A jornada dos subestimados

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Vitória da Ferrari na edição 2025 das 24 Horas de Le Mans. Com o terceiro carro. O amarelo, número 83. Sim, aquele que não é oficialmente de fábrica e que, no frigir dos ovos, merece menos atenção e menos recursos.

Aquele que tinha em sua composição um polonês que pilotou apenas com a mão esquerda, por 40% do tempo da prova, mais que qualquer outro piloto da categoria Hypercar.

Tal polonês tinha tudo para decolar na Formula 1, não fosse seu terrível acidente de rally em um já longínquo 2011, a praticamente fazer com que perdesse os movimentos da mão direita.

É bem possível que a edição 2025 das 24 Horas de Le Mans passe para os livros de história como “a jornada de Robert Kubica” – aquele mesmo, que pilotou só com a mão esquerda. E esta seria uma síntese pra lá de justa.

Havia ainda no trio de pilotos um… chinês, ambos sendo os primeiros de seus países – de pouquíssima tradição automobilística – a ganharem a corrida.

Aquela equipe, que tem pessoas incríveis como o engenheiro Giuseppe Petrotta e o assessor de imprensa Mattia Tremolada, que nos trataram com extrema simpatia enquanto estivemos ano passado nas 6H de Interlagos.

E não foi sem drama. Com pouquíssimas bandeiras amarelas e apenas uma única intervenção de Safety Car, a corrida foi de 24 horas inquietas, sem margem para poupança de equipamento. Diante de uma concorrência muito parelha, qualquer probleminha viraria problemão.

Meu papo sobre Osella com Giuseppe Petrotta e Mattia Tremolada durante as 6H de SP 2024

E não era difícil pensar que a Ferrari 83 resistiu a um abandono iminente: o câmbio teimava em não reduzir marchas da maneira certa, indício do que poderia ser uma séria falha hidráulica. O fato de Kubica ser devoto de seu conterrâneo São João Paulo II me faz pensar que, de alguma forma, esta vitória tem que ser colocada na conta do Papa…

Ganharam, portanto, os estoicos, os resilientes, os azarões. Ganhou um time de muita dedicação, valentia, fibra e excelência. Não poderia haver vitória mais simpática.

Gostaria muito de parabenizá-los pessoalmente pelo imenso feito.

Exaltamos bastante essa vitória em nosso canal de Youtube. Peço aquela força de sempre dos amigos leitores para acompanhar nosso conteúdo por lá também.

A vitória de 2025 tem uma ligação direta com a primeira vitória da Ferrari, de 1949, edição de retomada após o fim da II Guerra Mundial. Assim como na mais recente conquista, os vitoriosos surgiram de uma inscrição privada.

Ferrari era um nome novo no esporte a motor e que rapidamente ganhou notoriedade com a vitória na Mille Miglia daquele ano. Mas Enzo Ferrari não acreditava que seus carros estavam prontos para uma maratona de 24 Horas contra modelos mais potentes e recusou-se a se inscrever oficialmente.

Chinetti (gravata listrada) levou a pequena Ferrari 2.0 de Lord Selsdon (centro) à vitória em 1949 [Le Mans]

Peter Mitchell-Thomson, nobre britânico que detinha o título Lord Selsdon, comprou então uma pequena Ferrari 166MM de motor 2.0, e a dividiu com o italiano (já) naturalizado americano Luigi Chinetti. Quando falo em dividir, não foi exatamente algo próximo do mezzo-mezzo

Contra uma forte concorrência de carros como os franceses Delage, Talbot-Lago e Delahaye, e ingleses como Bentley e Aston Martin, todos com motores maiores de até 4,5 litros, Chinetti pilotou por quase 23 horas para vencer todos eles.

Selsdon pilotou exatos 73 minutos, depois do raiar do sol, quando já tinham liderança considerável. Alivia um pouco a barra do inglês o fato de existirem fontes que juram que ele não estava bem fisicamente… De qualquer modo, fazia parte de um conjunto vitorioso que definitivamente não estava entre os favoritos.

Largada de 1965: Ford em guerra contra a Ferrari

De 1949 para 1965. E quanta diferença. Aquela novata Ferrari tornou-se muito, muito poderosa. Sua aura havia se estabelecido. Venceu as primeiras como equipe de fábrica em 1954 e 1958, para emendar vitórias consecutivas entre 1960 e 1964. Era o topo do mundo.

Mas já havia no ar toda aquela tensão com o gigantesco movimento da Ford e seu (virtualmente ilimitado) programa GT40. Era uma guerra declarada contra a Ferrari, com inscrição de um batalhão de carros, sendo os mais temíveis o par de Mk2 da Shelby American, com o monstruoso motor de 7 litros. A casa italiana, por sua vez, respondia com três protótipos.

A corrida se desenvolve em um ritmo alucinante. Nenhuma das marcas estava disposta a tirar o pé. Mas todos os GT40 estavam derretendo: ou fritavam as juntas de cabeçote, ou era o câmbio a entregar os pontos, diante da brutalidade do torque daqueles V8 borbulhantes.

