Um inseto escreveu estas linhas. Um ser tão inexpressivo e insignificante que talvez tenha se esquecido do único pensamento original que teve na vida
Meu primeiro Caderno de Esboço foi publicado aqui no GPTo antes da Reforma Ortográfica. Portanto, vale relembrar: a seguir, vocês lerão “idéias que nunca viraram colunas, colunas que viraram frases, parágrafos cortados de textos já prontos, historietas e links que, imaginava, poderiam render alguma coisa mas que, como disse Jaguar, o cartunista, acabaram perdidas em redações, táxis e bares – como os melhores anos da minha vida…”
Duas historinhas de Mônaco 61, um dos grandes GPs de todos os tempos, marcado pela vitória de Stirling Moss contra um esquadrão da Ferrari.
A primeira: Jack Brabham, então bicampeão da F1, decidiu disputar Indy 500, atraído pelos prêmios milionários para os padrões europeus. Para combinar os calendários das duas categorias, treinou nos Estados Unidos até a 4ª-feira, viajando em seguida para Mônaco, onde chegou na 5ª-feira pela manhã. Classificou seu carro para o GP – última posição no grid… – e embarcou imediatamente para os Estados Unidos para disputar a classificação para a sua primeira 500 Milhas, ficando com a 17ª posição de largada (terminaria a corrida em 9º lugar, mostrando o caminho para pilotos e construtores europeus, que revolucionariam Indy nos anos seguintes).
No domingo, por volta da hora do almoço, Brabham estava de volta a Mônaco para correr o GP. Ele admitiu que estava um pouco “tonto”. Abandonou na 38ª volta, quando corria em 10º lugar, com problemas de ignição em seu Cooper.
Para Godard, cultura é a regra; arte é a exceção. Transposto para a Fórmula 1, a lição fica assim: Emerson, Stewart e Lauda foram a regra; Peterson, Hunt e Gilles Villeneuve a exceção. Alan Jones e Prost a regra, Piquet e Senna, a exceção – mas nem sempre: mais adiante Senna e Piquet tornaram-se regra; em ambos os casos Mansell foi a exceção.
Não há desdouro em ser regra. Pilotos-regra terminam campeões do mundo, uma goleada de 7×1 sobre os pilotos-exceção. Mas são estes o sal da terra, os que nos fazem saltar da cadeira – alguém conseguiu permanecer inerte quando Senna ultrapassou Karl Wendlinger por fora, em Donington 93?
O problema é que os pilotos-exceção se tornaram raríssimos nos últimos vinte anos. Aliás: há algum em atividade no momento na F1? Sintomático que tantos de nós tenham crescido os olhos sobre Kamui Kobayashi, quando ele estreou, em 2009.
Mas, pobre Kamui! Ele nada pode contra as toneladas de tecnologia que empurram um F1 contemporâneo. Pilotos-exceção parecem condenados a brilhos fugazes, logo soterrados por ordens de equipe precisas e castradoras.
A segunda historinha de Mônaco 61: alinhando para a largada, o pole position Stirling Moss notou uma fissura num dos tubos do chassi do seu Lotus. Fatalmente se romperia durante a corrida a menos que fosse reparada ali mesmo, no grid. O problema é que o tubo estava colado ao tanque de gasolina. Não havia mais tempo para esvazia-lo, de forma que um mecânico providenciou uma soldagem extremamente cuidadosa com maçarico enquanto colegas jogavam água sobre o tanque, de forma a resfriá-lo.
Moss caiu para 3º na largada mas recuperou-se e assumiu a ponta na volta 14, seguindo daí para a vitória, a despeito da feroz oposição que lhe foi movida pelos pilotos da Ferrari, que terminaram em 2º, 3º e 4º lugares.
Moss disse, em recente entrevista a AutoSprint que hoje se pilota um Fórmula 1 como, no tempo dele, se pilotava um Sport-Protótipo.
E se fossem os desmandos das autoridades os responsáveis pela queda de interesse pela Fórmula 1?
Não seria melhor deixar as regras em paz, mantendo-as estáveis por longos intervalos de tempo e fazendo apenas aperfeiçoamentos pontuais, visando principalmente a segurança?
