Em apenas três dias, o rali Dakar 2005 fez duas vítimas fatais entre os pilotos de moto: o espanhol José Manuel Perez e o italiano bicampeão da prova (2001 e 2002) Fabrizio Meoni, de 47 anos. Meoni foi a 23ª vítima do rali desde o início da competição em 1979.
Sempre que a Rede Globo anunciava o Paris Dakar como o “Rali da Morte”, eu ficava com raiva porque sabia que se tratava de um truque para ganhar pontos no Ibope. Ninguém ficaria esperando uma notícia com a chamada: “Cyril Neveu vence uma etapa do Rali Paris-Dakar”. Mas se a chamada for “mais uma vítima do Rali da Morte”, muita gente vai querer assisitir.
Sou obrigado a admitir que hoje fiquei com muita raiva deste rali. Conheci Fabrizio em 1989 durante o Rally dos Incas, no Peru, e voltei a encontrá-lo em 1990, em São Paulo, durante a passagem do Rally Lima-Rio, também chamado de Incas. Era um sujeito admirável pela força de vontade e habilidade. Ele foi campeão de enduro várias vezes na Itália (leia a biografia completa no site oficial www.fabriziomeoni.it) e chegou a Lima, naquele ano de 1989, para fazer o primeiro rali longo da sua vida. Alugou uma KTM 350 dois tempos que já tinha feito o mesmo rali em 88, mas foi remendada para a prova.
Meoni encontrou alguma dificuldade nos primeiros dias porque estava competindo contra feras como Cyril Neveu (cinco vezes campeão do Dakar), Thierry Magnaldi, Kevin Hines, Giorgio Grasso, Heinz Kinigardner (bicampeão mundial de motocross) e outros. Mesmo assim Meoni chegou a vencer uma etapa, justamente a mais longa do rali, com 708 km, e estava em segundo lugar na geral quando machucou o punho direito. Ele terminou o rali em 4º lugar – e comemorou muito.
Desde aquela época aprendi a admirar Fabrizio Meoni. Ele tinha 32 anos (e eu tinha 30) e sonhos ambiciosos de competir no rali Paris-Dakar. Em 1990, ele voltou a disputar o Incas, que teve largada em Lima e chegada no Rio de Janeiro, e venceu a prova. Esta vitória seria o impulso para sua carreira. Em 1990 mesmo, Meoni alugou uma KTM 500 dois tempos para correr pela primeira vez na África. Estava indo bem, entre os primeiros, mas levou uma queda e teve de desistir. Só em 1992 ele realizou o sonho de correr o Paris-Dakar, terminando em 12º lugar na geral e 1º entre os pilotos privados com uma Yamaha XT 660. Estava definitivamente contaminado pelo vírus do deserto.
A partir daí sua carreira foi recheada de vitórias em vários ralis africanos, culminando com sua primeira conquista no Dakar em 2001. Ao final do rali ele prometeu à família que iria parar de correr e se dedicar mais aos filhos Gioele (12 anos) e Chiara (2 anos). Só que o vírus do deserto não é fácil de imunizar. Voltou em 2002 na estréia da KTM 900 dois cilindros e venceu novamente. E mais uma vez prometeu parar de correr. Não conseguiu e foi 3º colocado no Dakar 2003 e 5º em 2004. Em 2005 pretendia se despedir com uma vitória, mas o destino não quis assim.
A repercussão da morte de Meoni e de outro piloto de ponta, Richard Sainct, ocorrida três meses antes no rali dos Faraós, ambos pilotos oficiais KTM, chocou o universo dos ralis. Até mesmo os pilotos mais frios se manifestaram indignados com tanta violência em uma prova que nasceu em 1979 apenas para ser o maior desafio técnico motorizado. Nestes anos, nem mesmo o idealizador do rali, Thierry Sabine, escapou: ele morreu em 1986 quando seu helicóptero bateu em uma duna.
Segundo os pilotos que estavam logo atrás de Meoni no momento do acidente, foi uma queda inesperada porque a pista não era difícil e o piloto tinha experiência de sobra. David Fretigné, que corre de Yamaha, estava logo atrás e acredita que Meoni tenha se distraído para olhar os instrumentos de navegação e não percebeu uma pequena duna. Segundo ele, ambos não estavam muito rápido (cerca de 160 km/h não é rápido para quem chega a mais de 200 km/h na areia). Quando parou para socorrer, Fretigné chegou a imaginar que fosse uma clavícula quebrada, mas ao perceber a mancha de sangue acionou a balisa (sinal de rádio que indica socorro imediato) e o helicóptero chegou 20 minutos depois. Os médicos constataram uma parada cardíaca mas a causa da morte foi trauma toráxico com fratura na base de crânio, lesões típicas de quem bateu de cara no chão.
