Dando continuação a série sobre os engenheiros que moldaram a F1 chegamos a terceira parte da série, releia as partes 1 e 2 acessando os links abaixo:
A Fórmula 1, a partir do final dos anos 1980 e ao longo da década de 1990, passou por uma transformação profunda. Se nas décadas anteriores os pilotos eram as figuras centrais das vitórias e glórias, esse período marcou o surgimento de uma nova hierarquia: os engenheiros se tornaram protagonistas quase invisíveis, mas absolutamente determinantes para os títulos. O resultado em pista já não dependia apenas da habilidade do piloto, mas sim da genialidade de quem projetava e interpretava os carros. Nesse cenário, dois nomes se destacaram e ajudaram a moldar uma nova era da Fórmula 1: John Barnard e Adrian Newey.
Ambos não apenas projetaram carros campeões — moldaram conceitos, desafiaram convenções e escreveram novos capítulos na história da categoria. Entre o compasso, a fibra de carbono e o fluxo de ar, desenharam um novo conceito de vitória antes que ela pudesse ser sentida na pista.
podemos definir o que John Barnard teve de relevância na Fórmula 1 pela frase: um Inovador Irreverente
Se a Fórmula 1 dos anos 80 e 90 pode ser lembrada pela explosão tecnológica e pelo refinamento da engenharia, é impossível não colocar John Barnard como um dos protagonistas dessa transformação. Seu estilo de projetar não era apenas inovador, mas revolucionário, capaz de quebrar tradições enraizadas e estabelecer novos padrões que moldaram o futuro da categoria.
Nascido em Wembley, Londres, em 1946, John Barnard não era um engenheiro comum. Seu olhar ultrapassava o mundo do alumínio e dos tubos de aço, enxergando o carro de Fórmula 1 como um organismo completo, coeso, funcional e estético. Formado em engenharia industrial, iniciou sua carreira no setor de máquinas e ferramentas antes de ingressar no automobilismo pela Lola. Mas foi com a McLaren, no início dos anos 1980, que ele alterou para sempre o curso técnico da categoria.
A primeira grande revolução veio com o McLaren MP4/1, apresentado em 1981. Pela primeira vez na história da F1, um carro era construído com um monocoque integral de fibra de carbono. Naquela época, a fibra era vista como uma curiosidade aeroespacial, mas Barnard viu potencial: mais leve, mais rígida, mais segura. Trabalhando com a Hercules Aerospace nos Estados Unidos, ele desenhou e fabricou um chassi que não apenas funcionava — ele sobreviveu a acidentes violentos e redefiniu o padrão de construção na F1.
O impacto não foi imediato apenas nas pistas. A filosofia de Barnard introduziu um novo tipo de pensamento: o carro como sistema integrado, com conceitos previamente testados em simulações estruturais, com métodos de projeto mais parecidos com a indústria aeronáutica do que com a oficina de corrida.
Com o sucesso do MP4/1 e, posteriormente, do MP4/2 (que dominaria as temporadas de 1984 e 1985 com Lauda e Prost), Barnard consolidou-se como o engenheiro que trouxe o futuro para a categoria. Sua abordagem era radical: não aceitava improvisos, exigia processos rigorosos e buscava a perfeição de forma quase obsessiva.
Em 1986, Barnard fez o movimento mais surpreendente da carreira: aceitou o convite de Enzo Ferrari para assumir o comando técnico da Scuderia. Foi o primeiro britânico a ocupar esse posto na equipe italiana, o que já era um terremoto cultural por si só. Mas Barnard impôs uma condição: não trabalharia em Maranello.
Criou, então, o “Ferrari Design and Development” — centro de engenharia baseado em Guildford, na Inglaterra, longe dos olhos e das tradições italianas. Foi de lá que comandou o projeto do Ferrari 640, de 1989, que introduziu o câmbio semiautomático com paddle shift no volante. Uma revolução silenciosa que, apesar dos problemas iniciais de confiabilidade, mudaria para sempre a forma como os carros eram conduzidos.
Além disso, Barnard racionalizou o processo de design na Ferrari, introduziu CAD (Computer-Aided Design) no processo de construção e concepção dos projetos, e buscou padronizar procedimentos de engenharia, algo inexistente até então na cultura artesanal da Scuderia. Suas ideias encontraram resistência, mas também abriram portas para o renascimento técnico da equipe.
Barnard era um purista. Defendia que um carro rápido deveria ser visualmente harmônico. O visual não era apenas estética, era performance. Se um componente quebrava a fluidez do design, provavelmente também quebrava a eficiência aerodinâmica.
Durante suas passagens por McLaren, Ferrari e depois Arrows, o padrão Barnard permaneceu o mesmo: ousadia com disciplina, inovação com rigor. Seu legado transcende os troféus. Ele ensinou à Fórmula 1 que o engenheiro deveria ser mais que um solucionador de problemas. Deveria ser um pensador de conceito, um criador de linguagem técnica.
O resultado de sua maneira de projetar não se media apenas em vitórias imediatas, mas em paradigmas de longo prazo. Se o chassi de carbono e o câmbio semiautomático foram suas assinaturas mais marcantes, o legado de Barnard vai além: ele profissionalizou a forma como uma equipe de Fórmula 1 deveria pensar seus carros. Para ele, não havia espaço para improviso ou soluções de curto prazo; havia, sim, a busca incessante por eficiência, segurança e integração plena de cada elemento do veículo.
