A F1 e a bunda de Bottas

Rey de las calles
01/05/2023
Resposta
08/05/2023

Tenho visto com desconfiança crescente as notícias do sucesso da Fórmula 1 –público, audiências, receitas, tudo em níveis recorde. Um ceticismo de nascença, maturado por 46 anos de jornalismo completados em janeiro, repele em mim, como os diferentes polos de um imã, o entusiasmo propagado pela Liberty Media.

Difícil acreditar que tantos recordes sejam obtidos num momento de monopólio extremo de vitórias para a RBR. Do Bahrain 22 até o Azerbaijão, 26 GPs, são 21 vitórias para a RBR, sendo 17 para o canibal Max Verstappen, um domínio pra Mercedes nenhuma por defeito. Não é exatamente emocionante assistir GPs atualmente, mesmo em meio a tantas patetadas da direção das provas.

Reluto em acreditar que a pasmaceira atual esteja atraindo a atenção de muito mais gente na TV. Vejam o caso do Brasil. As penosas transmissões da Band mal superam os 2% de audiência este ano – pouco mais de 1,4 milhão de testemunhas por GP nas quinze principais regiões metropolitanas do Brasil, segundo o Kantar Ibope –, uma fração das audiências obtidas pela Globo.

Como será no resto do mundo? Só sei que não estão nada bem na Itália, por motivos óbvios. Mesmo assim, a Liberty alardeia mais de 1,5 bilhão de espectadores no mundo. Como ela chega a estes números?

Conheço um tico do assunto e, acreditem, é complexo medir audiência de TV. Na época em que eu tinha acesso a estes dados, anos 80/90, as audiências do Brasil, apuradas com método e auditoria externa pelo Ibope, somavam transmissões e telejornais onde notícias sobre a categoria apareciam. Este rigor técnico é seguido hoje, no Brasil e em outros países? Não sei dizer. Só sei que é fácil aumentar estes números.

Meu nariz torto estende-se à série Drive to Survive. A Netflix, pelo que sei, não abre seus números a auditorias externas, tampouco esclarece como mede a audiência de um episódio. A partir de quantos minutos, por exemplo, ela contabiliza um espectador? Quantos assinantes viram quanto episódios e por quantos minutos? Fica bem mais fácil falar em 50 milhões de visualizações assim…

Sobre as receitas da Liberty, imagino que elas cresceram depois do baque da pandemia principalmente pelos ingressos no calendário de Arábia Saudita, Qatar, Interlagos (US$ 25 milhões ao ano. O Brasil, descobrimos recentemente, não pagava à F1 pela organização do seu GP, sabe-se lá por quais artes de Bernie Ecclestone) e, talvez, Miami, mais a renegociação de alguns acordos, como com o Azerbaijão, e pelo ingresso como patrocinador da Aramco, a petroleira saudita. Natural que a receita tenha crescido 20% em 2022, chegando a US$ 2,5 bilhões. Mas a Liberty arcou com custos pesados na organização de GPs durante a pandemia (parece que se endividou para tanto) e também teve mais despesas operacionais. No final das contas teve um lucro de US$ 239 milhões.

Público nos autódromos? Tenho dificuldade em acreditar que foram 5,7 milhões de espectadores nos 22 GPs de 2022. São quase 260 mil pessoas por GP. Resisto em acreditar que mais de 400 mil almas passaram pelo Circuito das Américas, mesmo que o ingresso tenha sido bem baratinho. Da mesma forma para os alegados 235.617 pagantes no final de semana em Interlagos, no ano passado. O autódromo simplesmente não tem lugar pra tanta gente.

Perdoem a desconfiança, entendam que é uma obrigação profissional, mas não vou tomar de colher os dados que a Liberty despeja na imprensa. Pelo contrário, só vejo motivos para que eles o façam da maneira mais ufanista possível.

Os interesses da atual detentora dos direitos da F1 são, para mim, cristalinos: ela quer valorizar ao máximo o seu ativo e repassá-lo adiante, mesmo porque há um grande risco da categoria não sobreviver às mudanças ditadas pela crise climática. A proibição da venda de carros movidos a gasolina está doze anos no futuro na Europa. Sei que a F1 antes disso deixará de usar combustível derivado de petróleo, mas a produção do combustível sintético tem tanto ou mais impacto ambiental do que a gasolina e custa muito mais caro, de forma que não é solução pra nada, apenas um empate enquanto o inevitável não vem.

Já apareceu até um candidato a futuro dono da F1: o fundo soberano da Arábia Saudita, o valor da compra até foi vazado e, se verdadeiro, é irrecusável.

Na falta de resultados melhores, Valtteri Bottas vai mostrando seu corpo nu. Como não assisti até hoje a Drive to Survive (me julguem!), fui poupado até recentemente, quando ele voltou a se expor nas páginas de uma revista.

Passado o susto, liguei os pontos: a nudez do finlandês é apenas pra conquistar likes, refletindo a lógica nefasta das redes sociais, que valoriza acima de tudo a visualização de conteúdos que tiveram o maior número possível de interações no momento da sua primeira postagem. Provavelmente é pelo mesmo motivo que Lewis Hamilton e Yuki Tsunoda se esmeram em aparecer com roupas exóticas nas vésperas de GPs. Se eles ou Bottas postassem uma frase de, digamos, Søren Kierkegaard, filósofo que não era finlandês, mas da vizinha Dinamarca, certamente não atrairiam tanta atenção. Já mostrar a bunda…

Em tempo, aqui vai uma frase de Kierkegaard: “A raça humana deixou de temer a Deus. Depois disso, veio o castigo: passou a temer a si mesma, a ansiar pelo fantasmagórico, e agora treme diante dessa criatura de sua própria imaginação”.

