Circuito inédito, vencedor inédito. Só um item não muda

Futuro repetindo o passado
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A última prova importante de 1932 teria lugar em Marselha.

O Automóvel Clube dessa cidade planejou usar o circuito de Miramas, perto dessa cidade e do porto. Muito dinheiro tinha sido investido nesse oval de 5 km ainda na década de 20 mas por diversas razões ele vinha passando batido perante a categoria máxima do automobilismo.

Desta vez o A. C. M. não queria perder a oportunidade de brilhar, tratando de elevar Marselha ao status das provas mais importantes do calendário.

As curvas, largas mas planas, passaram a ter inclinação nos contornos externos.

O concreto permaneceu rústico, o que predizia alto desgaste de pneus.

Nesse ambiente os competidores deveriam cobrir 80 voltas, 400km no total, estimando-se que virariam facilmente acima dos 200km. Palco pronto para fortes emoções.

Para garantir a presença das principais marcas os prêmios eram generosos.

O vencedor levaria 20 mil francos, o segundo colocado 10 mil. A partir da 10a. volta quem liderasse levava mais 700 francos e o segundo 300. Se um competidor liderasse todas as voltas a partir da 10a. ganharia nada menos que 69 mil francos. Pas mal!

Com isso o A. C. M. atraiu 21 inscrições, ótimo número considerando que era fim de temporada.

A Alfa oficial estaria presente com Tazio Nuvolari e a dominante Tipo B/P3, 2,6L 8 cilindros em linha. Teria a companhia de 3 Alfa Monza, 2,3L 8 em linha, conduzidas por Pierre Félix, Raymond Sommer e Goffredo Zehender, pilotos independentes.

Talvez observando que somente uma Alfa P3 iria participar a Maserati deve ter resolvido investir um pouco mais, trazendo a grande V5 (5,0L 16 em linha) para Luigi Fagioli mais uma 8C 3,0L 8 em linha para Amedeo Ruggeri, a quem se somava a 26M, 2,5L 8 em linha independente de Jean de Maleplane.

Achille Varzi trouxe sua Bugatti vermelha T51 2.3L 8 em linha e Louis Chiron a sua azul. Sendo território francês, natural que esta marca fosse representada por mais pilotos independentes locais. Assim René Dreyfus, Jean Gaupillat e Marcel Lehoux inscreveram suas T51, Benoît Falchetto e Louis Braillard suas T35B (2,3L, 8 em linha), Mademoiselle “Hellé-Nice” sua T35C (2,0L 8 em linha) assim como o jovem talento Guy Moll.

Michel Foucret iria pilotar uma Mercedes SSK (7,1L, 6 em linha).

Como era de se esperar, a combinação P3-Tazio era favorita e não decepcionou, fazendo sua melhor volta nos treinos com a impressionante média de 200,8 km/h, superando mesmo a Maserati V5 de Fagioli, em tese com maior potencial num circuito tão veloz.

Os esforços dos organizadores foram recompensados, uma multidão estimada em mais de 40.000 pessoas veio se acomodar em volta da pista no dia da corrida.

Com 4 desistências, o grid foi composto por 17 carros, organizados por Charles Faroux, o grande responsável pelo Grand Prix de Mônaco e pelas 24 Horas de Le Mans.

Na primeira fila largavam Lehoux, Varzi, Nuvolari e Moll. Na segunda, Falchetto, Maleplane, Fagioli e Foucret. Na terceira, Sommer, Chiron, Braillard e Gaupillat. Na quinta, Félix, Dreyfus, Ruggeri, Zehender e na última Mlle. “Hellé-Nice”.

25 de setembro, dia bonito, quente e seco.

A largada foi dada às 14:34 pelo Dr. Ribot, prefeito de Marselha, com a bandeira da cidade.

Chiron mostra sua enorme classe, saindo da terceira fila para a liderança.

Colado em sua traseira, uma Alfa. Acertou quem pensou em Nuvolari.

Mas desta vez tinha mais gente querendo mostrar serviço, tentando suplantar favoritismo.

Tazio passa sim em primeiro no fim da volta inaugural, mas seguido de perto por Lehoux.

Amedeo tem o eixo traseiro quebrado e assim a Maserati fica desfalcada logo no início.

Varzi também estava no pelotão dianteiro e assume a ponta na terceira volta, com Tazio, Fagioli e Lehoux na cola.

