“Ah, mas se o Schumacher não tivesse quebrado a perna…”
Ele seria campeão. Será verdade?
Pedindo licença para citar dois renomados jornalistas brasileiros quando o assunto é Fórmula 1, Reginaldo Leme e Livio Oricchio, primeiro evoco Reginaldo: ele afirmou, em muitas situações, que “se Damon Hill perdeu apenas por um ponto (92 a 91), Senna certamente teria vencido”. Obviamente, ele se refere à temporada de 1994, quando lhe perguntam se Senna teria sido campeão naquele ano, caso sobrevivesse/não sofresse o acidente fatal em Imola.
Ora, se trata de pura falácia, porque 1) parte do pressuposto de que tudo seria rigorosamente igual, as punições, abandonos e suspensões acontecendo de maneira idêntica e 2) dá uma falsa impressão de que Damon Hill andou próximo do alemão, quando, na verdade, em somente uma prova (o GP do Japão) o superou.
Transpondo a mesma visão para 1999, há quem pense que, se Irvine perdeu por apenas dois pontos (76 a 74), Schumacher certamente teria suplantado Häkkinen, não sendo necessário aqui falar sobre a brutal diferença entre os dois ferraristas, até maior do que aquela entre Ayrton e Hill. A realidade, porém, aponta que somente na Malásia Irvine largou na frente de Mika, e somente na pista de Sepang é que teve um desempenho superior ao do finlandês (vá lá, em Mônaco conseguiu “superá-lo”…).
Além disso, a diferença mínima se deu somente pelo misto de infortúnios do finlandês somados às manobras internas da Ferrari para beneficiar Irvine (foram 8 pontos dados de lambuja na Alemanha e na Malásia).
Imaginar que Schumacher estaria inserido no exato contexto de Irvine, assim entendendo que Mika continuaria errando sozinho em Monza, ou que a McLaren não colocaria Coulthard em seu devido lugar, e ainda contando que os mesmos problemas de equipamento acometessem o finlandês, é um exercício de futurologia barata que beira a desonestidade.
Quando sofreu seu acidente, Schumacher estava atrás de Häkkinen no campeonato mas também no desempenho. Nas primeiras oito etapas, Mika foi pole 6 vezes, as outras duas ficando com Schumacher (Canadá) e Barrichello, no caótico GP da França. Nas corridas, o finlandês também sempre esteve à frente, Schumacher o superando de fato somente em Mônaco, quando tomou a ponta na largada.
Em San Marino, Schumacher venceu, mas foi um erro de Mika que permitiu essa troca de guarda. Ele liderava tranquilamente, com boa vantagem para Coulthard (Michael era terceiro), quando, na 17ª volta, “passou do ponto” justamente onde, um ano depois, realizaria sua obra-prima na Fórmula 1.
Na Austrália, Mika era líder quando teve problemas de equipamento, mas Schumacher também abandonou. No Canadá, é um erro de Schumacher, então líder, que abre caminho para a vitória de Mika: os dois vinham alternando voltas mais rápidas quando Mika desconta 0,5s na 28ª. No giro seguinte, Schumacher precisa se livrar de retardatários e, no famoso Muro dos Campeões, passa do ponto, entregando a liderança da prova e do campeonato.
Por fim, na França, os dois tiveram uma disputa inicial interessante, brigando pela quinta posição, mas não demorou a Hakkinen superar o ferrarista. Mika foi 2º, Schumy 5º.
Assim, a Fórmula 1 chegava à sua oitava corrida, exatamente a metade da temporada, com o seguinte cenário: Hakkinen líder, com 40 pontos, 8 a mais que Schumacher, o segundo colocado. Mas nas últimas provas, Mika vinha de 2 vitórias e um segundo lugar, Michael tendo somado apenas 6 pontos nas mesmas.
Na qualificação, sem surpresas, Mika é pole: o finlandês liderou TODAS as sessões de treinos livres, classificação e Warm-up. Schumacher partia em segundo. Na largada, Mika some, enquanto o alemão perde não uma mas duas posições, até o companheiro Irvine o ultrapassando. Algumas curvas depois, a prova já estava sob bandeira vermelha quando Michael tem um problema nos freios, o que o deixa como passageiro e ele sofre seu grave acidente, quebrando a perna.
Nesse cenário posto, o que leva a crer que Schumacher estava como favorito, ou mesmo como tendo chances reais de título?
Me parece muito mais um exercício anacrônico levando-se em conta tudo o que aconteceria a partir de 2000, com Schumacher vencendo cinco campeonatos seguidos e Mika já totalmente desmotivado em 2001. A própria Ferrari, como pudemos ver, conquista o mundial de construtores muito mais pela figura errática de Coulthard e falhas pontuais no carro de Mika do que por superioridade técnica ou, menos ainda, de performance.
Lembrar que Mika abandonou em Silverstone e, a partir daí, tentar projetar uma pontuação hipotética de Schumacher sem acidente naquele dia é, como falei anteriormente, quase desonesto.
A McLaren permitiria que Coulthard atacasse Mika daquela forma, na primeira volta da Áustria? Uma eventual dobradinha na Bélgica teria Coulthard à frente? Os problemas ocorridos com os pneus seriam “overlooked”? E Mika, com Schumacher no seu encalço, vacilaria como fez em Monza? São perguntas sem resposta, mas que precisam ser equacionadas quando alguém diz que “se o Irvine quase ganhou, o Schumacher com certeza ganharia!“.
