É em Monza que meu coração automobilístico está e, quando eu morrer, podem enterra-lo em meio àquele bosque sujo e algo sinistro como costumam ser todos os bosques varejados por seres humanos.
Nem sei bem por quê, mas é em Monza que meu coração automobilístico está e, quando eu morrer, podem enterrá-lo* em meio àquele bosque sujo e algo sinistro como costumam ser todos os bosques varejados por seres humanos.
Assim, passarei a eternidade entreouvindo os sons dos motores e em companhia das curvas e retas rasgadas há quase cem anos para formação desta pista singular e banal – já repararam que ela é quase um oval? – mas extraordinariamente veloz – é lá que os Fórmula 1 atingem a sua maior velocidade – e com história a literalmente cada centímetro da pista.
Tenho certeza que meu coração descansará em boa companhia
Foi em Monza que colhemos nosso primeiro Mundial, com Emerson Fittipaldi em 72, depois de dias de angústia e tensão extremas.
O caminhão da equipe Lotus acidentou-se seriamente a caminho de Monza. O carro de Emerson, seus motores, peças e ferramentas espalharam-se pela estrada e o brasileiro só teve carro para disputar a prova porque a Lotus estava com a consciência pesada, antevendo a possibilidade de ter suas propriedades apreendidas pelas autoridades italianas, já que não as respeitara no desenrolar do inquérito que apurava as causas da morte de Jochen Rindt, dois anos antes, ali mesmo, em Monza.
Por isso, a equipe deixara um caminhão de sobreaviso, com um carro reserva, nas proximidades da fronteira italiana. Mesmo assim, este caminhão só pode chegar a Monza momentos antes do início dos treinos, onde Emerson consegue apenas o 6º tempo.
No dia da corrida, um 10 de setembro, no equivalente ao warm up da época, Emerson percebe um grande vazamento de combustível em seu carro, a gasolina esguichando em cima dele. Enquanto os mecânicos trocavam o tanque do Lotus em ritmo frenético, Emerson tinha o macacão seco com folhas de jornal. Ah! O glamour daquela época.
Mas todos os problemas do brasileiro se esvaeceram na corrida, onde viu seus rivais na luta pelo título – Jackie Stewart, Denny Hulme e Jacky Ickx – ficarem pelo caminho, um após o outro.
Um ano mais tarde, de volta à Monza, Emerson teve talvez o mais duro duelo contra seu companheiro de equipe na Lotus, Ronnie Peterson, e foi batido por ele, resultado que deu o título da temporada à Jackie Stewart.
A luta pelo bicampeonato de Emerson poderia ter sido estendida para as provas seguintes caso Colin Chapman, dono da Lotus, tivesse ordenado dos boxes uma inversão de posições entre Emerson e Peterson. Mas como as chances do brasileiro nessa altura eram apenas retóricas (ele tinha de vencer as últimas três corridas do ano e torcer para que Stewart somasse apenas três pontos) e ele e Chapman estivessem em maus termos nas negociações para uma eventual renovação de contrato, este achou melhor deixar as coisas como estavam, prestigiando Peterson, que ficaria na equipe em 74.
E, claro, isso foi a gota d´água para Emerson decidir-se pela McLaren a partir do ano seguinte.
1986, sempre em Monza, auge da disputa entre Nelson Piquet e Nigel Mansell, ambos embarcados nos Williams Honda.
Foi um campeonato desgraçado para o brasileiro. No começo do ano, o título era uma mulher bela e insinuante que se prometia fácil mas que revelou-se ardilosa e esquiva, fugindo das mãos de Piquet ora por combinações improváveis de azar, ora porque Mansell estava endiabrado e era naquele momento – e ainda me dói afirmar isso – mais piloto que Piquet.
Mas aí veio Monza e o brasileiro bate o inglês de maneira indiscutível, com uma ultrapassagem na Curva Grande onde estavam presentes a essência de Piquet: argúcia, malandragem, velocidade, coragem.
Ao final da prova o próprio Mansell rendeu-se ao brasileiro e, no pódio, ergueu-lhe o braço, num gesto de simpatia que Piquet sempre lhe negara. Infelizmente o campeonato não terminou ali e, três corridas mais tarde, ambos amargavam a derrota para Alain Prost.
Numa tarde de sábado de 1990, em pleno outono europeu, fui visitar o autódromo de Monza. Tinha lido em algum lugar que a pista era aberta ao público e que, pagando uma taxa, podia-se dirigir livremente pela pista.
Naquele sábado, por azar, a pista estava fechada para testes de uma escola de pilotagem mas pude passear livremente pelos boxes e pelo bosque.
Zanzando por ali, acabei encontrando uma passagem para as Curvas Inclinadas, as míticas Curvas Inclinadas que povoaram a imaginação de tantos jovens que, como eu, assistiram ao filme Grand Prix.
O Sol já estava baixo, deixando apenas umas manchas de luminosidade sobre o concreto judiado da pista, coberta pelas folhas caídas das altas árvores que a margeiam.