Na sexta volta os ponteiros colocam uma volta sobre a última colocada, “Hellé Nice”.

Na volta sete é Fagioli quem passa na frente, seguido por Varzi, os demais logo atrás.

Volta nove e Zehender marca o melhor tempo até o momento, 1m34s, média de 191,489 km/h. Nada mau para um carro de apenas 2.300cc já distante do seu apogeu e um piloto independente.

Nessa altura Foucret precisa abandonar, com vazamento de óleo da SSK.

Embora se esperassem problemas com pneus, é outro o grande fator técnico de desestabilização, porque Lehoux e Mlle. “Hellé Nice” também precisam ir aos boxes, também com problemas de óleo.

Chiron vinha perdendo terreno, devido ao previsto desgaste excessivo de pneus, mas se mantém na competição, agora reduzida a 15 carros.

A audiência se delicia com a furiosa briga entre os ponteiros, Tazio, Varzi e Fagioli, ninguém querendo ceder terreno. Achille, em particular, se mostra agressivo, diferente da sua postura matreira de esperar o momento certo para atacar, mais no fim das provas.

Parece que em solo francês a Bugatti se mostra mais competitiva, porque Lehoux, Gaupillat, Dreyfus estão logo ali, à espreita, escoltados por Zehender.

Na décima volta, um quarto de prova percorrido, a ordem era: Tazio, 16m43s; Luigi, 16m44s; Achille, 16m45s; Lehoux, 16m46s, com Gaupillat no mesmo segundo; Dreyfus, 16m49s; Zehender, 16m51s; Sommer, 17m11s; Falchetto, 17m25s; Félix, 17m42s.

O óleo faz mais uma vítima, de Maleplane, desta vez problemas de pressão.

Com 14 carros na pista, Fagioli passa na liderança na volta 12.

Na volta 15 Varzi é obrigado a abandonar, com uma mola quebrada. E nessa volta se inaugura a esperada sessão de troca de pneus, Zehender sendo o primeiro a parar.

Chiron parecia ser o que mais sofria com eles, não estava conseguindo passar do nono lugar.

Tazio reassume a ponta na volta 17. Sua vida parece entrar em uma fase mais calma agora que Lehoux, que vinha integrando o pelotão dianteiro por todo esse tempo, teve que abandonar devido… a um duto de óleo quebrado.

Dreyfus tem um pneu estourado, sai da pista e vai parar em uma vala, felizmente sem se machucar.

A calma é apenas aparente para o mantuano porque é Fagioli quem passa na liderança na volta 20, com média de 178,48 km/h, 33m37s de prova.

Tazio o segue, um segundo atrás, Zehender mais um segundo, Gaupillat (33m41s), Lehoux (33m53s), Sommer (34m27s), Falchetto (34m52s). Já tomando uma volta, Moll (35m34s) e Chiron (35m56s). Braillard está duas voltas atrás (37m15s).

Mais 5 voltas e Nuvolari reassume a ponta, com Fagioli e Gaupillat no seu encalço.

A audiência devia estar formando um raro caso de apnéia coletiva, de tanto prender a respiração.

Mais 5 voltas assim, 150km de prova, Nuvolari se mantém na ponta com tempo de 50m36s, média de 179.60 km/h, seguido por Fagioli (50m40s), Gaupillat (50m41s), Sommer (51m43s). Com uma volta de desvantagem vem Chiron (53m15s), Moll (53m55s) com duas voltas, Zehender (55m30s) três, Braillard (57m31s) quatro.

Gaupillat pára para trocar pneus na volta 32, deixando Luigi e Tazio duelando na frente.

Na metade da prova, 200km, a grande Maserati V5 vai aos boxes para trocar pneus, reabastecer e verificar um problema no sistema de direção, que não é resolvido.

Perde 3 minutos.

E assim um piloto que na volta 20 estava mais de um minuto atrás do líder agora ocupa a segunda posição: Raymond Sommer.

Tazio cumpriu 200km em 1h07m13s. Sommer em 1h08m34s. Gaupillat vem em terceiro, com 1h09m57s mas uma volta atrás. Penando com o sistema de direção Luigi está em quarto, 1h10m53s, duas voltas atrás. Moll, 1h12m06s, 3 voltas; Lehoux, 1h18m51s, 7 voltas.               A esta altura Chiron também tinha abandonado.