Pode-se dizer que Barnard inaugurou a Fórmula 1 moderna. Sua abordagem arquitetônica e sistêmica transformou os carros em projetos quase artísticos, ao mesmo tempo em que estabeleceu novos padrões técnicos que moldaram a categoria nas décadas seguintes. Sua marca está em cada monocoque de carbono que vemos hoje, em cada piloto que troca marchas sem soltar o volante, e em cada equipe que encara a engenharia como um projeto de inovação contínua e disciplinada.
Barnard foi o homem que deu à Fórmula 1 não apenas novas soluções, mas uma nova mentalidade.
Já a definição poética de Adrian Newey para a Fórmula 1 vem da frase: a aerodinâmica como arte
Se Barnard foi o arquiteto estrutural da modernidade, Adrian Newey foi o escultor do ar invisível. Nascido em 1958, formou-se em engenharia aeronáutica na University of Southampton e começou sua carreira projetando carros de F2 e F3000. Mas seu verdadeiro palco era a Fórmula 1.
Sua estreia no grid principal foi com a March, em 1988. O carro era limitado em recursos, mas o March 881 apresentava soluções aerodinâmicas que chamaram a atenção: linhas fluidas, bico elevado, dutos de ar limpos. Era a assinatura de Newey: um carro não apenas eficiente, mas intuitivamente veloz.
Foi contratado pela Williams em 1990. A partir dali, a F1 entrou numa nova era. Os carros FW14, FW15C, FW16 e FW18 dominaram os campeonatos com soluções como suspensão ativa, controle de trção, aerodinâmica adaptativa e integração eletrônica. O FW14B de 1992 é considerado por muitos o carro mais avançado tecnologicamente da história.
Newey não projetava peças: projetava filosofias de fluxo. Seus carros eram desenhados como um todo, com a máxima eficiência volumétrica. Compactava motores, caixas de câmbio, sistemas hidráulicos, para liberar espaço para o ar. Criava canais invisíveis por onde a velocidade fluía.
A McLaren o contratou em 1997. Em sua primeira temporada completa, o MP4/13 venceu o campeonato de 1998 com Mika Häkkinen. O carro era uma obra de arte funcional: estabilidade nas curvas, baixa resistência em linha reta, comportamento neutro. Era um carro que “flutuava” sobre a pista. Em 1999, repetiram a dose com outro título para Häkkinen.
Mas Newey queria mais autonomia. E foi na Red Bull Racing, a partir de 2006, que ele encontrou sua casa criativa.
Entre 2009 e 2013, os modelos RB5 a RB9 dominaram a F1. Introduziram difusores soprados, exaustores integrados, controle de vórtices, proporções assimétricas — tudo moldado para que o ar trabalhasse como aliado absoluto.
O RB9 de 2013 foi o auge: 13 vitórias em 19 corridas. Era a culminação de um pensamento aerodinâmico total. E mesmo com as profundas mudanças de regulamento em 2014, a Red Bull continuou competitiva. Em 2022, com o retorno do efeito solo, Newey voltou a brilhar com o RB18 e, depois, com o RB19, tendo novamente uma temporada brilhante e dominante, fazendo de Max Verstappen o mais novo astro da categoria.
Hoje, aos 65 anos, ele embarcou em um novo desafio aos aceitar a proposta da equipe Aston Martin, ainda desenhando carros a lápis. Ainda caminhando pelo paddock com seu caderno, observando o fluxo de ar como se escutasse uma sinfonia. Porque para Newey, a F1 é um quadro em branco. E ele segue sendo seu maior artista.
John Barnard e Adrian Newey são mais do que engenheiros. São autores da linguagem técnica da Fórmula 1 moderna. Barnard ensinou que a estrutura é a espinha dorsal da performance. Newey mostrou que o ar é a tinta invisível com a qual se escreve a velocidade.
Porque na Fórmula 1, como em toda arte, a verdadeira beleza está no que não se vê.
Até a próxima
Mário Salustiano
2 Comments
Grande Mario,
belo texto … sem dúvidas nenhuma John Barnard e Adrian Newey são ícones da linguagem técnica da Formula 1, que na sua história sempre teve o primor pela tecnologia de ponta. A Formula 1 sempre está na vanguarda.
Respeitando o devido peso , um vencedor na Formula 1 ainda depende a meu ver de uma regra clássica: um excelente projeto, um excelente piloto, um excelente motor com excelente conjunto mecânico. Quando isso tudo funciona o resultado todos sabemos.
Pensando na Formula 1 atual, com um regulamento tão rígido onde todos constroem seus carros e são todos iguais (ao menos na aparência) a excelência ficam nos pequenos detalhes e nas estratégias de corridas …
Fernando Marques
Niterói RJ
Grande Fernando
Perfeito o seu comentário, você sempre tem uma visão aberta para diversos aspectos que envolvem as corridas e como a dinâmica da F1 foi sendo alterada ao longo dos anos, sempre é rico ler teus comentários,
Grande abraço
Mário Salustiano