Após 67 anos de história e mais de mil GPs, entre oficiais e extra-oficiais, a Fórmula 1 parece se reinventar e desenvolver novos episódios a partir da bricolagem de temas e roteiros do passado, protagonizados por novos personagens num eterno devir. De fato, são cada vez mais raras as situações vividas nas pistas que eventualmente não possam encontrar sucedâneos mais ou menos entrelaçados no passado da categoria.
Aos meus olhos, por exemplo, o momento vivido por Vettel ao voar para a Cingapura traz grandes semelhanças com a forma como Ayrton Senna encarou o GP da Hungria de 1991, uma de minhas provas favoritas. A liderança inicial no campeonato foi aos poucos sendo consumida e ameaçada por um adversário cujo equipamento vivia melhor fase, até que o calendário apresenta uma pista na qual seria possível brigar – e consequentemente a vitória passava a ser
vista como obrigatória. Nos dois casos estávamos diante da “hora da verdade”, daquele momento em que o piloto sob pressão precisa chamar a responsabilidade, agarrar a liderança com vigor e não soltá-la até a bandeirada final.
Vettel sabia que a vitória em Cingapura seria decisiva para manter vivas suas chances de conquistar pela Ferrari aquele que seria seu maior título mundial, e tratou de fazer sua parte na qualificação. Sua volta final foi daquelas “faca na caveira”, um dos grandes momentos dos últimos anos, a ponto de o ter levado às lágrimas e a dar uma entrevista visivelmente afetada pela adrenalina, logo assim que saiu do carro. E o que parecia melhor: ele havia deixado as duas Red Bulls logo atrás de si, e também o companheiro Kimi Räikkönen entre ele e Hamilton. O importante primeiro passo havia sido dado. Agora restava confirmar a liderança através de uma boa largada no domingo.
As semelhanças com Hungria 1991, todavia, foram perdidas tão logo a transmissão mostrou a pista molhada instantes antes da corrida na cidade-estado. Opa, olha aí uma condição inédita em toda a história da F1: uma corrida noturna com pista molhada! E o que parecia ainda melhor: a largada seria parada, sem a presença nefasta do carro de segurança, apesar das condições extremamente precárias de visibilidade, pioradas pela presença das barreiras laterais evitando a dispersão do spray. De fato, durante a volta de apresentação as câmeras onboard faziam lembrar a parte da neblina do clássico jogo Enduro, do bom e velho Atari, e cabe perguntar por que noutras oportunidades recentes e muito menos radicais largou-se em fila indiana.
A situação de Vettel ganhava ingredientes de complexidade e drama. Contornar a primeira curva na liderança tornava-se ainda mais importante, e agora ele, além da desvantagem natural de arrancar por fora, ainda seria obrigado a tracionar no lado mais escorregadio da pista, que na chuva é onde existe mais borracha. Tudo isso tendo um jovem sem nada a perder logo ao lado…
Apagadas as luzes vermelhas, acontece o momento que muito provavelmente irá definir o campeonato de 2017 em favor de Lewis Hamilton. Partindo do lado sem borracha Verstappen salta melhor que Vettel, e atrás dele Kimi arranca ainda melhor, posicionando-se à esquerda da Red Bull. Com a visibilidade evidentemente prejudicada Vettel reage por instinto e dá uma guinada à esquerda, jogando duro com Max pela primeira curva, sem saber que o holandês era igualmente pressionado à esquerda pela outra Ferrari. Como bem lembrou o amigo Mauro Santana, a dinâmica dos três carros voando cegos rumo ao desastre, nenhum deles cedendo, fez lembrar o início do GP do Brasil de 1989 na saudosa pista de Jacarepaguá, que Deus a tenha.
A carambola que se seguiu teve três atos. No primeiro deles há o toque da dianteira esquerda de Verstappen com a traseira direita de Kimi, que imbica à direita logo à frente da Red Bull até colher a lateral esquerda de Vettel, que sofre danos aerodinâmicos visíveis. Dos três, o único que visivelmente não tem qualquer chance de continuar é o finlandês, que se arrasta sem controle tendo a suspensão dianteira destruída. Vettel consegue sobreviver, e defende-se ainda na primeira curva do mergulho de Hamilton, por fora. Atrás deles, de forma surreal surge Fernando Alonso, numa terceira posição que não chegou a saborear nem por um segundo. No Apex da curva 1, o segundo ato: a Ferrari desgovernada de Kimi (re)encontra a Red Bull de Verstappen que, abalroado, joga longe a McLaren de Alonso. O asturiano ainda iria continuar na pista por algumas voltas, mas a forma como chegou a ser atacado pelas Williams de Stroll e Massa deixava claro que a pancada havia deixado sequelas graves no equipamento.
