A temporada 1932 iria começar em grande gala.
O GP do Principado de Mônaco daquele ano iria contar com as três principais equipes da época, todas com força máxima, sendo esta a primeira participação da Società Anonima Alfa Romeo.
E era apenas a quarta edição desta prova, que desde o início foi um sucesso absoluto, uma prova tornada clássica em tempo recorde, graças ao talento e empenho de seu criador, Antony Noghès.
Estavam previstas mais de 100 voltas no circuito de 3.180m.
Atenta ao sucesso, a organização cuidou que as ruas fossem recapeadas e assim esperava-se tempos de volta ligeiramente menores, sendo o recorde 2’07”, estabelecido por Dreyfus em 1930.
A Automobiles Bugatti trouxe 4 carros modelo T51 de 2,3L e um inédito Tipo 53 de 5,0L com tração nas quatro rodas.
O engenheiro Antonio Pichetto, projetista da Bugatti, tinha convencido Ettore de que o sinuoso circuito seria um bom lugar para testar essa nova criação, possível alternativa ao Tipo 54, que usando o mesmo motor tinha se mostrado pouco confiável, em especial nas frenagens.
Louis Chiron e Achille Varzi teriam a companhia de Albert Divo e Guy Bouriat.
A Alfa trouxe três 2,3L Monza especialmente preparadas para permitir à marca uma boa estréia nessa prova. Seriam pilotadas por Tazio Nuvolari, Giuseppe Campari e Mario Umberto Borzacchini.
E uma surpresa extraordinária: um quarto Monza, não oficial, pintado de branco, para Rudolf Caracciola.
A Mercedes tinha se retirado das pistas no ano anterior e Rudy fez uma acordo provisório com a Alfa para o ano seguinte.
Ele estreou uma semana antes deste GP, na Mille Miglia, e liderava quando o motor de sua Alfa teve uma mola de válvula quebrada. Embora com essa façanha tenha obtido o respeito de seus três colegas italianos a equipe não acreditava que o alemão, habituado com as enormes e pesadas Mercedes SSK, conseguiria competir no mesmo nível com a pequena e ágil Monza.
A Maserati tinha sofrido uma perda quase irremediável pouco antes, com a morte de Alfieri Maserati, o líder entre os irmãos, devido a um problema no rim, sequela de acidente anterior.
Ernesto, o irmão mais novo, assumiu seu lugar e levou duas 8C de 2,8L que tinham competido na prova do ano anterior e uma 26M de 2,5L. Os pilotos seriam Luigi Fagioli, René Dreyfus e Amedeo Ruggeri.
Vídeo com resumo da corrida
Como as inscrições, limitadas a 19, eram feitas exclusivamente por convite, as demais equipes em tese também estariam entre o que havia de melhor.
Philippe Etancelin e Goffredo Zehener pilotariam Alfa Monza. William “Williams” Grover-Williams, Clifton Penn-Hughes, Earl Howe, Marcel Lehoux e o Conde Stanislas Czaykowski, Bugatti, T51 majoritariamente.
O chileno Juan Zanelli, campeão europeu 1931 de Subida de Montanha pilotaria um Nacional Pescara, de 3,0L, construído na Espanha.
Como cereja do bolo o recordista mundial de velocidade, Sir Malcolm Campbell, iria percorrer o circuito em volta de abertura em um Rolls Royce.
Nos treinos de quinta, iniciados às seis da manhã, Penn-Hughes bateu sua Bugatti na proteção de sacos de areia no grampo, quebrando o tornozelo.
Nos de sexta, também com duração de uma hora, Divo testou novamente a T53. Ele era o mais forte, fisicamente, dos pilotos da equipe Bugatti. A conclusão é que o motor superaquecia e os freios funcionavam mal. Isso combinado com o tamanho e má dirigibilidade do carro deixaram o piloto exausto. Tanto que ele optou por alinhar com a T51. Nesse treino vários pilotos quebraram o recorde da pista.
No sábado os tempos continuaram a cair.
Após 22 voltas Chiron tinha marcado a melhor volta, com 2’04”. Campari deu 12 voltas, marcando 2’05”. Varzi 9 voltas, 2’06”, Tazio com o mesmo número de voltas, 2’07”. Mesmo tempo de Caracciola (13 voltas), Lehoux (5 voltas), “Williams” (13), Borzacchini (11), Zehender (15). Fagioli e Ruggeri marcaram 2’08″ ambos percorrendo 16 voltas.
Embora os treinos tenham sido cronometrados, pela primeira vez, os tempos não contariam para formar o grid. Ainda se usaria, pela última vez nessa prova, o sistema de sorteio.
E assim a primeira fila foi formada por Ruggeri, Etancelin e “Williams”. A segunda pelo conde polonês, Campari e Chiron. A terceira Dreyfus, Borzacchini e Lehoux. A quarta por Nuvolari e Bouriat, a quinta Howe, Caracciola, Varzi. E a última Fagioli, Zehender e Divo.