Muitos têm dito que é a lógica nefasta das redes sociais que leva a Liberty a impor as corridas sprint, que vão descendo goela abaixo na F1. Elas parecem um produto sob medida para jovens com baixa capacidade de concentração, típicos destes tempos. Concordo com essa visão e quero agregar mais um motivo para o entusiasmo da Liberty pela novidade: elas são uma forma de tentar tomar mais dinheiro dos organizadores de corridas, sob alegação de que estão atraindo mais gente e atenção para as provas.

Outro meio é insistir no aumento do número de GPs. Ao abordar novos mercados, a Liberty ganha um argumento para pressionar os organizadores tradicionais, que pagam menos a ela pelas seus GPs. Se a Liberty não pode aumentar o número de provas, mas tem quem ofereça mais dinheiro a ela, pode trocar Monza pela Arábia Saudita, Mônaco por La Vegas, Silverstone pelo Qatar. Este movimento não é novo e já custou o GP à Alemanha e fez o governo de São Paulo por a mão no bolso. Certamente é mais um atrativo a valorizar o pacote da F1 na mesa de negociações com o fundo da Arábia Saudita ou outro interessado qualquer.

E assim a F1 que amamos vai se deteriorando. Termino com uma pergunta que me gela os ossos: e se a maioria de nós quiser a F1 deste jeito?

Abraço a todos

Edu

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

11 Comments

  1. bslnew disse:

    Parece que o público total do fim de semana é computado pela soma dos três dias e, por isso, esses números mais inchados. Na vera, deve ser metade desse valor somente para domingo!

  2. Andre Xavier disse:

    Eu nunca irei assistir uma corrida sprint. A pontuação 25,18,15… até assimilei, fazer o quê, mas corrida sprint na Fórmula 1 me nego. Gostei do GP de Miami, até achei a pista e o circuito legais. Pra mim a corrida foi boa. Não acreditei muito também quando o narrador falou o público presente, parece exagero mesmo. E concordo que quando haviam 16 ou 17 GPs a F-1 parecia algo mais especial, não tão corriqueiro como é hoje.

  3. Flávio disse:

    Muitas corridas acabam desvalorizando o produto. A audiência está caindo, eu fico imaginando o dia que a F1 se tornar séria, competitiva, empolgante… tenho certeza que vai arrebentar porque é um produto muito atrativo…

  4. Rubergil Jr disse:

    Difícil discussão, porém necessária.
    Eu sempre entendi que por mais que aconteçam coisas diversas e esquisitas “ao redor” (como o traseiro de Bottas, que graças a Deus não tive o desprazer de ver), se o núcleo esportivo se manter fiel às origens (como aliás você, Edu, sempre defendeu) sempre vai ser algo atrativo para os amantes do esporte a motor.
    Porém, quando vejo estas aberrações como a Sprint (e agora um Qualify pra ela!), sim isso me entristece.
    Acho importante a Liberty buscar novas audiências, mas ela jamais pode perder os verdadeiros apaixonados entusiastas. As novas audiências podem trocar F1 por qualquer novidade que apreça, num piscar de olhos. São os entusiastas que mantém esse negócio de pé.
    Eu não ligo pra hegemonias. Já vi várias na F1 e isso não me incomoda tanto, todas elas um dia acabam. Mas desvirtuar o núcleo esportivo da F1, isso sim me desagrada, e muito.
    Abraços!

  5. victor disse:

    O domínio da Red Bull do Verstappen… O dominio da Mercedez do Hamilton, o dominio da Red bul do Vettel, o dominio da Ferrari do Schumacher, o domínio da Williams, o domínio da McLaren….
    Sempre a mesma coisa….
    Quantas vezes de 1985 pra diante não foi assim??

  6. Olá,

    Como diria, o Zé, os números não batem, simples assim.
    Quanto mais mudamos as receitas, pior fica, quanto a carros elétricos, acho um engodo total, já foi tentando isso nos anos 70, se 10% da nossa frota fosse elétrica, estaríamos com déficit de energia elétrica, os números as vezes não mentem, afora, outras questões da produção de carros elétricos como a produção de baterias e seu descarte,,,,.
    Quanto a bunda do Bottas, ainda não vi, mas estou sem curiosidade para isso, devo admitir,
    Formula 1, basicamente é um esporte muito caro para velhos e saudosistas, a grande maioria da molecada, tá cagando pra fórmula 1, a não ser quem está envolvido nisso ou é parente de alguém e só.
    Abraços,,

  7. Fernando Marques disse:

    Edu,

    Eu ainda não consegui assisitir a uma corrida inteira de Formula 1 em 2023.
    Até então o enredo de todas elas foi o mesmo … com a RBR mandando poeira e escolhendo quem vence a corrida.

    Com relação ao Bottas, ao ler o titulo da coluna e ler as primeiras linhas pensei … como curtir a Formula 1 com o bundão do Bottas na pista ? …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  8. robertão disse:

    …”Se eles ou Bottas postassem uma frase de, digamos, Søren Kierkegaard, filósofo que não era finlandês, mas da vizinha Dinamarca, certamente não atrairiam tanta atenção. Já mostrar a bunda…” Valeu Edu. Rachei de rir aqui.
    Quanto ao Drive to Survive lembra o ” Fofocas da Candinha” da Revista do Radio.
    abs

  9. Mauro disse:

    Abraço, Edu
    Valeu por não ilustrar a coluna com o traseiro do Bottas
    Mauro Fernando

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