A equipe KTM chegou a pensar em desistir da prova, mas pediram para a organização cancelar a etapa seguinte, o que foi prontamente aceito. Os pilotos pularam uma etapa, mas tiveram de recomeçar o rali da pior forma possível.
Depois de correr por mais de 20 anos, eu tomei a difícil decisão de parar. No começo de 2004 pensei mesmo em disputar algumas provas de rali de moto, com uma Suzuki DR 650, e até treinei duas vezes com este propósito. Na minha cabeça, se um piloto dois anos mais velho do que eu, como era o caso e Meoni, conseguia disputar e vencer o Dakar, eu poderia correr provas off-road de dois ou três dias sem problemas. Nada disso. Nos treinos, percebi que correr é algo que exige 100% de concentração e vigor físico. Minha concentração escapava o tempo todo e quase me estabaquei várias vezes. Não consigo entender pilotos bissextos que disputam provas como as Mil Milhas, com a pança comprimida em um macacão apertado. Ou mesmo outros gordinhos que correm no Rali dos Sertões. Não consigo entrar em uma prova sem dar 100% de competitividade, por isso eu desisti totalmente da idéia de voltar a correr e admirava pilotos como o Meoni, com 47 anos, mas que era respeitado pelos outros pilotos de 25 ou 30 anos. Marc Coma, companheiro na equipe KTM, disse que Meoni era único pela habilidade, capacidade de navegação e pela idade. Não havia quem não o respeitasse. A certa altura, ele foi apelidado de Sr. Africano.
Ele organizava eventos chamados de “Meoni Day” para arrecadar fundos e construir escolas na África. Já havia conseguido construir uma escola em M’Boro e em 2005 ele iria inaugurar a segunda escola, desta vez em Dakar. Segundo disse na largada do rali, “a África já me deu muitas alegrias, era justo que eu fizesse alguma coisa em troca”.
Foi este tipo de homem que perdemos. E é por isso que estou tomado por uma raiva profunda deste rali e me junto a outros tantos que o chamam de “Rali da Morte”. A diretoria da KTM percebeu que perder dois pilotos de ponta em três meses é sinal de que algo está errado. Talvez comecem a perceber que é preciso reduzir a potência das motos, limitar a cilindrada ou mudar o tipo de percurso. Não dá para entender como alguém acha que 160 km/h na areia seja “não muito rápido”. Em alguns trechos a velocidade passa de 200 km/h e cair a esta velocidade só pode resultar em morte.
O depoimento de Heinz Kinigardner, chefe da equipe KTM, logo após o acidente, foi muito sensato. “Com Richard Sainct e Fabrizio Meoni, perdemos dois dos melhores e mais experientes pilotos durante suas atividades profissionais. Isto é muito trágico e nos machuca muito. Cheguei a conversar com ele na largada em Barcelona sobre a possibilidade de ele vir a ser o novo chefe da equipe KTM. Pessoalmente, acho que os pilotos KTM deveriam abandonar o Dakar e voltar para suas casas. Não por piedade, mas por segurança. Os pilotos sofreram duas terríveis perdas em pouco tempo e isso não é fácil de esquecer. Penso também nos mecânicos e na equipe, que sofreram muito. Eu sei que o Dakar não é um passeio no parque, mas sob meu ponto de vista não há como prosseguir, pois não considero seguro. Sei que os patrocinadores e a fábrica apoiarão nossa decisão. Em todo caso vamos pensar mais e resolver se prosseguimos ou não”.
No dia seguinte eles decidiram: voltariam a competir em respeito à memória de Meoni. Pessoalmente acredito que eles só decidiram correr porque tem muito dinheiro envolvido nesta atividade que me recuso a chamar de esporte. A patrocinadora oficial da KTM, a Gauloises, não deu qualquer depoimento a respeito, mas quem conviveu com corridas tanto tempo (como nós do Gepeto) sabemos que não há mais espaço para decisões românticas como retirar uma equipe que lidera o rali mais famoso e rentável do planeta só porque um de seus pilotos morreu. O Rali da Morte matou até mesmo o resto de bom senso dos competidores.
Geraldo Tite Simões |