Com base nesses treinos, duas decisões técnicas diferentes são tomadas. Vittorio Jano, o diretor técnico da Alfa, escolhe um “gear ratio” de 10:51, para que os motores trabalhassem com rotações mais altas, permitindo aos pilotos usar mais as terceira e quarta marchas.
A Bugatti fez a escolha oposta, mais alta, 12:54 e com isso os pilotos teriam que usar marchas mais baixas.
A largada foi dada às 13:30, sob um céu nublado.
Chiron, vencedor do ano anterior e piloto da casa, fecha a primeira volta na liderança, apesar de ter largado da 2a. fila. É seguido por “Williams”, Lehoux e… Nuvolari, que tinha ultrapassado nada menos que 7 carros!!! Em Monaco!!!!!!!
Atenção: Rudy, aquele que em tese levaria muito tempo para se adaptar às Alfa, aparece em oitavo, à frente de Campari.
Chiron segue em ritmo forte, abrindo vantagem e já na volta seis quebra o recorde, marcando 2’05”, velocidade média de 91,584 km/h.
Nota: é Monaco e esses carros não tem célula de sobrevivência, cinto de segurança, barra anti-capotagem etc.. Os pilotos usam goggles e… digamos, capacetes… de pano.
Na volta 10 Tazio já aparece em segundo, 17” atrás do monegasco. A seguir vem o bravo “Williams”, Lehoux, Varzi, Borzacchini, Dreyfus (o melhor entre os pilotos Maserati até aqui), Caracciola, Fagioli, Campari, Ruggeri, o Conde Czaykowski, Howe, Bouriat, Zehender, Etancelin e Divo.
Nuvolari também bate o recorde de volta, marcando 2’04”.
Ruggeri para nos boxes na 13a. com problemas. Os mecânicos trabalham, ele retorna à pista mas logo tem uma Maserati a menos na prova.
Achille vai fazendo sua costumeira escalada e agora aparece em 3º, também abaixando o recorde para 2’02”.
Após 20 voltas a ordem é Chiron, Tazio 16” atrás, Varzi a 5”, “Williams” a 16”, Borzacchini a 2”, Caracciola a 1”, Fagioli a 3”, Lehoux a 7”, Dreyfus a 2”, Campari a 17’, o Conde a 23”, Etancelin a 4”, Bouriat a 2”, Howe a 1”, o cansado Divo a 5” e Zehender a 1”.
Confirmando as expectativas do público presente, mais de 70.000 pessoas, os 3 favoritos começaram a se destacar do resto, Chiron tem vantagem de 20” sobre Nuvolari.
Na volta 26 ele alcança e ultrapassa os últimos colocados, Zehender e Divo, mas perde um pouco dessa margem de segurança.
O grupo de retardatários seguinte é composto pelo Conde Stanislas e por Bouriat.
Chiron perde tempo com este último e Tazio o alcança na volta 30. Ambos ultrapassam Bouriat, um em seguida ao outro, mas o conde se mostra um obstáculo ambulante, escorregando nas curvas com frequência.
Chiron tenta emparelhar com ele na chicane após a saída do túnel e se dá mal. Parece que o polonês deu mais uma deslizada e para se desviar Louis esbarrou uma roda em uma barreira de sacos de areia, o carro rodou e começou a quicar na pista, rolando até parar em outra barreira, que impediu que fosse dar um mergulho.
O às monegasco foi cuspido do carro e caiu, desacordado, na calçada.
O conde conseguiu se esgueirar sem ser atingido, assim como Tazio e Bouriat, que estavam pouco atrás.
Felizmente Chiron recobrou os sentidos pouco depois, e notou que tinha apenas hematomas e arranhões na cabeça e no rosto. Foi atendido pela equipe médica no local e em seguida levado por um barco-ambulância até o local de pronto-socorro.
Claro que ele ficou furioso com o conde mas… todos sabiam que a chicane não era o melhor lugar para ultrapassar e tudo indica que Louis cometeu um de seus raros erros, afobando-se, certamente por saber que Tazio estava cada vez mais perto.
O mantuano herda a liderança, com vantagem de 6” sobre Varzi, que por sua vez tem 27” sobre Borzacchini, que tem 8” sobre Rudy, que tem 12” sobre Fagioli. Dreyfus, “Williams” e Campari estão mais de 1 minuto atrás de Nuvolari, os demais já tomaram uma volta.
A esperança da Bugatti se limitava a Varzi. Este, talvez avaliando que o stress da disputa com Chiron vitimasse a Alfa de Tazio, diminuiu o ritmo para poupar seu carro.
Aparentemente era uma movimento inteligente, típico do galliatês, porque retardatários como Etancelin, Lehoux e Divo foram sucessivamente aos boxes, com problemas variados.
Com isso a diferença aumenta para 28” na volta 40, e Tazio não estava mais forçando.
A vantagem sobre Borzacchini ainda era confortável, 12”. Caracciola vinha a seguir, 9” de atraso, com Fagioli a 13”. Os demais estavam mais de um minuto atrás do líder.