Não seria melhor respeitar os fundamentos da categoria e parar de distorcê-los de forma tão frequente? Mesmo porque estas intervenções não têm produzido nada de muito diferente do que se tinha antes. Ok, conseguiram por força de vários artifícios multiplicar o número de ultrapassagens mas, sejam francos: isso fez alguma diferença no resultado final? Pensem: de 95 aos nossos dias, em vinte temporadas, no mínimo 14 premiaram uma hegemonia. Aliás, em 2014, tivemos a segunda maior hegemonia de todos os tempos, a Mercedes perdendo apenas para a McLaren de 88.
Foi pra isso que se fez esta revolução de motores, tão grande e custosa que agora pode-se voltar atrás com ela?
Já tendo tentado de tudo para resgatar o interesse das pessoas pela Fórmula 1, as autoridades esportivas não poderiam, a partir de agora, simplesmente não fazer nada? Quem sabe dá certo.
Até os anos 60/70, muitas equipes que disputavam Indy 500 não colocavam ou tapavam com fita os conta-giros, numa atitude do tipo: “pise até explodir este motor”.
No fundo, Fórmula 1 e futebol, assim como quase todos os outros grandes esportes, nada mais fazem do que refletir a práxis imposta pelo capitalismo contemporâneo, resumida na máxima “vendas e lucros crescentes”. É só o que importa, é só o que se busca. Nenhuma história, nenhuma tradição, nenhum valor moral pode resistir a este movimento. Ai daqueles que a contrariarem.
Seria demais, considerar que, dado o crescimento espetacular da categoria nas últimas décadas poderíamos pensar apenas em ficar do mesmo tamanho nos próximos dez anos?
O barulho, o regulamento, os desmandos de Bernie, tudo lembra a cachaça desgraça que a gente tem que engolir…
Quando estava começando no automobilismo, em 92, Dario Franchitti completava seu orçamento doméstico dirigindo um caminhão cegonha, entregando carros Inglaterra afora.
Um dia, enquanto estava ao volante do caminhão, Dario recebeu um telefonema de Jackie Stewart, para quem pilotava, lhe dizendo: “venha para cá imediatamente. O príncipe Hussein vem visitar a equipe e quero todo mundo aqui para recebê-lo”. Franchitti refez a rota e dirigiu seu caminhão de 7,5 toneladas para a sede da equipe, tendo de parar no caminho para trocar um pneu.
Às vezes, em meus pesadelos, me vejo na obrigação de descrever a alguém que não pode vê-la, usando unicamente palavras, o formato da asa dianteira de um F1, em todos os seus volteios e superfícies.
Os carros com as suas carenagens salpicadas de borracha ao final das corridas nos lembram o que ainda há de não cirúrgico, de viril, de intimorato nas pistas.
Nove Horas de Kyalami de 72. O Ferrari 312PB de Jacky Ickx e Mario Andretti tem um problema elétrico e perde 23 voltas para os líderes da corrida. O carro é consertado e os dois pilotos decidem simplesmente pisar fundo. Terminam em 2º, a oito voltas do líder. “Foi o melhor 2º lugar da minha carreira”, lembrou Andretti.
httpv://youtu.be/DkPTvTU9M1s
Comemore as vitórias, na vida e no esporte, com moderação e sempre tendo a certeza absoluta – absoluta! – de que as derrotas virão. Inevitavelmente elas virão. Justas, injustas, explicáveis e inexplicáveis, maiores ou menores, piores ou muito piores, mas elas virão.
Um inseto escreveu estas linhas. Um ser tão inexpressivo e insignificante que talvez tenha se esquecido do único pensamento original que teve na vida.
Os “Cadernos de Esboços” anteriores podem ser encontrados aqui: Parte 1, Parte 2 e Parte 3.
Boa semana a todos
Eduardo Correa
6 Comments
Adoro essa série!
(E também estou com saudades das colunas sobre ultrapassagens)
O que causou a perda de interesse do público à Fórmula 1 é que ela se tornou uma “Fórmula de um homem só” ou, no caso deste ano, “Fórmula de uma equipe só”.
