Ontem (31), por ocasião do aniversário de 25 anos do bicampeonato de Mika Häkkinen, me pus a relembrar aquela temporada e, sobretudo, revisitei alguns mitos que foram criados, alguns deles propagados até hoje. Particularmente, 1999 é um ano impactante em minha vida, pois foi quando mudei do interior para a capital, com 12 para 13 anos, e muito de minha personalidade passa a se moldar então – tema que explorei ao rememorar outra temporada, 2001, aqui neste espaço.
Com relação à F1, lembro bem de 1999 por alguns momentos muito marcantes: o X de Barrichello em Schumacher na França, o acidente de Schumacher na Inglaterra e o choro de Hakkinen na Itália foram os mais impactantes pra mim. Mas 1999 – e só percebemos isso quando nos debruçamos no corrida a corrida, nos dando a oportunidade de questionarmos nossa memória e nossas memórias – teve várias nuances distintas, a coisa não sendo de fácil análise.
Portanto, vou elencar aqui três mitos, três afirmações repetidas no último quarto de século, e analisar se são condizentes com a realidade apresentada naquele campeonato de 16 etapas (sim, isso aconteceu um dia!)
“Mika não mereceu o título, deu muita sorte”
Essa afirmação nasce, sobretudo, em virtude da ausência de Schumacher no momento crucial da temporada, a partir de sua segunda metade. O fato de a Ferrari ter conquistado o mundial de construtores traz ainda mais “certeza” na voz de quem diz isso. Será verdade?
Em primeiro lugar (aliás, você sabia que “Primeiramente” não existe?), torno a repetir o que sempre digo: na F1, ser campeão por sorte é impossível. Pode haver um vice azarado, mas um campeão sortudo, não. Além disso, é preciso lembrar que desempenho e resultado nem sempre — ou “normalmente não” — andam juntos, bastando mencionar Clark em 1967, Senna em 1993, Alonso em 2012, Schumacher em 1997 e tantos outros.
Mika Häkkinen conseguiu, naquele ano, um total de 11 pole-positions em 16 GPs, o melhor número máximo desde 1993 e que só seria superado três vezes desde então: em 2011, por Sebastian Vettel (15!), em 2016, por Hamilton, e 2023, por Verstappen (ambos com 12). Em termos percentuais, apenas 7 pilotos foram “melhores” em um ano: além do mencionado Vettel, Senna (1988 e 89), Mansell (1992), Prost (1993), Clark (1963) e Fangio (1956).
Naquele ano, Mika foi também quem mais venceu (5 vezes), quem mais marcou a melhor volta (6), quem mais foi ao pódio (10) e quem mais Km liderou (1.881, mais do que o dobro do segundo, Coulthard, com 782), mesmo tendo sido apenas o quinto que mais rodou (4.044 km), o que significa dizer que ele foi líder por quase metade do tempo em que esteve na pista (46,51%, para ser exato).
Ele foi dominante, portanto.
Mas como explicar a mísera diferença (apenas dois pontos, 76 a 74) para Eddie Irvine, piloto que é, com muita condescendência, um Bottas da época?
Ora, se Mika foi apenas o quinto em Km percorridos na temporada, já temos uma dica: Häkkinen teve muitos abandonos, a maioria deles enquanto liderava. Cometeu erros, obviamente (San Marino e Monza), mas na maioria dos casos foram falhas no equipamento que lhe custaram não apenas pontos mas virtuais vitórias: na Austrália, na Inglaterra e na Alemanha, em todas as três, Mika liderava quando foi acometido por problemas no equipamento. Em Melbourne (acelerador) e Hockenheim (pneu), o abandono foi imediato, enquanto que em Silverstone (também roda/pneus) ele retornaria à pista apenas para de fato abandonar.
Só nessas três etapas, Mika liderou 65 voltas. Em duas delas, o vencedor foi Irvine. Na outra, Coulthard – com Irvine em segundo. Foram, portanto, 26 pontos somados pelo norte-irlandês e zero pelo finlandês. Poderiam ser 30 para Mika – e 16 para Eddie (façamos as contas, portanto…).
