Carreira e transição

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Nós, amantes do esporte a motor, somos os sobreviventes de uma espécie em extinção dentro do território brasileiro.

Como todos os frequentadores do GPTotal sabem bem, nós, amantes do esporte a motor, somos os sobreviventes de uma espécie em extinção dentro do território brasileiro. E, como toda boa minoria, estamos constantemente sujeitos a ironias, preconceitos e incompreensão, manifestadas das mais diversas formas. Inclusive através de algumas perguntas que podem ser simplesmente cretinas, ou motivadas por sincera ignorância.

Nessa linha, o principal questionamento costuma ser em torno do real valor esportivo de uma categoria na qual “os pilotos dos melhores carros sempre vencem”. Como chamar isso de esporte? Qual a graça de torcer, se apenas uma equipe tem chances, e muitas vezes ainda existe favorecimento interno? Tenho certeza de que não sou o único a ouvir esse tipo de questionamento/provocação o tempo todo.

Considerando, no entanto, que essas sejam dúvidas legítimas para muitas pessoas, especialmente neste momento em que um talento reconhecido como Fernando Alonso corre o risco de mais uma vez ficar sem carro para brigar pelo sonhado 3º título, talvez seja o caso de esclarecer alguns pontos inerentes às competições motorizadas.

Tanto no automobilismo quanto no motociclismo, existem categorias de base e categorias de topo. Ou, abordando sob um prisma mais apropriado a nossa argumentação, categorias de transição, e categorias de carreira.

Um dos maiores fascínios do esporte a motor nasce do respeito que precisa ser imposto pelas máquinas mais poderosas. Conforme defende Gerhard Berger, um carro de Fórmula 1 deve assustar o espectador, da mesma forma como fazem os canhões da MotoGP, e antigamente faziam os monstros do saudoso Grupo B no mundial de rali. As categorias de topo, portanto, devem oferecer desafios à altura dos melhores pilotos do mundo, quando vivendo o auge de suas habilidades. Um ambiente de velocidades, acelerações e distâncias extremas, que poderiam ser fatais (e certamente menos espetaculares) quando ao alcance de qualquer pessoa menos capacitada.

As vagas no topo são poucas, como não poderia deixar de ser. Há, portanto, que se trilhar um processo de seleção e aprendizado em categorias menores, e faz todo o sentido que tais categorias sejam monomarca, ou multimarcas com equalização. Tanto para nivelar os equipamentos e permitir que os melhores pilotos possam brilhar de imediato, quanto para tornar os custos menos proibitivos.

Em todas as etapas da escalada rumo ao topo, sempre haverá pilotos bons demais para aquele nível; outros com habilidade insuficiente para fazer a transição ao próximo degrau; e por fim aqueles que nem mesmo deveriam estar ali. Assim, temos hoje vários nomes fazendo carreira de quatro ou cinco anos na GP2, por exemplo, enquanto alguns fazem a transição para a Fórmula 1 em uma ou duas temporadas, e outros abandonam o automobilismo de ponta.

Nas categorias de ponta, no entanto, não há mais para onde subir, exceto dentro da própria hierarquia interna. Só existe um lugar no topo, e o afunilamento gera um ambiente de pressão que é perfeito para atrair a atenção do público, e para garantir aos gigantes da indústria automotiva a plataforma de pilotos necessária para que possam extravasar as próprias pressões por propaganda e laboratório.

Nessa altura a competição já não é mais restrita aos pilotos, mas envolve os interesses de algumas das marcas mais poderosas do capitalismo. Dentro desse contexto, nenhum formato é melhor que o de construtores independentes, tanto para garantir o máximo retorno publicitário quanto para assegurar a corrida tecnológica necessária à criação das motos e dos carros mais rápidos do planeta. A outra opção viável é o formato multimarca, com duas ou três fabricantes abastecendo o grid. O custo é alto? Claro. Mas as recompensas para quem vence não ficam atrás.

A partir do momento em que carros e motos já não são iguais, e os melhores pilotos não têm mais categorias para subir, a competição deixa de ser apenas na pista. Para ser campeão já não basta ser o mais rápido ao volante. Agora, também é preciso trabalhar nos bastidores para contar com a melhor equipe.

É claro que sempre haverá uma inevitável atração entre os melhores pilotos e os melhores carros, mas muitas vezes simplesmente não existem vagas suficientes para fechar essa conta. Torna-se natural e aceitável, portanto, que em determinado ano um grande talento não tenha equipamento para brigar por vitórias. Nesse estágio, todavia, já não se julga uma temporada de maneira isolada, mas a totalidade de uma carreira. Os maiores campeões, portanto, são aqueles que conseguem conjugar a força dentro das pistas, com profissionalismo, engajamento, influência, visão, iniciativa e alguma dose de política fora delas.

