Bravo, Wilson!

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Se acaso alguém com tempo de sobra resolvesse se dedicar à inglória e nada científica missão de identificar o personagem de maior contribuição individual à história do Brasil nas pistas, e ao longo do processo fosse reduzindo à lista de possíveis eleitos a cada novo critério de corte adicionado, quase que certamente o resultado final seria alguém de sobrenome Fittipaldi. E vou além: provavelmente o primeiro nome seria Wilson, e não seria nada difícil que houvesse um “Junior” complementando o sobrenome.

O momento, claro, não é o mais propício para afirmações assim, tão superlativas. Wilsinho, afinal de contas, acaba de falecer, e é natural que em obituários e homenagens póstumas erros e momentos menores de uma biografia sejam momentaneamente deixados de lado, enquanto conquistas e méritos tendem a ser um tanto supervalorizados. Sabemos que muitas vezes é o que acontece. No caso de Wilson, contudo, a situação é um tanto mais complexa, e de certo modo encerra um ciclo, porque no início também foi assim. Posso imaginar, por exemplo, quantas pessoas terão torcido o nariz a seus primeiros envolvimentos com competições, lembrando, em tom de desvalorização, que “vindo de onde ele vinha” era fácil.

Ora, é evidente que sobrenomes abrem portas no mais elitista dos esportes, e é claro que ser filho do Barão Wilson Fittipaldi, e também da frequentemente esquecida Dona Juzy, poupou tempo no processo de construção da rede certa de contatos, além de ter rendido as necessárias oportunidades iniciais de que todo mundo cedo ou tarde acaba precisando. Não há o que se discutir a esse respeito.

Todavia, quantas vozes foram capazes de sustentar esse discurso diante de toda a paixão, toda a entrega, toda a CORAGEM demonstradas por Wilson Fittipaldi Junior no decorrer de uma vida inteira dedicada às pistas e ao esporte a motor? Quem, com o mínimo de conhecimento histórico, se atreveria a não reconhecer nele, especificamente nele, o espírito construtor e desbravador que primeiro faria dos irmãos Fittipaldi empreendedores de sucesso antes mesmo dos vinte anos, e mais tarde conseguiria a proeza de retomar a participação brasileira no cenário internacional, não através de si mesmo, mas do irmão caçula, cujas virtudes ao volante foi provavelmente o primeiro a dimensionar?

Não, se não fosse por Wilson Fittipaldi Junior, por sua grandeza que ia muito além da estatura talvez elevada demais para que pudesse almejar maior sucesso em monopostos, é muito provável que Emerson jamais tivesse cruzado o Atlântico para deslumbrar o mundo. Ao menos, é certo afirmar que toda a mágica conjuntura espaço-temporal que o levou do anonimato ao degrau mais alto do pódio na principal categoria do automobilismo internacional em pouco mais de um ano e meio teria sido perdida por completo, com efeitos impossíveis de avaliar não apenas sobre sua própria carreira, mas também sobre as de todos que seguiram seus passos.

De fato, é fácil concluir que um irmão complementou o outro de várias maneiras distintas, e no frigir dos ovos isso sempre terá se devido mais a Wilson do que a Emerson, uma vez que para o irmão mais velho essa parceria envolveu, em momentos críticos, renúncias, maturidade, honestidade consigo mesmo, além de largas doses de coragem, autoconfiança, desprendimento e pragmatismo. Ora, quantos entre nós teriam tido a grandeza necessária para seguir com o melhor plano, mesmo quando ele passava por sacrificar parte da própria carreira em favor da de um irmão? Num momento histórico de tanta negação da verdade, tanta canalização de frustrações e transferência de responsabilidades, o legado de Wilsinho Fittipaldi para com a honestidade de caráter parece não desfrutar do reconhecimento que faz por merecer.

