Caro Edu e caros leitores,
Como eu já imaginava, estou remando contra a maré. Já recebi uma saraivada de críticas pelo conteúdo de minha coluna do último domingo.
Paciência. Fico contente e até orgulhoso quando nossas opiniões encontram eco na maioria dos nossos leitores. Da mesma maneira, temos (“tenho”, neste caso) que estar preparados para receber críticas quando isso não acontece. Não estamos aqui necessariamente para agradar, mas sim oferecer uma visão diferenciada, particular e até mesmo subjetiva sobre este esporte chamado automobilismo. No meu caso, aproveitando o conhecimento que adquiri ao trabalhar em contato direto com esse meio e nos 23 anos de busca alucinada por informações sobre tudo o que aconteceu desde a primeira corrida disputada no mundo.
Este é acima de tudo um espaço democrático. Todas as manifestações que recebemos sobre os fatos do último domingo estão e continuarão sendo colocadas no ar, na íntegra e sem cortes, preservando inclusive eventuais erros de português. É uma prova do respeito que temos pela opinião de nossos leitores.
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Muitas pessoas se decepcionaram ao perceber que a categoria é regida também por interesses comerciais. Só que hoje em dia qualquer esporte de alto nível promocional, seja F 1, Copa do Mundo ou Olimpíada, é muito mais um negócio do que um esporte.
Ingenuidade imaginar que eventos como esses, que movimentam milhões de dólares de alguns bolsos para outros, sejam regidos unicamente por sentimentos puros e nobres. Seus praticantes conhecem as regras do jogo e se submetem a elas. Se acharem que não são justas, terão toda a liberdade de se retirar dos respectivos esportes e procurar outra maneira tão rentável quanto essa de ganhar a vida.
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Concordo plenamente: Ferrari, Schumacher, Barrichello e a própria F 1 saíram perdendo com os acontecimentos do GP da Áustria. A imagem da categoria e a da Ferrari foram estupidamente jogadas no lixo. Mas não vou satanizar Michael Schumacher. Minha crítica mais dura vai para Rubens Barrichello, que festejou sua “conquista” no pódio (com “sambadinha e tudo!) e assinou seu aval a tudo o que aconteceu.
Meus amigos, se o maior prejudicado age dessa maneira, não sou eu quem vai arrancar os cabelos por ele. Minha mulher, Alessandra, compara essa atitude de Barrichello à de um chefe de departamento que demonstra felicidade e faz comemorações ao cumprir a ordem de demitir dez pessoas. Ao brasileiro, faltou um mínimo de compostura e amor-próprio.
A Ferrari, por sua vez, se deixou levar pelo excesso de pragmatismo e não mediu as conseqüências de uma ordem que previsivelmente seria muito mal recebida pela opinião pública. Mas não me surpreende porque não é de hoje que o automobilismo (assim como o futebol e outros esportes, faço questão de lembrar) coloca o “espírito esportivo” em segundo plano.
No GP da Europa de 1997, David Coulthard foi “gentilmente” convidado por Ron Dennis, o chefão da McLaren, a entregar a vitória a seu companheiro de equipe, Mika Hakkinen. Coulthard recebeu a ordem, se fez de desentendido, depois tentou conversar, e a três voltas do final ouviu do patrão o seguinte recado:
– Se você não der passagem para seu companheiro na próxima volta, será demitido. Fui claro?
Coulthard e Hakkinen não disputavam título algum e também não consta que o escocês tivesse um contrato que o obrigasse a ser tão servil quanto Barrichello é hoje. Mas, como isso aconteceu na mesma corrida em que Schumacher cometeu aquela manobra idiota contra Jacques Villeneuve, a “esportividade” da McLaren teve muito menos repercussão do que merecia. E Ron Dennis ainda tem coragem de criticar a atitude da Ferrari… Hipócrita.