Evoco agora algo publicado por Livio Oricchio, não uma nem duas vezes, quando fala da decisão do Mundial em Suzuka. Oricchio afirma crer que Schumacher patinou de propósito na largada. O motivo seria o mesmo dito na coluna anterior: Schumacher, por ter mais capacidade, mais méritos e mais merecimento do que Irvine, deveria ser o responsável por tirar a Scuderia da fila, e não um norte-irlandês que nunca sequer conseguiu marcar uma pole-position na sua carreira.
Novamente, é preciso muita criatividade para tanto, não apenas por entender que Schumy o faria mesmo depois do que realizou na Malásia (onde, sim, seria vencedor com um pé nas costas), mas também por ignorar a largada perfeita realizada por Mika.
Com relação a isso, duas coisas precisam ser pontuadas: 1) Mika tinha imensa capacidade para atuar sob pressão. No ano anterior, a F1 chegou ao GP de Luxemburgo com os dois empatados. Schumacher fez a pole. Mika venceu, na pista, imprimindo ritmo frenético e chegando à ultima etapa com 4 pontos de vantagem. 2) O histórico de largadas desastrosas de Schumacher em Suzuka: em 1996, ele partia em terceiro, e foi superado por Berger (quarto) e Mika (5º); em 1998, deixaria o motor morrer na hora da partida, tendo que recomeçar em último. Em 2000, largaria na diagonal, avançando com seu Ferrari de forma acintosa para cima de Mika que, pela quarta vez em cinco anos, largava atrás e fazia a primeira curva na frente de Schumy.
Em 1999, Mika foi perfeito, Schumacher foi apenas “normal”.
Indo além, Schumacher – exatamente o que ele enfrentou na Malásia, voltando após 3 meses, podendo desfrutar da disputa de uma corrida sem brigar pelo campeonato, e numa pista que fazia sua estreia na F1… – sempre andou muito bem em situações livres de pressão. Beirava a perfeição, quase não cometia erros em contextos tais. No entanto, quando pressionado, era comum vê-lo errando: Canadá 1999, evocado acima, é um bom exemplo. “Foi claramente um erro meu. Normalmente cometo um por ano, espero que seja o último desta temporada“, disse Schumy em entrevista pós-corrida em Montreal.
Em todas as temporadas nas quais disputou o título na última corrida – 1994 (Austrália), 1997 (Europa), 1998 e 2003 (Japão, ambas) -, ele falhou. Sagrou-se campeão em duas delas e nas outras duas foi derrotado, mas em todas as referidas etapas cometeu erros diversos.
Mika, pelo contrário, crescia nesses momentos. A exemplo de Senna em 1988 (Mônaco e Monza), também teve duas corridas jogadas pela janela (Imola e Monza, nesta última curiosamente na mesma curva onde Senna se chocou com Schlesser) quando estava na ponta e alguma prudência era o suficiente para manter a vitória. Mas, como Ayrton 11 anos antes – e na mesma pista -, no momento mais decisivo ele executou com perfeição o que dele se esperava.
Se Schumacher não tivesse quebrado a perna? Bem, arrisco que Häkkinen garantiria o mundial talvez até mesmo antes do Japão. Brigar com Irvine, com o perdão da referência etílica, era como empurrar bêbado na descida.
Abraços!
Marcel Pilatti
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Confira a primeira parte desta coluna clicando aqui.
7 Comments
Como dizia o mestre Claudio Carsughi, o piloto é responsável por no máximo 30%. Os outros 70% são do carro. A temporada de 1999 atesta bem esta frase.
Abraços
Belos textos, muito bem embasados.
A definição de falácia aponta justamente “argumento com aparência de verdadeiro, mas que não se sustenta”. Logo, argumentar que Senna seria campeão em 1994 ou Schumacher em 1999 é a mesma coisa: impossível de provar e sem elementos realísticos que sustentem a afirmação. A rigor, é a mesma coisa que dizer que se Senna fosse substituído por Prost em vez de Coulthard, e Alesi e não Salo substituísse o alemão os resultados seriam melhores….
Obrigado por essa releitura! Pude ver em Mika Hakkinen um piloto melhor do que eu pensava que realmente fôsse.
Não imagino falácia dizer que SEnna ganharia 1994 com tranquilidade.
Era muito mais piloto que Hill e tinha muito mais experiência pra lidar com as dificuldades e adversários. Schumacher não seria punido, certamente, pois era outro contexto, mas… É dificil acreditar que teria que lutar e se aproveitar de suspensões e desclassificações de Schumacher para chegar à Suzuka com pontinhos de vantagem.
Sobre 1999, se Hakkinen apanhou e sofreu pra derrotar Irvine, porque ganharia fácil de Schumacher? POderia ganhar, sim, mas nao seria tão simples. Se Schumacher patinou de propósito, o que poderia ter feito largando bem?? Afinal, terminou em segundo e sem percalços. POderia até ter vencido a corrida, não?!
Marcel,
A mudança de regulamento em 1998, com muitas mudanças em relação a 97, recolocou a McLaren na ponta. Mika Hakkinen mostrou ser um piloto top se sagrando bi campeão.
O cara era muito bom.
Fernando Marques
Niterói RJ
Ótimo ponto de vista.