Trinta e cinco anos antes, quem sabe naquela mesma tarde de sábado, Fangio rasgava a curva inclinada em seu imponente Mercedes 196. Apurei os ouvidos e procurei pelos ecos do poderoso doze cilindros – mas ouvi apenas o vento.
Eduardo Correa
*Coluna publicada originalmente em 10 de setembro de 2004.
P.S.: Nos primeiros meses de existência do GPTotal, em 2001, Carlos Chiesa, amigo e futuro colunista do site, dirigiu-me a seguinte carta, republicada aqui com a correspondente resposta:
Edu
Que raio de Curva Parabólica é essa de Monza, que parece não ter nada a ver com a do filme Grand Prix?
Fico perdido com esse monte de chicanes que foram inventando em tudo quanto é pista. Ainda bem que Interlagos escapou dessa mania. Me lembram as tenebrosas lombadas (eletrônicas ou não) que grassam nas nossas ruas. E estradas!
Carlos Chiesa, São Paulo
Amigo Chiesa
Você, como muita gente, confunde a Parabólica com as Curvas Inclinadas de Monza – no plural sim, porque são duas, a Norte e a Sul.
As curvas, que aparecem em toda a sua majestade no filme Grand Prix, foram construídas em 55 num delírio de grandeza dos italianos, dando continuidade à recuperação do autódromo de Monza, criado em 22, severamente danificado durante a II Guerra Mundial.
Seguindo o antigo traçado, os engenheiros inseriram um circuito oval com as curvas inclinadas dentro do circuito que você já conhece. As curvas iam se inclinando progressivamente até chegarem a 80% em sua parte superior. Caminhei sobre elas e garanto: não dá para chegar, de pé, à metade da pista, tal o grau de inclinação.
Você largava no mesmo local de hoje, entrava na Curva Norte, depois na Sul e saía de novo na reta dos boxes, mas no lado esquerdo dela. Daí em diante, você cumpria uma volta quase igual a que se dá hoje, passava diante dos boxes e entrava novamente na Curva Norte. Você notou como é larga a reta dos boxes de Monza? Pois é. Ela era dividida em duas por cones e os carros passavam por lá duas vezes. Estranho, não? Mas pense no público, que tinha a oportunidade de ver os carros diante de si duas e não uma vez por volta. Ainda hoje, se você reparar bem, dá para ver um pedacinho da curva Norte um pouco antes da freada da primeira chicane e a Curva Sul ao fundo da reta dos boxes.
Os italianos descobriram que tinha feito bobagem no dia da inauguração das curvas inclinadas, em 11 de setembro de 55. Feita em concreto armado, a superfície das curvas era por demais irregular para a velocidade que os carros atingiam – mais de 280 km/h. Era muito esforço para suspensões e chassis e os pilotos reclamaram. Os GPs de Fórmula 1 usando as curvas inclinadas foram quatro: 55, 56, 60 e 61. O circuito oval foi usado pela última vez em 69, numa corrida de sport-protótipos. Os italianos já pensaram em demolir as Curvas Inclinadas mas elas resistem.
Quanto à Curva Parabólica, uma das mais estranhas curvas da Fórmula 1, é aquela imediatamente anterior à reta de largada, malditamente famosa pelas mortes de Von Trips em 61, junto com onze espectadores, e Rindt em 70. Ela foi construída simultaneamente às curvas inclinadas.
Uma última coisa: saiba que, na década de 30, Monza já contava com chicanes…
(EC)
1 Comments
Prezados Amigos do GPTotal
Desta vez, dirijo-me de forma especial ao Edu, deixando minhas congratulações pela reedição da coluna “Enterrem meu coração em Monza”.
Confesso que alguns fatores contribuíram para que eu tomasse a liberdade de me sentir um grande amigo e até mesmo próximo do Edu, muito embora eu não tenha tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente:
– A edição da citada coluna (objeto destes meus modestos , mas sinceros comentários);
– Uma foto publicada no GPTotal em que o Edu está no topo de uma das míticas curvas inclinadas de Monza;
– E finalmente, a confissão por parte do Edu que o despertar da sua paixão automobilística tenha sido motivada pelo inigualável filme Grand Prix!
Pois bem, amigos: eu também confesso e afirmo ter tido origem no filme Grand Prix o despertar de minha paixão automobilística!
O fato de saber que assistimos inúmeras vezes o mesmo filme, me permite imaginar (devaneios de minha parte, certamente) que possamos trocar ideias e impressões sobre o mesmo filme e recordarmos com tal precisão, de tal modo que possa parecer que assistimos ao mesmo tempo e serem estas recordações muito caras de uma época de ouro que vivemos.
E quanto ao texto em si, bem… É difícil dizer e muito mais de comentar, mas me parece ser de grande erudição literária e poética tal texto e o desejo expresso de forma poética, em ter o seu coração automobilístico enterrado em solo sagrado, ou seja, no Autódromo de Monza.
Forte abraço à Família GPTotal
Paulo C. Winckler, Porto Alegre