“Carreras son carreras”, diria Fangio, e tanto a procura por confiabilidade quanto pelo máximo desempenho do equipamento fazem parte do que torna a F1 tão especial no mundo do automobilismo e dos esportes em geral. Portanto, os méritos devem ser creditados também à Scuderia, que soube maximizar suas qualidades e teve pouquíssimas quebras ao longo do ano. (Dado: a McLaren, com seus dois pilotos, completou um total de 7.599 km contra 9.033 da Ferrari. Para efeito de comparação, a Stewart percorreu 7.590 km com Rubinho e Herbert…).
Independentemente de tudo isso, na hora H, no momento do tudo ou nada, na última corrida do ano, Mika foi soberbo, fazendo talvez a grande corrida de sua carreira. Mas e quando o inimigo mora ao lado? E quando o adversário maior é a própria equipe?
No GP da Áustria, Mika fez uma de suas 11 poles no ano, e Coulthard largou ao seu lado. Logo na primeira volta, o escocês cometeu um de seus tradicionais e bizarros erros, tirando o finlandês da pista. DC permaneceu na ponta por longas voltas, Häkkinen teve de remar do final do pelotão para a terceira posição, em performance épica, mas terminou mais de 20s atrás de Coulthard e Irvine, que brigaram até o final (o ferrarista venceu com 0.3s de vantagem).
Dado o contexto, seria muito exagero pensar que a McLaren devesse mandar Coulthard ceder a posição para Mika, até porque o escocês já fizera isso no passado – Austrália 1998, Europa 1997. Mas e na Bélgica? Lá, Irvine já era líder do certame (A F1 chegou em Spa tendo Irvine na ponta com 56 pontos e Mika em segundo, com 54. Coulthard, o quarto, tinha 36…). Hakkinen foi novamente o pole, mas Coulthard – desta vez, sem abalroá-lo – tomou a ponta logo de início. No final, a dupla da McLaren tinha quase meia volta de distância para Frentzen, o terceiro.
Ron Dennis deveria mandar Coulthard desacelerar aos poucos e abrir passagem para Mika? Talvez não, mas sabemos como a Ferrari agiria nessa situação, não sabemos?…
A resposta nos leva ao segundo mito acerca de 1999.
“A Ferrari não quis que Irvine ganhasse”
No esporte é comum a “entregada” – no inglês, Tanking – quando se vislumbra alguma possibilidade de pegar uma “chave” mais fácil (em torneios eliminatórios), por exemplo: não falo aqui de casos em que haja dinheiro envolvido, ou ameaças aos atletas, mas de questões realmente intencionais de uma das equipes que, vislumbrando algum benefício na sequência, optam por facilitar ao adversário: casos clássicos envolvem a seleção alemã diretamente (Copa de 1974, contra a vizinha Oriental) e indiretamente (Copa de 1982, contra a Áustria), jogos em que se atingiu o placar de 1 a 0 – bom para ambos os lados – e, de repente, a vontade desapareceu.
Outro caso clássico foi da seleção brasileira de vôlei, no Campeonato Mundial de 2010, perdendo de propósito para a Bulgária na fase anterior às semifinais para não precisar enfrentar os Cubanos logo na sequência. Na Fórmula 1, temos n casos de resultados manipulados, seja em jogos de equipe ou contra adversários diretos, mas o mais claro caso de Tanking seria o infame GP de Singapura de 2008.
Em todas as situações listadas, porém, tivemos equipes entregando resultados que beneficiaram… a própria equipe. Nesta afirmação sobre 1999, a Ferrari teria sabotado a própria Ferrari para que a Ferrari não vencesse o mundial de pilotos. Será verdade?
A cena conhecida como “roda fantasma”, ocorrida no GP da Europa daquele ano, realmente é estranha, para dizer o mínimo: Irvine vai aos boxes, e tudo ocorre perfeitamente exceto pelo fato de que o pneu traseiro direito simplesmente havia sido esquecido. Na hora de a Ferrari liberar seu piloto, percebe-se a falha grotesca, e longos segundos se passam até que a peça finalmente seja trazida, devidamente colocada e o carro #4 liberado. À primeira vista, é impossível não flertar com a teoria da conspiração, mas lembrando do histórico ferrarista (Kimi em Valencia e Massa em Singapura, 2008, Sainz na Holanda em 2022, entre outros), prefiro pensar na interminável capacidade da Scuderia em cometer erros bizarros nos boxes – aos quais nem Schumy escapava (Áustria 2003), apesar da ocorrência muito menor.