Eternamente lembrado como o homem que teve a ousadia e a coragem de investir o próprio futuro na criação de uma equipe brasileira – imaginem! –na Fórmula 1, Wilsinho talvez pudesse ser recordado com mais justiça como aquele que, muito antes disso, foi capaz de avaliar que o automobilismo que se praticava aqui no Brasil – com contribuição fundamental dele próprio, não apenas ao volante, mas sobretudo como construtor – não devia em nada ao que havia de melhor em escala internacional. E também de reconhecer e admitir para si mesmo – e essa é certamente a parte que mais nos diz sobre seu caráter – que seu irmão mais novo era um prodígio capaz de fazer coisas ao volante que ele próprio, por melhor que fosse – e era! –, não tinha condições de igualar.

Sejamos justos: se a partir do limiar da década de 70 do século passado os melhores pilotos do cenário nacional tinham a consciência de que em condições apropriadas poderiam brigar por resultados de destaque em qualquer competição mundo afora, isso devia-se tanto a Wilsinho quanto a Emerson, em igual proporção.

E aqui mais uma vez é preciso parar para refletir. Porque não estamos falando apenas – como se fosse pouco! – sobre dar a uma geração inteira, e a todas que vieram desde então, o estímulo necessário para que se aventurassem, a crença de que seria possível vencer. O impacto vai além, pois o automobilismo é um esporte ingrato, no qual a maioria dos participantes nem mesmo chega a dispor de uma oportunidade real de provar o próprio valor. Imaginem, portanto, o que significou, para tantos com potencial não aproveitado, ter a chance de dormir sabendo ser um dos melhores do mundo, mesmo que sem o devido reconhecimento.

Sob o aspecto da realização pessoal – que no fundo é o único que verdadeiramente importa – é o tipo de coisa que faz enorme diferença.

Mencionei brevemente a contribuição de Wilsinho como construtor, mas seria leviano não aprofundar o tema. Afinal, por mais famosos e lendários que tenham se tornado projetos como os Fitti-Porsche ou o fusca bimotor, ou por mais desejados que pudessem ser os volantes fabricados pelos irmãos Fittipaldi, a verdade é que todos esses exemplos representam apenas a ponta de um iceberg muito, muito profundo.

Com efeito, não seria exagero afirmar que a própria disseminação do kartismo no Brasil, através dos Mini, e de categorias monopostos, através do Fitti-Vê, remontam às iniciativas dos Fittipaldi, naturalmente amparados por um contexto de promotores e investidores corajosos e entusiastas, e de toda uma geração que mantinha uma relação absolutamente diferente com o automóvel e com as corridas. E, claro, não podemos nos esquecer da inestimável contribuição da genialidade de Ricardo Divila.

A conclusão que nos resta, portanto, é a de que antes mesmo que cheguemos a falar a respeito da equipe Fittipaldi na F1, o débito do esporte a motor brasileiro para com os irmãos Fittipaldi já era impossível de se mensurar. Mas, claro, há que se falar sobre ela também.

Em meio a tudo que já foi dito e analisado a respeito da equipe, seus erros e acertos, ninguém poderá dizer que faltou empenho e comprometimento máximos, que faltou coragem para arriscar, nem tampouco potencial humano. Olhando com o benefício da perspectiva histórica, e levando em consideração o nível de sucesso que tantos que passaram pelo time iriam alcançar em suas respectivas carreiras, é possível afirmar sem medo que, a despeito de todas as dificuldades esportivas e burocráticas impostas pelo período histórico em que ela existiu, houve um momento em que o sucesso e a consolidação efetivamente pareceram ao alcance da mão.

Não me parece correto ou justo endossar a teoria reducionista de que tudo não deu certo em razão do tratamento dispensado por influenciadores que pouco ou nada conheciam a respeito do esporte e das dificuldades que vinham sendo enfrentadas. Bastaria, por exemplo, que o projeto do F6 fosse um pouco mais convencional e rígido para que tudo pudesse ser diferente. Ainda assim, e sem fechar os olhos aos erros cometidos por teimosia, inexperiência ou excesso de confiança, creio ser mesmo possível admitir que faltou pouco, muito pouco, e uma maior compreensão social a respeito do que estava em jogo certamente teria ajudado bastante.

E eu nem me atrevo a imaginar como poderia ter sido a história brasileira na F1 caso a equipe tivesse conseguido quebrar a barreira da vitória.