Em 2014 mesmo, já se falava desde o começo de um possível domínio da Mercedes – o que se concretizou – e as demais equipes e pilotos falavam abertamente que estavam disputando para ver quem era o “best of the rest”, ou seja, “o melhor do resto”.
Mesmo com regulamento e orçamento cada vez mais restrito, ainda assim sempre uma equipe ou um piloto domina temporada toda com uma larga vantagem para todo o resto.
Muitos reclamam dos “artificialismos” para tentar equilibrar a disputa, mas não vejo outra solução. Vejamos o exemplo da polêmica “asa móvel”. Querendo ou não, ela aumentou o número de ultrapassagens. Só comparar as corridas de Abu Dhabi “pré asa móvel” e “pós asa móvel”. E eu ouso ir além nisso. Sou a favor de adotarem o sistema de “compensação de peso” utilizado no WTCC: se um carro tiver um desempenho muito acima dos demais – medido pelo tempo da volta mais rápida – é obrigado a correr mais pesado nas próximas etapas, justamente para “igualar as condições”. Pode parecer um absurdo, mas eu tenho curiosidade de ver como ficaria a F1 nesses moldes.
Robinson,
talvez uma das coisas mais bacanas que existe no esporte é o fator surpresa. Ao fim de 2013 e com todos sabedores do regulamento para 2014, não teve ninguém que afirmasse que neste ano a supremacia seria da Mercedes. Com certeza a maioria apontava a RBR ainda como a equipe a ser batida.
Em 2015 sabemos que em termos de regulamento, pouca coisa será diferente de 2014 e que possivelmente a equipe a ser batida será a Mercedes. Mas já deixo aqui a minha aposta na Mclaren. O motivo são dois: a equipe jamais deixou de ser grande e não contratou o Alonso a toda.
Fernando Marques
Niterói RJ
Realmente o novo milênio trouxe esse pragmatismo mercantil. Ah se os Nerds dos anos 80 e 90 tão preteridos e agora bem sucedidos pudessem avançar nos tempos. Hoje são disputados por aquelas que enxergam a prosperidade futura e pouco se importam com eles ou com o que tanto estudam, mas sim com o resultado!
Enquanto tiver algum ultra trilhonário querendo bancar o glamour da F1 esta irá para ele sem se importar com nada, só enxergando o saldo bancário ao final do evento.
Só esquecem de lembrar que a categoria é feita por apaixonados, os quais foram acometidos ainda na infância e que em sua juventude provavelmente passou por limitações financeiras.Talvez o último exemplo de um garagista amante da velocidade, que deu sua vida ao esporte e, depois de passar anos de aperto logrou sucesso é o velho Frank Williams, já cansado e cada vez mais dando poderes aos seus sucessores.
Claro que é bom lembrar que para sair das últimas filas tio Frank teve que se render aos Petrodólares Árabes mas perdendo pouco da sua essência, produzindo o fabuloso FW07!!! Mas ele ainda está ai para lembrar da fabulosa F1 dos anos 70 e 80.
Ano que vem a chance de Hamilton ser tri campeão é bem grande, digamos 60%, com 35% para Rosberg se a sequência de resultados lhe permitirem a vantagem necessária para forçar erros ao inglês. Provavelmente Red Bull e Williams belisquem alguma vitória e talvez, bem talvez, Ferrari e Mclaren. Para 2016, mas seguramente 2017 só então a equipe de Bruce pode ressurgir.
Uma boa semana a todos!
Belo texto Edu, e belíssimas histórias.
Já faz alguns anos que a F1 vem perdendo a sua Fórmula.
A Fórmula 1 tem um passado brilhante, tem história, e sempre me pergunto, por que os dirigentes sangue sugas atuais não baixam um pouco a guarda e também o orgulho e se espelham um pouco no passado da categoria para faze-la brilha novamente como ela e nós fãs merecemos!?
É muita incompetência e erros em cima de erros.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Desde que a Formula 1 começou a produzir inquebráveis, creio que deixamos de ter pilotos regras e pilotos-exceção … e isso começo em 1988 com Senna …
Fernando Marques
Niterói RJ