Fagioli não consegue aumentar o ritmo, tendo ainda que fazer mais uma parada, com o problema na caixa de direção se agravando.

Zehender pára nos boxes para abastecer mas o motor de sua Alfa se recusa a dar partida.

Como os mecânicos tentam fazer pegar no tranco, ele é impedido pela direção de prova de prosseguir e assim Toselli, o piloto reserva, assume seu posto, conforme as regras.

Com cada vez menos carros competindo, portanto passando com mais distância entre si, a multidão fica mais curiosa e se sente impelida, literalmente, a avançar para dentro da pista para observar melhor.

E os carros passavam derrapando controladamente em cada curva, conforme o estilo de pilotagem da época. Bastaria um único piloto perder minimamente esse controle para acontecer uma carnificina.

Na volta 48 finalmente Tazio vai aos boxes para troca de pneus e reabastecimento. Com isso a vantagem que tinha sobre Sommer desaparece.

Parece que a cronometragem da Alfa estimava uma vantagem maior que 1m21s e assim a equipe relaxou. Quando Sommer fez sua parada, apenas reabasteceu e assim manteve a ponta. A confusão entre a Alfa e a cronometragem oficial se estabelece.

Aparentemente a primeira achava que Sommer já tinha tomado uma volta e a segunda desmentia.

Com uma Alfa Monza, menos potente que a P3, o francês vira mais lentamente, média de 173,43 km/h. Provavelmente apostava em regularidade, sem imaginar as chances que apareceriam.

Com 250 km cumpridos, Nuvolari vem em segundo, seguido por Gaupillat, Toselli, Moll, Fagioli e Braillard.

O boxe Alfa sinaliza para Tazio apertar o ritmo mas, seguro que já tinha colocado uma volta sobre Sommer, ele não acata. Acaba parando nos boxes para entender o que ocorria.

Volta imediatamente para a pista e a platéia passa a assistir a uma impressionante demonstração de coragem e perícia. Daquelas que alimentam a lenda.

Na volta 53 ele bate o recorde da volta com a assustadora média de 199,74 km/h.

Mais 7 voltas. Sommer cumpriu 1h42m43s de prova, média de 175,23 km/h, portanto aumentando o ritmo. Tazio está 2m6s atrás.

Na volta 68 o francês pára para trocar pneus. Como já tinha abastecido na parada anterior, volta sem perder a liderança.

Após 70 voltas, 350 km percorridos, a P3 reduziu a distância para meros 46 segundos.

E ela continua diminuindo. Até que, faltando cinco voltas, um pneu estoura.

Nuvolari consegue controlar, ir aos boxes e retornar, mas não há mais tempo hábil para alcançar Sommer. Incansável, ele cruza a 46.2 segundos do vencedor.

Assim que Tazio recebe a quadriculada a multidão, entusiasmada, invade a pista.

Tem ainda 5 competidores para cruzar a linha de chegada mas isso se torna impossível.

A duras penas os organizadores conseguem fazer com que Moll, Toselli, Gaupillat, Fagioli e Braillard parem antes da tragédia anunciada.

Aldo Giovannini, o chefe da equipe Alfa, vai à direção da prova para protestar o resultado mas desiste ao ver os mapas da cronometragem oficial.

Não importa o modelo ou o circuito, esse era mesmo um ano glorioso para a Alfa.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

4 Comments

  1. Nada como aprender com um mestre !!

  2. Paulo de Tarso disse:

    Saboroso saber de Mlle. “Hellé-Nice”.
    E, com velocidade por volta de 200km/h, com carros que que tinham estrutura de segurança mínima, para não dizer nenhuma,
    é uma loucura. Até por saber que os pilotos realmente engalfinhavam-se nas disputas. Ótimo texto.

  3. Fernando Marques disse:

    Chiesa,

    Sensacional …
    Uma pena ter poucos registros fotográficos.

    É sempre um deleite ler as histórias das corridas dos anos 1900 pré 2° guerra …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Carlos Chiesa disse:

      Muito gentil, como sempre, Fernando. De fato, esse era efetivamente o automobilismo raiz. Não havia dúvida
      sobre o valor de cada componente. Carros, pilotos, equipes, pneus, circuitos, tudo tinha seu valor evidenciado,
      sem distrações artificiais.

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