Wilsinho foi um grande piloto, e corridas como os GPs de Mônaco e da Alemanha em 1973 não deixam dúvidas a esse respeito. Ainda assim, é curioso que tão frequentemente sintamos a necessidade de relembrar isso.

De fato, durante muito tempo senti que esse mantra se devia pura e simplesmente ao fato de ser irmão de Emerson, das comparações inevitáveis e constantes, e é claro que essa é uma sombra que não se pode ignorar. Todavia, refletindo com um pouco mais de atenção ao longo dos anos, passei a acreditar que isso não se devia apenas ao sucesso do irmão, mas também porque ele próprio se fez algo muito maior do que um piloto de corridas.

Neste texto de despedida, esse é um ponto que gostaria de deixar bastante enfatizado.

Em seus últimos anos, sobretudo a partir do momento em que a saúde se fragilizou a olhos vistos, a real dimensão de sua estatura histórica parece ter se tornado mais nítida. Vê-lo, estar com ele, ou mesmo simplesmente saber que estava vivo subitamente começou a soar como um privilégio de nossos tempos.

Compartilhando dessa mesma sensação, em abril de 2023 eu e Lucas Giavoni tivemos a oportunidade de passar pouco mais de 3 horas em companhia de Wilsinho numa visita à sua casa. Nada de entrevista, nada de vídeo, nada de postagem. Fomos apenas prestar nossa reverência, manifestar nossa gratidão e nosso respeito por tudo que fez, por tudo que representa.

Lá ouvimos histórias, como a verdadeira origem do apelido de José Carlos Pace (qualquer dia eu conto essa), a forma como se deu o encontro com Ricardo Divila, ou o jantar que dividiu com Tina Turner na Alemanha e que acabou se estendendo numa longa conversa madrugada adentro. E também o ouvimos falar sobre o quão contrariado estava por estar impedido de dirigir, e testemunhamos a infinitude de sua paixão pelo esporte a motor, ao fazer questão de acompanhar com atenção uma etapa da Mitsubishi Cup enquanto conversava conosco.

Poucos, pouquíssimos, amaram esse esporte tanto quanto ele.

O último áudio que recebi de Wilsinho foi gravado dois dias antes que ele engasgasse com um pedaço de carne, justamente no momento em que celebrava seu aniversário de 80 anos. A voz soava fraca, mas carinhosa, enquanto mandava um abraço para mim e toda a equipe do GPTotal.

Ouvir aquele áudio agora me expõe a um turbilhão de sentimentos.

Lembro, por exemplo, da foto que Wilsinho e o não menos saudoso Gil de Ferran fizeram juntos no mais recente GP do Brasil, ambos sorrindo e felizes, e em seguida penso na linda e justa homenagem póstuma durante a mais recente etapa da F4, quando o levaram para que pudesse completar, em cortejo comandado por um caminhão do Corpo de Bombeiros, sua derradeira volta em Interlagos.

Recordo, por fim, que uma das últimas lembranças que tenho de minha própria mãe foi a de testemunhar sua emoção ao ver o tocante vídeo no qual Wilsinho recorda a maneira como foi informado a respeito da trágica morte de François Cevert, e seu desalento diante da forma como foi instado a retornar à pista, como se nada de anormal tivesse acontecido.

“Wilsinho é uma pessoa sensível”, minha mãe disse, entre lágrimas.

É verdade, mãe. E gosto de imaginar sua alegria ao poder reencontrar tantos amigos lá em cima, estando livre para finalmente acelerar sem limites, como sempre quis.

Bravo, Wilson!

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

10 Comments

  1. I don’t think the title of your article matches the content lol. Just kidding, mainly because I had some doubts after reading the article.

