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Imagine hoje: a Fórmula 1 vai fazer um GP em algum país do oriente e, bomba: Vettel é sequestrado.

Imagine* que estamos novamente na temporada de 2006, no meio da refrega entre Michael Schumacher e Fernando Alonso. Entre uma etapa e outra, o alemão resolve aceitar o convite para correr de Ferrari em uma prova de turismo, disputada em algum emirado do Oriente Médio. Junto com ele, outras estrelas do grid, como Kimi Raikkonen ou Jenson Button. Schumacher chega, naturalmente faz a pole, volta para o hotel, de onde é seqüestrado por uma milícia rebelde em pleno saguão.

À seqüência de absurdos: nenhum multicampeão de Fórmula 1, disputando um título, vai correr uma prova solta no meio da temporada, valendo nada e ainda representando risco para sua integridade física. Mais: pilotos de Fórmula 1 não se metem em ambientes politicamente instáveis, sujeitos a bombas, chacinas ou seqüestros. Terceiro, e talvez mais importante: ninguém entra armado impunemente em um saguão de hotel badalado para seqüestrar a maior estrela da categoria.

Troque 2006 por 1958, Schumacher por Juan-Manuel Fangio, Ferrari por Maserati, Oriente Médio por Cuba, Raikkonen e Button por Stirling Moss e Wolfgang von Trips e você terá um dos episódios mais míticos – e inimagináveis, aos olhos de hoje – da história do automobilismo mundial.

Em fevereiro de 1958, ano de sua aposentadoria na Fórmula 1, Fangio aceitou o convite para participar de uma prova de turismo no chamado Paseo del Malecón, em Havana, capital cubana. A ilha vivia sob domínio de Fulgêncio Batista, um ex-sargento que havia chegado ao poder na década de 1930, graças a um golpe militar. Eleito em 1940, manteve-se no poder a custa de novo golpe, já na década seguinte.

Durante o governo de Fulgêncio Batista, Havana floresceu como paraíso turístico tropical. Seus cassinos atraíam milionários de vários cantos do mundo, apresentando espetáculos com artistas de primeira grandeza. Carmen Miranda, por exemplo, cumpriu mais de uma temporada por lá. Era natural que a ilha tivesse envergadura para organizar também uma corrida internacional.

Mas, se é verdade que Havana sorria em seu esplendor de ressort chique, também considere-se que o resto do país vivia à míngua. Um desequilíbrio sócio-econômico acintoso fez crescer a insatisfação da população com o interminável Batista. Nesse caldeirão caribenho, nasceu o Movimento 26 de Julho, revolucionário, liderado por Fidel Castro.

Anunciada a corrida em Havana e confirmada a presença de Fangio, os guerrilheiros do grupo enxergaram ali extraordinária oportunidade de chamar a atenção do mundo para sua causa. Planejaram a ação com requintes estratégicos que incluíram o envio de uma militante à primeira corrida da temporada de Fórmula 1 daquele ano, na Argentina, para pesquisar dados sobre o pentacampeão.

Também prepararam o cativeiro e endereços de passagem para confundir eventuais perseguidores, além de destacarem uma pequena frota de veículos para seguir o piloto em seus deslocamentos em Havana. Do momento em que desembarcou, até o seqüestro, Fangio sempre teve milicianos em seu encalço. Suspeitas não foram levantadas porque os jovens, previdentes, promoveram um eficiente rodízio de automóveis na sinistra escolta.

A corrida seria realizada em uma segunda-feira, feriado na ilha. O treino classificatório aconteceu no domingo, durante o qual Fangio marcou a pole position. Voltou para o hotel à tarde. Revolucionários se espalhavam pelo saguão, assim como entusiastas de corrida, ávidos por um abraço ou um autógrafo das estrelas, especialmente do argentino.

Prontos para agir desde a véspera, os revolucionários destacados para a ação já haviam abortado o seqüestro em duas ocasiões. Na noite de domingo, saguão cheio, pararam os automóveis na frente do Hotel Lincoln e se misturaram aos fãs e à trupe da corrida. Em gesto ousado, um deles telefonou para o quarto de Fangio, passando-se por jornalista, solicitando uma entrevista. O empresário do piloto, Marcelo Giambertoni, informou que não seria possível, pois Fangio estava de saída. Foi a senha para a ação.