Tudo se desenhava para uma vitória Ferrari. Mas os três carros de fábrica tiveram problemas. Quem acabou ganhando foi uma Ferrari 250LM particular, da NART – North American Racing Team.

Após longo pit, pilotos daquela Ferrari particular aceleraram como se não houvesse amanhã

A NART era o braço esportivo da importadora oficial da Ferrari nos Estados Unidos. E seu diretor era… aquele mesmo Luigi Chinetti da vitória de 1949. Só que a operação da NART era um tanto caótica. O carro vencedor, até pouco tempo antes da prova, não tinha contrato de pneus. Acabou correndo, pasmem, com um estoque de Goodyear de chuva. A coisa fica ainda mais bizarra ao saber que os pilotos adoraram o comportamento do carro.

A “dupla” de pilotos era composta por um americano baixinho e míope chamado Masten Gregory e um austríaco jovem, rebelde e de temperamento forte chamado Jochen Rindt.

Rindt e Gregory impediram aquela que seria a 1ª vitória de uma Ferrari amarela, de P. Dumay

Eles quase desistiram na terceira hora, quando um problema elétrico fazia apenas metade dos 12 cilindros funcionar a contento. Gregory alcançou Rindt já no estacionamento, pronto para ir embora. Convenceu o parceiro a voltar, com o trato de voarem na pista até o carro quebrar, pilotando por diversão.

E ainda houve tempo para o insólito episódio de Ed Hugus, o piloto-fantasma, que pilotou secretamente um tempo de madrugada, quando Gregory não enxergava nada e Rindt tinha dado um “perdido”.

Contra todos os prognósticos, o carro aguentou. E curiosamente acabou chegando à frente de duas Ferraris amarelas, particulares. Uma 250LM similar à vencedora, do francês Pierre Dumay, e uma 275 GTB de motor dianteiro, da belga Ecurie Francorchamps.

Somos apoiadores de primeira hora do improvável movimento começado pelo grande Sergio Milani pra trazer transmissões da WEC para o Brasil, no que resultou em 2023 na primeira transmissão 24 Horas da corrida para todo o Brasil.

Neste ano, fizeram isso pela terceira vez e eu lembro como se fosse hoje o quanto era difícil arrumar maneiras de acompanhar a corrida – algumas nem tão republicanas assim.

E agora, a cada ano, somos não apenas brindados com a corrida na íntegra, como o time de narradores e comentaristas é do mais alto nível e permite que você fique ligado nas 24 Horas da prova sempre com informações relevantes, histórias e análises, sem deixar a peteca cair.

E diante do nosso compromisso de também auxiliar na disseminação da Endurance no Brasil, chamamos não apenas o Milani, mas também o comentarista Milton Rubinho para um deliciosos papo, em que eles falaram mais um pouco sobre Le Mans 2025, os bastidores da transmissão e de como essa deliciosa “loucura” começou – e perdura até hoje.

Isso vale mais uma visita do leitor ao nosso canal de Youtube.

A história mostra que toda vez existe gente para subestimar alguém ou a um grupo. E sempre há alguém ou algum grupo disposto a mostrar toda sua competência, pois as coisas sempre podem ser diferentes.

Assim é no automobilismo.

E é assim fora dele também.

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    Assisti a largada é a primeira hora da corrida no sábado. No domingo assisti as últimas 3 ou 4 horas até o final … essas últimas horas foram sensacionais … no final ver que 3 carros estavam na mesma volta, uma Ferrari amarela, um Porsche ( deu trabalho já desde o início) é uma Ferrari vermelha comprova o alto nível da corrida só com safety cara … foram 24 hs de pura adrenalina … a transmissão da corrida foi impecável e ver kubica ganhando a corrida, cruzando a linha de chegada no comando da Ferrari Amarela o ponto alto e grande final da prova.
    Tudo sensacional e emocionante

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Leandro disse:

    Tenho acompanhado as 24 Horas de Le Mans desde que apenas lia sobre ela aqui e no blog do Rodrigo Mattar. Ter acompanhado não me lembro quantas horas da corrida em 2023 me fez ficar emocionado (e muito grato) junto a todos no final daquela transmissão.

    Me espanto ainda com a quantidade de gente acompanhando e com o aumento de atenção e alcance que o endurance tem recebido.

    Esta vitória do 83 já havia batido na trave, estava torcendo por eles há algum tempo, por Kubica e por ser uma Ferrari amarela! kkkk

    • Lucas Giavoni disse:

      As transmissões brasileiras e integrais de Le Mans são uma conquista para todos os fãs do esporte a motor. Na terceira hora, quando já era evidente que a Ferrari tinha um ótimo ritmo de prova, pensei “puxa, seria muito legal se a Ferrari amarela ganhasse…”. Desejo atendido!

      • Leandro disse:

        Voltei só pra comentar: e falando em “A jornada dos subestimados”… que temporada a do Hulkemberg

        • Lucas Giavoni disse:

          Mais um subestimado que teve a oportunidade de mostrar todo seu potencial. E agora sabemos por que a Sauber dispensou o Bottas (de cartel com muito mais poles, vitórias, pódios) para contratar o “sem pódio” Hulk.

          Abração!

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