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Outra história remonta a 1955. A Mercedes mandou Juan Manuel Fangio deixar Stirling Moss vencer o GP da Inglaterra, pois a vitória de um piloto inglês contribuiria enormemente para aumentar a popularidade dos carros Mercedes na Grã-Bretanha. Lembre-se que isso aconteceu apenas dez anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, quando o ressentimento dos ingleses pelos bombardeios nazistas a Londres ainda era muito grande.
Esporte ou negócio?
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Mais uma historinha da vida real.
Naquele mesmo ano de 1955, um grave acidente na 24 Horas de Le Mans matou o piloto Pierre Levegh, da Mercedes, e mais de 80 espectadores (quem quiser mais detalhes pode achá-los em um dos últimos “With a Little Help From our Friends”, publicado junto com as cartas anteriores). O acidente aconteceu no final da tarde de sábado (a corrida terminaria às 16 horas de domingo) e os organizadores decidiram não interromper a corrida: se o fizessem, o público que sairia do autódromo iria congestionar as estradas e prejudicar a mobilidade das ambulâncias que removiam os feridos.
Os diretores esportivos da Mercedes decidiram tentar um contato com a direção da empresa, na Alemanha, pedindo autorização para retirar da prova os carros Mercedes. Na época, as telecomunicações eram bem mais lentas do que hoje. Era madrugada quando chegou a autorização. Alfred Neubauer (o “Jean Todt” da Mercedes na época) comunicou a Lofty England (o “Jean Todt” da Jaguar, maior adversária da Mercedes naquela corrida) que a equipe alemã estava se retirando da prova. Neubauer esperava que o chefe da Jaguar tivesse atitude semelhante. Em vez disso, Lofty England deu a seus pilotos a seguinte instrução: “Podem ir com calma porque a Mercedes está saindo”. A Jaguar venceu a corrida com Mike Hawthorn e Ivor Bueb.
Pela segunda vez: esporte ou negócio?
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Em 1984 ou 1985, o repórter Ernesto Varela (personagem do Marcelo Tas) perguntou a Nelson Piquet “atrás de quê os pilotos correm”. Resposta: “Atrás da grana, meu amigo”. Desconcertado com tamanha sinceridade, Ernesto Varela ainda balbuciou um “Mas como assim?”. E Piquet não se fez de rogado: “Todo mundo aqui quer grana. É um trabalho como o seu, como o de todo mundo. Aqui, todo mundo está trabalhando”.
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Virou moda acusar Michael Schumacher de não ser esportista. Você e muitos leitores dizem que faltou ao alemão dignidade para se recusar a ultrapassar Barrichello. Não acho. Schumacher vinha virando em 1min09 e, na última volta, seu tempo foi 1min11. Isso joga por terra a teoria de que ele acelerou fundo para vencer. Além disso, ele visivelmente tirou o pé para não ultrapassar Barrichello na reta de chegada. Só que o brasileiro andou ainda mais devagar (faltou pouco para imobilizar seu carro). Reginaldo Leme mostrou isso claramente no programa “Fantástico”, da Rede Globo. Nessas circunstâncias, o que fazer? Esperar Montoya passar?… Outra coisa: Barrichello, ao receber a ordem, teria pedido a Jean Todt para perguntar a Schumacher se ele concordaria com a ordem de inverter posições. Resposta do francês: “Ele não tem que concordar com nada”.
No caso específico dos torcedores brasileiros, tudo foi mais frustrante e amargo porque foi Barrichello quem perdeu a vitória. Mas deixo a pergunta no ar: será que as reações por aqui seriam tão furiosas se os papéis de Barrichello e Schumacher fossem invertidos? Tenho certeza que não. Ainda iam dizer: “Bem feito, esse alemão tem mais é que se f…der, mesmo!”.
Muitas lembranças das batidas que Schumacher deu em Damon Hill (1994) e Jacques Villeneuve (1997). Concordo, foram duas manobras absolutamente sujas. Então, tratemos a todos com igualdade: estou aguardando as críticas a Ayrton Senna por ter causado um acidente com Alain Prost para ser campeão em 1990. Na época, ele foi até aplaudido por ter se vingado da sujeira que o francês fizera no ano anterior. Só que um erro não justifica outro. Assim como Schumacher “não precisava destes quatro pontos para ser campeão” (e isto somente saberemos no final do campeonato), Senna e Prost também não precisavam fazer o que fizeram para serem campeões em 1989 e 1990.