Veja a carreira de Fangio, por exemplo. Em 1954 ele já havia assinado com a Mercedes, mas diante do atraso da fabricante ele faz (e vence!) as duas primeiras corridas do ano pela Maserati. Segue então vencendo com as flechas prateadas, até que o time se retira das pistas ao fim de 1955. O argentino segue então para a Ferrari, que naquela altura alinhava os Lancias da temporada anterior e oferecia as melhores condições de brigar por vitórias. No momento decisivo, o título acaba sendo decidido num ato de grandeza de Peter Collins, certamente inspirado pelo tipo de aura que El Chueco exibia também fora das pistas. Por fim, em 1957, Fangio retorna à Maserati para conquistar seu quinto e mais brilhante título.

Ora, como ele conseguia estar sempre no lugar certo na hora certa? Antes de reduzirmos, no entanto, o tamanho de suas façanhas, vale lembrar que toda essa movimentação foi também mérito do piloto mais completo que já existiu. Situação completamente oposta foi vivida ao longo da carreira por seu bravo e talentoso compatriota Carlos Reutemann, que conseguiu estar sempre no lugar certo na hora errada.

Houve um tempo, não tão distante assim, em que um piloto também poderia vencer campeonatos mundiais apostando tudo numa equipe, e trabalhando dia e noite para torná-la competitiva.

Emerson Fittipaldi fez isso com a McLaren, ao costurar os acordos que deram ao time as condições necessárias para testar e desenvolver um bom projeto. Nelson Piquet fez o mesmo com a Brabham, indo muito além do papel de piloto em conquistas como a de 1983. Niki Lauda assumiu o papel de desenvolver o motor Porsche ainda no fim daquele mesmo ano, plantando as sementes para seu tricampeonato na temporada seguinte. E, no fim daquela década, ainda veríamos Ayrton Senna costurar uma parceria pessoal com a Honda, que seria decisiva para a formação do time mais forte jamais criado na Fórmula 1. Ayrton, aliás, só teve chances reais de enfrentar Alain Prost na McLaren, justamente por contar com o apoio institucional da fornecedora de motores. E acima de todos esses exemplos, claro, temos Sir Jack Brabham, que construiu o próprio carro e o levou a um campeonato mundial.

Com o tempo, e o advento de ferramentas como a telemetria, os requisitos para esse tipo de missão foram mudando. Um piloto já não pode, praticamente sozinho, assumir o desenvolvimento de um projeto a ponto de torná-lo o melhor do grid. Atualmente, mais vale a capacidade de captar recursos e investidores, dialogar com a direção do time, ajudar na composição humana da equipe, e por fim inspirar a todos a trabalharem da melhor forma possível. O maior expoente dessa nova fase, claro, é Michael Schumacher.

Para a fórmula funcionar, no entanto, o excesso de confiança ou a fidelidade extrema podem sair pela culatra. Stirling Moss é exemplo maior desse tipo de situação, tendo deixado de conquistar alguns títulos por sua fidelidade aos construtores britânicos. Depois dele, vimos outras tentativas frustradas em atitudes demasiadamente ousadas por parte de Emerson Fittipaldi (Copersucar), Niki Lauda (Brabham), Piquet (Lotus), e até do próprio Schumacher, em seu retorno pela Mercedes. Na MotoGP houve o episódio de Valentino Rossi na Ducati, mas talvez nenhum caso se assemelhe, na atualidade, ao que vive Fernando Alonso.

Após conquistar dois títulos por uma equipe que, antes dele, ainda não tinha alcançado o feito, Alonso tinha bons motivos para acreditar que poderia vencer sob quaisquer condições, e por isso teria uma carreira gloriosa pela frente. Tal crença certamente terá sido fortalecida ao longo de 2007, quando o asturiano assumiu o cockpit de uma equipe que vinha mal das pernas e de imediato a levou a brigar por vitórias – ainda que, no processo, tenha tomado parte num dos maiores escândalos na história da categoria.

Ainda que isso jamais tenha sido verbalizado, foi provavelmente esta confiança toda na própria grandeza que levou o espanhol a deixar o relacionamento com a McLaren se deteriorar daquela forma, ficando “queimado” com uma das poucas equipes que tem estrutura para, ano após ano, produzir um carro vencedor.

Após passar dois anos no limbo de uma Renault que se desfazia, Alonso não conseguiu montar um time em sua volta que fosse capaz de lhe dar um carro à altura de sua pilotagem. Angustiado, o asturiano não teve pudores em procurar Red Bull e Mercedes em busca de emprego, expondo os italianos a ponto de ter sido chutado ao fim deste ano, e aos 33 anos não ter destino certo para dar prosseguimento à carreira.

Tendo vencido “apenas” 12 Grandes Prêmios desde o fim de 2007, Alonso paga nas pistas o preço do mau comportamento fora delas. E cria um grande problema a todos nós, que tantas vezes temos que nos virar para explicar por que um dos maiores pilotos de todos os tempos está sempre brigando por posições intermediárias, e ainda assim nós teimamos em chamar isso de esporte.

Forte abraço a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

5 Comments

  1. Lucas disse:

    Bom, no caso do Schumacher não sei se foi tanta ousadia assim, pois ele estava assinando com o time que estava ganhando os dois campeonatos daquele ano. Ousado mesmo teria sido se ele tivesse assinado com a Ferrari, que naquele ano, como ele mesmo pôde conferir, estava numa situação possivelmente pior até que a que se encontravam quando ele assinou com eles pela primeira vez… Até hoje eu tenho minhas dúvidas se foi mesmo por dor no pescoço que ele não quis dirigir aquela carroça que o time construiu em 2009.