Quando o argentino surgiu no lobby do hotel, a situação mais esdrúxula aconteceu. Falamos de Schumacher no início, certo? Difícil achar alguém hoje, minimamente informado, que não reconheça a fisionomia de Schumacher. Pois os guerrilheiros, que não deveriam ser pessoas desinformadas, por um instante ficaram atônitos, sem ter certeza sobre qual dos dois homens – Fangio e Giambertoni – era o pentacampeão. A resposta foi dada da forma mais risível possível. Um fã, visivelmente alterado pela ação do álcool, atracou-se a Fangio em um abraço, tecendo loas ao argentino.

Mais tarde, ao relatar a operação, um dos seqüestradores admitiu: “O borracho que deu vivas a Fangio foi totalmente fortuito e não tinha nenhuma ligação conosco”. Mas, graças ao borracho, o grupo teve certeza da identidade do piloto. Um dos seqüestradores chegou perto de Fangio e anunciou a ação. Surpreso ao ver a arma do rebelde por baixo do casaco, mas mantendo aparente calma, Fangio apenas disse: “Vamos”.

Depois de entrar no carro e de rodar por alguns minutos, o grupo iniciou uma série de paradas em endereços diversos, em uma situação pífia para a magnitude da ação. O militante que conduzia o carro primeiro parou em sua própria casa, para apresentar Fangio à mulher e pedir um autógrafo para o filho recém-nascido! De lá, foram a um primeiro cativeiro, que não pode ser utilizado por já estar ocupado por um militante ferido!

Chegaram, então, à casa que se confirmou como cativeiro. Não era um porão sem janelas, apenas uma casa de uma família de classe média, na qual destinaram um quarto, vigiado por militantes armados, ao argentino. Fangio conversou com os seqüestradores em mais de uma oportunidade, ouvindo deles relatos sobre a situação do país e as motivações do Movimento 26 de Julho. Sem se alongar nas considerações políticas, alegando entender pouco ou quase nada do assunto, Fangio manteve-se sempre tranqüilo e em postura amistosa com os seqüestradores. Dormiu a noite de domingo para segunda no cativeiro, fez as refeições com o grupo. Consta que comeu “até arrebentar”, em suas próprias palavras.

Na segunda-feira, dia da corrida, o grupo ofereceu ao piloto a oportunidade de ouvir a narração da prova pelo rádio. Fangio recusou o convite, dizendo que seria penoso escutar o ronco dos motores e não estar lá. Neste mesmo dia, durante a tarde, os revolucionários começaram as gestões para devolver o piloto. A opção foi entregá-lo por meio da embaixada da Argentina. Os diplomatas indicaram um endereço para receber o seqüestrado, um prédio de apartamentos, em princípio considerado arriscado pelos guerrilheiros.

Diante da falta de oferta por um lugar melhor, e do tempo que passava, o grupo resolveu arriscar, dirigindo-se com Fangio ao local determinado. Chegando ao apartamento, guerrilheiros e o campeão foram recebidos por funcionários ressabiados da representação argentina em Cuba. Fangio desarmou-os, dizendo que não se preocupassem com os militantes. “Eles são meus amigos.”

Para comprovar os bons tratos, o piloto escreveu um bilhete, deixado aos seqüestradores, agradecendo pelo tratamento recebido, e arrematado por sua famosa assinatura, aquela que tantos fãs buscavam com entusiasmo no lobby do Hotel Lincoln.

Fangio abandonaria as pistas naquele mesmo ano, após o GP da França. O Movimento 26 de Julho ainda levaria quase um ano para instalar a revolução cubana. O Grande Prêmio de Cuba teve apenas seis voltas, com um acidente fatal envolvendo o piloto local Armando Cifuentes. Stirling Moss liderava com sua Ferrari.

Quando esteve no Brasil para um evento promocional, em 1992, Fangio relembrou o episódio, dizendo que sempre recebia cartões de aniversário enviados por seus “amigos seqüestradores”. Reafirmou os bons tratos e entendeu as razões do movimento, que não tinha nada contra ele, apenas utilizou-o para chamar a atenção do mundo para a situação política local. Entre os seqüestradores, a história registra os nomes de Angel Paya García, Manuel Uziel e Arnol Rodríguez, chefe da ação que chegou a ser Ministro das Relações Exteriores de Cuba nos anos 1960.

Na semana passada, quando Fidel Castro anunciou sua renúncia ao governo de Cuba, foi inevitável lembrar essa história. Coincidentemente, no último final de semana, ela completou 50 anos. Fangio morreu, Fidel se afastou, a Fórmula 1 continua. E continua sob o domínio de um comandante longevo como foi Fidel. O que será de Cuba? O que será da Fórmula 1, quando Bernie Ecclestone se for?

Bom fim-de-semana a todos.

Alessandra Alves

*Coluna publicada originalmente em 25 de fevereiro de 2008

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

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