  2. Que bacana Márcio…! Esse nome será sempre respeitado (por mais chacotas que tenham feito aqui nesse País… ao invés de torcer pelo absoluto sucesso !!! – sei lá por que), não tira o seu brilho ! Tive a oportunidade de conhecer (antes acompanhando o automobilismo nosso desde 1966 – Mil Milhas pela Jovem Pan…) até os primórdios do Emmo na Europa em 1969, no Interlagos a sua primeira conquista na F1 aqui em 1974 e infelizmente depois (pessoalmente – disso tenho fotos no ano de 1982 (o último acho) da Fitti nos circuitos de Zetweg e Dijo-Prenois onde o declínio já era uma realidade! Pena pena mesmo, pois um pouquinho mais e toda história seria diferente e mais respeitada! Não sei se faltou discernimento ou se teve excesso de teimosia, mas que era bonito e nos enchia de orgulho acompanhar a equipe Fitti (que chegou a ter Jo Ramirez, Harwei Postlwhite, Keke Rosberg) isso comn certeza é verdade ! Tomara e auguro que a geração nova possa ainda nos dar um tanto do orgulho que sentiamos quando eles progenitores entravam nas pistas ! Parabéns novamente… Forte abraço Gilvan

  3. manuel disse:

    Querido Márcio,

    Só você mesmo para fazer um texto assim:
    Homenagem à altura do homenageado !

    Obrigado !

  4. Fernando Marques disse:

    Marcio

    … “Lá ouvimos histórias, como a verdadeira origem do apelido de José Carlos Pace (qualquer dia eu conto essa), a forma como se deu o encontro com Ricardo Divila, ou o jantar que dividiu com Tina Turner na Alemanha e que acabou se estendendo numa longa conversa madrugada adentro” … não vejo a hora de ler essas histórias

    Fernando Marques

    • Obrigado pelo retorno de sempre, Fernando.
      O Lucas contou essa história do apelido do Pace ao fim do programa que gravamos em homenagem ao Wilson, em nosso canal no YouTube.
      O vídeo vai subir ainda hoje, quando puder confira lá.
      Abraço, amigo.

  5. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    primeiramente obrigado pela homenagem ao Patrimonio do Automobilismo Brasileiro Wilsinho Fittipaldi. Ele merecia essa homenagem do GP Total.
    O seu texto resume todos meus sentimentos de tristeza e me trazem muitas lembranças …
    :ou aqui lembrar 4 delas de forma bem curta:
    1) Meu 12 anos de idade … Emerson campeão … o automobilismo virou uma paixão … o avô de um primo meu que morava em São Paulo trouxe de presente pra mim … um poster do Emerson devidamente autografado … ficou anos pendurado na parede de meu quarto …
    2) No rastro dele José Carlos Pace e Wilson Fittipaldi … o que eu torci por eles é inesquecível …
    3) Equipe Fittipaldi … aquele 2º lugar no Rio em 1978 glória máxima
    4) Sobrenome Fittipaldi … o que eles fizeram pelo automobilismo brasileiro não tem igual … abriram as portas para o Brasil brilhar na Formula 1 e se não bastasse na Formula Indy tbm …

    lendo sua coluna uma ponta de inveja ,,, ainda bem que do bem … passar tres horas vc e o Lucas com Wilsinho não é para qualquer um

    me lembrei de um video onde fizeram uma comemoração surpresa para o aniversário do Wilson … nele aparece um recado do Nelson Piquet ao fim de seu depoimento dizendo … Wilsinho eu te amo … acho que a admiração dos Piquet fica claro na manifestação do Nelsinho Piquet com uma foto do pai e do Wilson felizes juntos …

    Tivemos um fim de ano d 2023 no automobilismo brasileiro já triste com o falecimento do Gil de Ferran …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  6. Stephano disse:

    Obrigado, Márcio. Apenas obrigado por essa lindíssima homenagem, que apenas você poderia ter escrito! Viva-o Tigrão!

    • Grande Stephano, obrigado pelo apoio de sempre.
      Fico feliz por ver todo o reconhecimento ao valor do legado deixado por Wilsinho.
      Não vejo, no contexto atual, como alguém pudesse fazer algo semelhante por nosso esporte a motor.
      Forte abraço e tenha uma ótima semana.

  7. Rubergil Jr disse:

    Lindo e verdadeiro demais este texto, caro Márcio. Se foi uma lenda do nosso esporte, talvez a maior das lendas. Nenhuma homenagem é suficiente para ele. Que descanse em paz.

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