Häkkinen e Irvine estavam próximos, o finlandês também enfrentando problemas nos boxes, e no final, dos males o menor para os italianos: Mika terminou em quinto, Irvine em sétimo. Como eles haviam chegado à etapa de Nürburgring empatados, o piloto da McLaren abria uma vantagem pequena, apenas dois pontos.
Após esse episódio, parecia muito claro que o título de pilotos – e, eventualmente, também o de construtores – só seria da Ferrari se Schumacher retornasse para ajudar Irvine. Para tanto, o alemão realizou testes em Mugello. Resultado: na 15ª volta, Schumy bateu num guard rail. Ele continuou os testes com um carro reserva, mas o anúncio inicial foi o de que o alemão não retornaria naquela temporada. Rumores na imprensa e nos bastidores davam conta de que a decisão pelo não retorno era nada mais do que isso: não queriam que Irvine, piloto de pouco talento e que ganhava 30 vezes menos do que Schumacher, fosse o responsável pelo título que a Scuderia não via há 20 anos. Até por gratidão e também por reconhecimento, essa glória deveria ser de Schumacher.
Isso é fato. Mas aí a pensar que a equipe tenha “jogado contra”, vai longa caminhada.
Como visto acima, Mika pode, na verdade, “reclamar” mais da McLaren do que Irvine poderia fazer com relação à Ferrari. Simples lembrar: das 4 vitórias do norte-irlandês naquele ano, duas foram fruto de jogo de equipe, a da Alemanha acontecendo após o abandono de Häkkinen (na liderança), quando Mika Salo cedeu passagem. Reza a lenda que Irvine, como Schumacher na Áustria em 2002, deu o troféu para Salo.
Na Malásia, Schumacher retornou e marcou uma pole mitológica: o alemão meteu quase 1 segundo (0.947s) para o segundo colocado, seu companheiro de equipe, e mais de 1,1s para a dupla da McLaren. Schumacher não corria havia três meses, é bom lembrar.
Já na conferência de imprensa, Schumy deu o recado: “Só poderei ajudar Irvine se ele estiver imediatamente atrás de mim. Aí, vou deixar que ele me ultrapasse. Em qualquer outro caso, ele vai ter que se virar”. Dito e feito, na quarta volta Schumacher age como a lebre da fábula, mostra que ganharia tranquilamente, mas resolve tirar um cochilo, deixando Irvine avançar. Então, Coulthard aproveita e apronta mais uma das suas.
O escocês destruidor abandonaria pouco tempo depois, e Schumacher se ocupou de não deixar Häkkinen passar/alcançar Irvine. No final da prova, após os pit stops, novamente Eddie estava atrás de Michael, e o primeiro piloto da Ferrari deu nova passagem para o fraco colega, deixando muito claro quem mandava e quem obedecia.
Diante do exposto, é fácil perceber que, não importando a vontade real dos dirigentes, mecânicos e do próprio Schumacher, a Ferrari em nenhum momento prejudicou ou jogou contra seu piloto número 2. Pelo contrário, não fossem eles – e erros da McLaren –, o playboy do Reino Unido sequer teria chance de sonhar com o título.
Isso nos leva, por fim, ao terceiro e principal mito acerca daquela temporada, que será tema da parte final desta coluna (aqui).
Abraços!
Marcel Pilatti
3 Comments
Marcel,
eu creio que Schumacher jamais quis ajudar o Ervine em 1999… assim como jamas Verstappen faria o mesmo … dick vigarista é sempre vigarista …. hehehehe
O que o Schumacher queira veio a partir de 2000 … aí fez seu contrato com a Ferrari valer a pena de verdade … Rubinho que o diga
Fernando Marques
Niterói RJ
Me senti voltando à temporada 99, muito legal essas memórias resgatadas…lembrei agora deu uma declaração do Mika logo após a conquista do título no Japão, mais ou menos essas palavras: ” Não via a hora desta temporada acabar, estava exausto mentalmente, não tinha mais forças para prosseguir”…Numa época pré internet, pelo menos pra mim, em que a gente mal conhecia os pilotos, me surpreendeu a admissão do finlandês de que seu estado mental encontrava-se em frangalhos, em contraponto ao sempre imponente e inabalável Schumacher.
Muito bom! Fi a partir de 98 que passei a acompanhar com afinco a F1, saber horários e tal