Nas 10 voltas seguintes Nuvolari diminui o ritmo, mas mantém 17” de margem sobre Achille.
Etancelin e o Conde abandonam, com problemas de câmbio. O resto fica como está.
Mais à frente acontece o que Varzi temia: seu carro tem problemas e ele precisa ir aos boxes.
Os mecânicos se desdobram mas não tem saída, é preciso abandonar.
Borzacchini, que fazia uma corrida tranquila, começa a ter fadiga nos freios e naturalmente precisa aliviar, principalmente em um circuito tão travado.
Com isso Rudy o ultrapassa na volta 57.
Com a saída de Varzi a vitória da Alfa torna-se praticamente garantida.
Fagioli nunca representou uma ameaça real, nem sequer para Borzacchini. Logo é preciso apenas tomar todos os cuidados para não quebrar. Tazio diminui o ritmo ainda mais. Rudy estava a 43” segundos dele, de repente está a 30”, sem ter forçado.
As atenções se voltam para os dois, com o público deduzindo que a surpresa alemã poderá surpreender ainda mais.
Mais atrás a corrida também fica mais tensa.
Borzacchini vai aos boxes mas mesmo assim volta adiante de Fagioli.
Campari, tendo parado para trocar velas várias vezes, cai para a últimas posição.
“Williams” também tem uma longa parada nos boxes e recua para oitavo.
Agora restam apenas 11 carros.
Na volta 71 finalmente Fagioli passa Borzacchini, cujos freios estavam piorando.
A esta altura a vantagem de Tazio sobre Caratsch tinha diminuído para 8”, ambos andando longe do limite.
Na volta 85 Borzacchini entregou os pontos, parando definitivamente nos boxes.
Na volta 90 a ordem era Tazio, 7” à frente de Rudy, Fagioli pouco menos de 2’ atrás. Zehender era seguido por Earl Howe, ambos tendo tomado 2 voltas, e Lehoux e Williams fechavam a fila, mais de 5 voltas de desvantagem.
Howe merece destaque, pois largou lá atrás e mostrou consistência, escalando gradualmente posições.
Nas últimas 5 voltas, aquilo que a multidão achava que poderia acontecer realmente tem chance de acontecer. Batendo-se contra as Bugatti Nuvolari foi obrigado a gastar mais combustível do que o normal. De repente o motor de sua Alfa começa a falhar e ele é obrigado a pilotar caçando as últimas gotas do tanque. Precisa ligar o tanque reserva.
Com isso o alemão passa a ter uma oportunidade real de vitória. Tudo que ele tem a fazer é ultrapassar um grupo de retardatários.
Quando ele consegue, aumenta o ritmo e aproxima-se muito rapidamente de Tazio.
Recebe a bandeirada a meros 2,8”.
Ele teve chance de passar o colega? Sim. Mas conscientemente abriu mão disso.
Por que? Porque era um esportista, como tantos outros dessa época.
Tazio era o líder, o piloto nº 1, com a missão de dar combate direto a Chiron e Varzi.
Sendo um franco-atirador, Rudy pode andar no ritmo que bem entendesse e somente por isso não sofreu com falta de combustível. A equipe tinha calculado cuidadosamente o consumo de modo que não houvesse necessidade de reabastecimento.
Caracciola acha que não seria justo que Tazio, tendo batido os rivais em combate leal, perdesse o merecido triunfo por um problema tão banal.
Assim que estacionaram suas Alfa, Tazio caminhou até Rudy e estendeu sua mão para cumprimentar, sem dizer uma palavra.
O público, agora entendendo o que realmente tinha acontecido, irrompeu em aplausos.
E para fechar igualmente com gala esse Grand Prix, Aldo Giovannini, o chefe da equipe Alfa, aparece. Segura Rudy com os dois braços e diz: “- Você teve uma atitude muito decente, Caracciola. Isso foi mesmo muito decente.
Aldo fala: “Quero perguntar a você, em nome dos demais, se gostaria de fazer parte da equipe?”
Rudy pergunta: “- E Campari?”
Aldo: “Ele também quer você, muito mesmo.”
Com essa coluna fecho o ano de 2022 desejando um ótimo final de ano com paz e prosperidade
Carlos Chiesa
6 Comments
Thanks for sharing. I read many of your blog posts, cool, your blog is very good.
… un caro saluto 🙏🏻🤲🏻
Estou sempre por aqui. Vida longa e próspera para todos.
Idem para você, Rafael. Espero continuar tendo suas visitas.
Muito obrigado, Fernando. Essa civilidade, embutida em esportividade, está mesmo em falta no mundo hoje, não? Pelo menos você e eu damos valor., o que já é um ponto de referência. Forte abraço e um ano novo 2023 vezes melhor que o anterior.
Chiesa,
Como bem diz o Sérgio Maurício sua última coluna de 2022 foi no capricho.
Bela história.
Não é a toa que Mônaco é sempre Mônaco.
Um forte abraço e até 2023
Fernando Marques
Niterói RJ