Aparentemente, contudo, Alonso não era o único a carregar consequências da carnificina da curva 1. Mais alguns metros e foi a vez de Vettel entrar em pêndulo e rodar sozinho, destruindo o bico da Ferrari (e suas chances de título em condições normais) num choque contra o muro à direita da pista. O destino do tetracampeão já estava selado, mas o purgatório ainda lhe cobraria uma dor a mais: após bater no muro a Ferrari se estabilizou na contramão, rolando para trás, enquanto todo o pelotão passava bem ao seu lado. Foi, possivelmente, a imagem do ano na categoria
E então era isso: Hamilton, que em condições normais não esperava nada além de uma quinta posição perdendo 15 pontos para Vettel, era agora o líder e não tinha as Ferraris ou Verstappen a ameaçá-lo. Nem mesmo as várias intervenções do carro de segurança ou a migração para pista seca e pneus slicks o impediram de se manter à frente de Ricciardo e Bottas durante toda a prova, para conquistar sua 60ª vitória e dar um passo decisivo rumo à
conquista do tetracampeonato.
Desta forma, um campeonato que vinha se desenhando excelente perdeu boa parte da graça numa largada realizada à moda tradicional em pista molhada. O que isso significa? Que não podemos mesmo ter largadas estáticas sob chuva?
Pelo amor de Deus, não! Significa – e esta é apenas a minha opinião – que o sistema de 25 pontos para o vencedor num campeonato com 20 provas precisa urgentemente ser conjugado com um sistema que permita um ou dois abandonos, computando os 18 melhores resultados da temporada e dando alguma gordura para que os pilotos ainda possam arriscar sem que esse pouco de ousadia lhes renda praticamente a sentença de perder o título mundial.
Vamos lá, estou sendo razoável. Dezoito resultados em vinte é mais do que suficiente para não punir a regularidade de um pontuador, nem tampouco dar ao acaso ou a eventuais panes mecânicas a palavra final na decisão do mundial.
A respeito da corrida de Felipe Massa e da qualidade da transmissão nacional, prefiro guardar
o silêncio.
Uma ótima semana a todos!
6 Comments
Boa tarde, Márcio. Também compartilho com você que o regulamento deveria permitir um número de provas para descartar.
Com os carros atuais e sua confiabilidade à prova de balas, pode ser que um caso como esse tenha selado o destino de Vettel e Hamilton no campeonato.
Basta voltar ao passado e olhar a tabela do campeonato de 1988, por exemplo, o primeiro título do Senna. Prost fez mais pontos que ele, mas por conta de só contar (me perdoe se eu estiver enganado) os onze melhores resultados nas dezesseis provas, tivemos, na minha humilde opinião, um merecido campeão que brigou por mais vitórias.
É bem pouco provável que o Hamilton tenha a falta de sorte que teve no ano passado, com uma quebra inesperada; ou seja, a situação do Vettel ficou bem complicada.
Você citou dezoito melhores resultados em vinte corridas; penso que dezesseis em vinte seria melhor (80% dos resultados). Mas são eles que querem um regulamento assim…
Bom, é isso,
Grande abraço
Carlos Maurício
Grande texto, amigo Márcio!
Eu apostei num abandono do Hamilton, mas, não imaginava que seria Vettel o azarado da história.
Com esta vantagem nos pontos, como ficou a matemática do campeonato?
Hamilton ainda depende de vitória, ou apenas precisa marcar o Vettel nas corridas restantes!?
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba PR
Marcio, creio que este foi o melhor texto que li sobre a corrida de domingo.
Vale lembrar que não é a primeira vez que Vettel x Raikkonen x Verstappen se estranham em uma largada. Em Spa/2016 isso também aconteceu. Na minha opinião, em ambas, o piloto “mais culpado” é o Vettel, que não dá espaço para os outros 2 carros na disputa.
Porém, pra mim, o grande vilão destes e de vários outros acidentes deste ano (como o do Sainz/Grojean no Canadá) chama-se FALTA DE VISIBILIDADE. Claro que não dá pra esperar que num F1 o piloto tenha a visibilidade de um carro de rua, mas os espelhos excessivamente recuados (opção aerodinâmica das equipes) e a elevada proteção lateral dos cockpits fazem com que o piloto tenha um ângulo visível muito restrito, tanto para frente como para trás. O “ponto cego” de um F1 é gigantesco.
E Marcio, também defendo com unhas e dentes a adoção dos “melhores resultados”. Já falou-se sobre isso aqui, e o Manuel Blanco já fez uma coluna brilhante sobre o tema aqui. Contudo, de pouco adianta este sistema se a confiabilidade dos motores é tão alta, e se o piloto só pode usar 4 usinas durante o ano. É preciso dar mais chances para quebras para tornar este sistema interessante. Parentesis: nos áureos tempos, acho que nem a Coloni ou Forti Corse usavam só 4 motores por ano… fecha parentesis.
