspecto esportivo ainda se fazem necessários.
Encerro este texto com duas dessas perguntas, para que sigamos as encarando no futuro próximo: ainda precisamos de chicanes em Paul Ricard ou em Le Mans?
As opiniões dos amigos são sempre mais do que bem-vindas.
1 Comments
Marcio,
nem Paris/Dakar é mais o mesmo …
Chincanes? … quem foi o inventor disso?
A evolução tecnologica dos carros de corrida em geral tiraram aquilo daqueles que frequentavam os autódromos que eram ver os carros derrapando nas curvas, pneus cantando, cheiro de borracha queimada … que saudade dos opalões na Stock Cars
Fernando Marques
Niterói RJ