A manobra desastrada de Schumacher contra Villeneuve serviu para interromper essa história de decidir títulos com batidas. Tomara que a reprovação pública ao que aconteceu na Áustria leve as Ferrari e McLaren da vida a pensarem duas, três, mil vezes antes de fazer esse tipo de “jogo de equipe”.
Mantenho Schumacher na lista dos cinco possíveis melhores pilotos da história da F 1. Por mais dolorido que seja para os brasileiros, ele já fez muitas coisas que lhe dão pleno direito de pleitear um lugar entre os grandes da história. Quem sabe, o lugar mais alto. A resposta definitiva só será dada quando sua carreira for encerrada.
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Lembrei-me de uma passagem do maravilhoso filme “Grand Prix”, rodado em 1966 e que retratou muito bem a F 1 da época.
A fita começa com o GP de Mônaco, que na vida real foi o primeirodaquela temporada. O personagem Jean-Pierre Sarti (interpretado por Yves Montand) venceu com sua Ferrari, após um grave acidente com o piloto Scott Stoddart (Brian Bedford), da BRM.
À noite, Sarti está em uma festa dada aos pilotos e é apresentado a Louise Frederickson (Eva Marie Saint), uma jornalista americana que trabalha para uma revista de variedades. Louise, que nunca havia acompanhado automobilismo, havia sido destacada para escrever artigos sobre a temporada. A certa altura, ela comenta com Sarti sua estranheza pela realização de festas enquanto há um piloto no hospital. Sarti responde sem rodeios:
– Se ele estivesse morto, seria a mesma coisa. Talvez um pouco mais reprimida, mas a mesma coisa.
Louise, indignada, faz menção de sair da sala, mas Sarti a interrompe:
– Quero lhe dizer uma coisa. Antes, quando via um acidente, eu ficava tão fraco por dentro que tinha vontade de desistir de tudo. Depois, passei a agir diferente: piso firme no acelerador, pois eu sei que é a hora em que todos aliviam.
– Que maneira terrível de vencer! – responde Louise.
– Não existe maneira terrível de vencer. Só existe vencer – encerra Sarti.
John Frankenheimer, o diretor de “Grand Prix”, baseou boa parte dos diálogos do filme nas conversas que manteve com os pilotos da época. Sarti, no filme, é o maior nome da F 1, o grande campeão que se destaca fora das pistas por seu cavalheirismo – aquilo que, no seu livro, você define como “grande senhor das pistas”.
Desde aquela época os pilotos podiam misturar as virtudes pessoais mais admiráveis e os desvios de caráter mais reprováveis. As rivalidades e a disposição de jogar bruto sempre foram exacerbadas. Transformar alguns pilotos em anjos e outros em demônios é simplificar demais as coisas. São todos seres humanos.
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Uma palavra a quem está pensando em boicotar os patrocinadores da Ferrari – por exemplo, deixando de abastecer em postos Shell. Desculpem, mas isto é inócuo. Se Barrichello se importasse com a reação do público, sequer assinaria o contrato de subserviência que a Ferrari lhe apresentou.
Se for para boicotar a Shell, façam-no por uma causa realmente importante – por exemplo, por ela ter contaminado com produtos químicos uma área enorme do solo da cidade de São Paulo. Este, sim, é o tipo de causa que afeta diretamente a milhões de brasileiros.
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Do jogador de basquete Oscar Schmidt sobre Barrichello no programa “Cartão Verde”, da TV Cultura (SP), no último domingo: “Não tenho nada contra o Barrichello ser o operário-padrão da Ferrari. Mas que ele avise antes, para que as pessoas não percam tempo assistindo corridas e torcendo por ele a troco de nada.”
Abraços a todos. Espero poder mudar de assunto na próxima ocasião…
Pandini