    Quanto ao Alonso, é realmente uma pena que não levou em 2010 e/ou 2012, pois teria sido a resposta perfeita a essa incômoda pergunta que nós estamos tão acostumados a ter que responder… Mas vale notar que de certa forma ele próprio deu a resposta anos antes – a Renault até começou melhor em 2006, mas considerando a temporada como um todo a vantagem foi claramente da Ferrari (que ainda por cima tinha como primeiro piloto um sujeito que ganhou alguns títulos na F1…), e em 2005, embora a McLaren tivesse uma clara desvantagem em confiabilidade, era também um carro bem mais veloz. Já comentei aqui, mas é notável que ele esteja tão alto na lista de maiores vencedores da categoria sem nunca correr numa equipe dominante, vantagem que todos que tiveram mais vitórias que ele (e alguns dentre os que tiveram menos) puderam desfrutar, alguns deles inclusive na situação de equipe com hierarquia rígida, o que significa poder acumular vitórias quase sem esforço. O que é triste, pois, como para muita gente o que vale são só os números brutos, sem a análise sobre como foram conseguidos, corre-se o risco de que Alonso se aposente sem o respeito que merece. O mínimo que se pode dizer sobre ele é que está entre os dois melhores pilotos a surgirem desde aqueles da clássica foto de 86 – na minha opinião o melhor, mas sei que isso é mexer em vespeiro.

    E sobre o Stirling Moss, eu fico com aquela frase cujo autor até já esqueci, mas que é bem pertinente: o fato de que Moss não teve nenhum campeonato mundial foi mais depreciativo pro campeonato mundial que para o Moss.

  2. Mauro Santana disse:

    Fernando

    O Vettel só vai conseguir vencer na Ferrari, se a Ferrari construir um carro vencedor, pois do contrário ele não vai fazer muita coisa lá, vide o que esta acontecendo este ano na RBR.

    Na boa, eu sempre tive minhas duvidas com relação ao Vettel ser este fenômeno todo, tetra campeão e tal, pois quem lê o que eu escrevo aqui no Gepeto durante estes anos, sabe que eu sempre duvidei da sua capacidade como tal Fenômenoooo.

    Sendo assim, aposto muito mais em o Alonso fazer uma Mclaren andar bem, do que um Vettel fazer uma Ferrari andar bem.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  3. Fabiano Bastos disse:

    Marcio,

    Gostei muito da sua análise sobre os outros predicados, fora a pilotagem, que um piloto deve possuir para ser campeão na F1, e como estes se modificaram conforme a categoria se modernizou.
    E parece mesmo que Alonso não possui todos os predicados necessários, principalmente a habilidade de construir um bom clima de trabalho nas equipes. Foi isto que ele mostrou por onde passou. Por isto, fora das pistas, tudo indica que ele não é o melhor piloto.
    Mas isto não é uma situação imutável, pode ser que ele tenha amadurecido, aprendido algumas lições e construa algo melhor na sua próxima equipe.
    Seria ótimo para a F1, mas eu não apostaria nisto!

  4. Mauro Santana disse:

    Que coluna Márcio, aplausos de pé!!!!

    Parabéns!!!

    É bem isso, vire e mexe me fazem tais perguntas, e nem sempre consigo convence-los do por que a F1 esta assim.

    Até minha esposa, que acompanha a F1 muito, mais muito de longe, ficou horrorizada com a tal pontuação dobrada no GP de AhbudaBI, para dar um exemplo.

    Alonso foi na minha opinião, o ultimo piloto a ser campeão de verdade, pois depois dele, os pilotos que conquistaram tais feitos só o fizeram por estarem nos melhores carros do grid.

    E ele, Alonso, é o que no momento passa por tal drama, e nós, os amantes da F1, ficamos com cara de bobos por achar isso um esporte.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    discordo quando você diz que “… Após conquistar dois títulos por uma equipe que, antes dele, ainda não tinha alcançado o feito,…” O Alonso foi bi-campeão pela Renault, que então era na realidade uma continuação da extinta Bennetton do Briattore (que também chefiava a equipe Renault). A equipe já era vencedora, com dois tÍtulos conquistados com o Schumacher.

    Quando Alonso foi para a Ferrari, creio eu que ninguém imaginava que após 4 temporadas ele conseguiria apenas 12 vitorias assim como nenhum titulo mundial pela equipe. Agora ele vai para a Mclaren com a mesma expectativa. Não tem como ele fugir deste risco.

    O chato, a meu ver para Alonso, será se o Vettel chegar na Ferrari em 2015 vencendo de cara e mandando na temporada como fez na RBR.


    A Formula 1 é o topo e mais um brasileiro chega na categoria em 2015. Felipe Nars assinou com a Sauber, que não é uma Willians mas passa longe de ser uma MArussia ou uma Catherman … boa sorte ao Felipe Nars que já conta com a minha torcida …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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