Abraço,
Rubergil
Marcio,
uma corrida longa como foi esta em Singapura teve seu final decidido com 5 segundos de corrida …
Procurei ler muitas opiniões a respeito do incidente após a largada … inicialmente achei o Verstappen era o culpado pois tive a sensação que ele bateu no Raikkonen antes do Vettel jogar para a esquerda tentando defender a sua posição … depois achei que o Vettel, apesar da legal manobra que fez, poderia ter sido culposamente o principal causador do acidente … não resta dúvidas que Vettel e Verstappen não largaram bem ao contrario do Kimi … mas foi de certa forma pouco inteligente por parte do Vettel querer manter a usa posição disputando com eles quem ia frear mais tarde antes da curva … acho que também ao fazer tal manobra a intenção do Vettel era dividir a curva com Kimi, o que não seria problema e assim acho que ele mente ao dizer que não viu filandês ao seu lado ou melhor já a frente do Verstappen … o Michael Schumacher ( o famoso alemão dick vigarista) deixou legados e manobras como Nico Rosberg fez contra Hamilton ano passado se não me engano na Espanha e o que o próprio Vettel fez com Massa ano passado são provas disso … o Vettel arriscou, jogou de certa forma “sujo” e quebrou a cara …
Em todo caso dou meu parabéns para a direção da prova que não puniu nenhum deles pelo incidente … corrida boa é assim mesmo …
A respeito da corrida do Massa e da transmissão nacional ( o RL deve estar ficando gagá … e o Luis Roberto querendo encerrar a corrida faltando ainda uma volta … foi até hilário) … não merecem mesmo nenhum comentário …
Fernando Marques
Niterói RJ
Também me pareceu um aluno do Schummy essa manobra do Vettel…
Márcio,
Grande vitória de Hamilton num momento decisivo do campeonato ultrapassando Ricciardo na largada e não perdendo mais a ponta. Usando a cabeça, não se arriscou a dividir a 1ª curva com Vettel. Demonstrou grande maestria no piso molhado, chegando a colocar quase 10s sobre Ricciardo, que teoricamente dispunha de um conjunto superior nesta pista. A diferença só não foi maior graças ao SC. Além do mais contou com muita sorte devido ao acidente de Vettel, onde em condições normais o alemão reassumiria a liderança do campeonato.
Foi sua 60ª vitória em 202 participações o que lhe dá uma média de vitórias semelhante a de Schumacher(quase 30%, acima de Senna/Prost(25%) e Stewart (27%) e abaixo de Fangio, Ascari e Clark), podendo igualar Schumi em nºs absolutos(91 vit) se correr até a idade em que o alemão correu na sua 1ª fase(37 anos).
Com relação ao acidente é difícil apontar culpados, só achei um erro estratégico de Vettel se arriscar contra um franco atirador que não tem nada a perder, não vem fazendo uma boa temporada, e que iria arriscar tudo por uma vitória na única pista em que teria chance e pior, antes da prova deu declarações de que ia para o tudo ou nada na largada e que Vettel, que tinha a perder deveria se preocupar com o campeonato.
Campeonato equilibrado, indefinido, a ser decidido em detalhes como quebras, acidentes ou punições. Ainda faltam 6 provas com máximo de 150 pontos em jogo. Vettel já chegou a colocar 25 pontos de frente. O que ocorreu com Vettel pode acontecer também com Lewis. Os 13 pontos da cabeça quente no Azerbaijão também podem fazer falta no fim. Inicialmente eu via um certo favoritismo de Vettel, agora a coisa inverteu, já são sete vitórias de Lewis em 14 provas ou seja a metade.
O que estamos presenciando é uma disputa de pontos entre os 2 primeiros colocados sem briga direta na pista, no máximo perseguições, cada um prevalecendo onde seu equipamento é superior. Bem diferente da disputa Marquez x Dovizioso x Viñales x Rossi na Moto GP.
Com relação ao sistema de pontuação não gosto do atual (25,18…) que privilegia a regularidade em detrimento da velocidade com o vencedor recebendo 38,89% do 2º colocado. Prefiro o que vigorou de 91 a 02 (10,6…) em que o 1º recebia 66,67% de pontos a mais que o 2º e os pontos iam até o 6º. O atual 6º recebe oito vezes mais do que o 6º do sistema anterior em quanto que o 1º só recebe 2,5 vezes mais. Não nos iludamos 28 pontos de diferença representam somente onze no sistema antigo.
Concordo com os descartes que aliados ao sistema antigo privilegiariam quem é mais veloz, mais corajoso e arrisca mais e, por conseguinte bate mais e quebra mais.
Duvido que a FIA aprovaria e muito menos o Liberty Media, o que eles querem é campeonatos artificialmente embolados, é só ver a pontuação de campeonatos americanos como Nascar e Indy que privilegiam a regularidade.
Márcio