“Algumas pessoas pensavam que éramos loucos. E elas estavam certas”, disse Juan Manuel Fangio.
“Algumas pessoas pensavam que éramos loucos. E elas estavam certas” (Juan Manuel Fangio, acerca das primeiras corridas que disputou.)
Do cruzamento entre a vocação sul-americana para provas de longa duração e a necessidade de estimular a ligação do continente através de uma rodovia pan-americana nasceram, entre as décadas de 30 e 50, algumas das provas mais desafiadoras e insanas que o esporte a motor já produziu. Corridas estas que podiam se desdobrar por mais de uma dezena de milhares de quilômetros, com variações de altitude superiores a cinco mil metros, navegando por todo tipo de piso e intempérie praticamente sem qualquer estrutura de suporte, fosse ele mecânico, hospitalar ou em relação a aparatos mínimos de segurança. O tipo de competição em que simplesmente chegar ao fim já seria a glória de uma vida, e na qual o vencedor – contra uma oposição que poderia chegar à ordem de 500 concorrentes – era automática e merecidamente elevado à condição de lenda.
Pois bem. Quis o destino que fosse este o tipo de ambiente a lapidar o imenso talento de Juan Manuel Fangio – tanto ao volante quanto na condição de mecânico. E, exatamente por isso, é nesta fase pouco conhecida de sua carreira que se deve buscar a chave para a compreensão de seu inigualável sucesso nos primórdios do campeonato mundial. Viajemos, portanto, ao fim dos anos 30.
A história de Fangio em provas de longa duração teve início quando o amigo Luis Finochietti o convidou para ser seu mecânico e co-piloto entre os dias 12 e 30 de outubro de 1938, no terrível Gran Premio Argentino de Carreteras. Apesar de originalmente não ser o piloto principal, Fangio acabou guiando durante quase todos os 7.385km do percurso, a partir do momento em que Finochietti se deu conta de que tinha um prodígio a seu lado. No fim, os dois terminaram a corrida numa excelente sétima colocação, competindo contra diversos conjuntos de fábrica.
Duas semanas mais tarde Juan alinhou seu “Fangio Special” numa absurda prova em Três Arroyos, terra natal de sua mãe. E, ainda que desta vez se tratasse de um circuito fechado, isso não significava que as condições seriam menos apocalípticas. Basta dizer que a duradoura onda de calor havia feito com que a pista de terra batida se tornasse extremamente seca, de tal forma que o fluxo de carros terminou por levantar uma densa cortina de poeira, que só piorou com o decorrer da corrida. Relatos de época descrevem a situação como semelhante a uma tempestade no deserto, visibilidade zero, pilotos enlameados de suor guiando pela audição, pelo faro, pela fé e pela memória que tinham do traçado. Evidente que um absurdo desses não podia acabar bem…
Segundo a descrição de Gerald Donaldson, “Juan ocupava a 5ª colocação quando escutou o som de metal sendo contorcido e o grito de motores fora de controle que significavam a reação em cadeia de acidentes em frente à principal arquibancada, oposta aos pits. Ele respirou a fumaça acre de borracha e combustível queimados, e então através da escuridão finalmente avistou fiscais agitando bandeiras vermelhas de forma frenética. Juan ainda conseguiu estacionar seu carro de forma segura em meio a desesperadas cenas de carnificina. O saldo fatal incluía dois mecânicos e dois pilotos, um dos quais queimado até a morte junto a um espectador que o tentara ajudar a debelar as chamas.”
Certamente nenhum piloto na Europa experimentava nada parecido…
Apesar da escassez de resultados – reforçada por um inexpressivo 8º lugar na corrida de La Plata, já em maio de 1939 –, as constantes demonstrações de bravura e talento continuavam a alimentar a confiança de que Juan poderia obter sucesso, caso tivesse equipamento para tanto. Uma crença especialmente difundida entre os habitantes de Balcarce, acostumados a ouvir suas aventuras pelo rádio, ou a lê-las em detalhes nas páginas do jornal local.
Prova maior do prestígio del Chueco junto aos seus foi dada às vésperas do Gran Premio Argentino de Carreteras de 1939, quando um conselheiro influente organizou uma campanha de levantamento de fundos para a compra de um carro para o piloto local. Em questão de dias um enorme fluxo de doações, das mais substanciais às mais humildes, bastou para que um constrangido Fangio pudesse adquirir um Chevrolet coupé preto, novo em folha.
Nos poucos dias que restavam para a prova, Fangio levou adiante todo tipo de adaptação mecânica possível que pudesse lhe valer alguma vantagem no inferno que vinha pela frente. Quando por fim quase nada de original restava no veículo, tratou de pintar em letras garrafais o nome de sua cidade sobre as duas portas laterais. A identificação entre piloto e município só fazia aumentar…
Com o carro pronto e o prazo esgotado, Fangio rumou com seu mecânico Héctor Tieri para Buenos Aires, onde a corrida de 10 dias deveria começar e terminar. Em plena madrugada, luzes acesas podiam ser vistas na cidade de Balcarce, indicando que boa parte da população acompanhava pelo rádio os boletins que atualizavam o posicionamento do carro da cidade, entre os 133 que haviam largado.
As primeiras notícias acerca do Chevrolet nº 38, no entanto, não eram boas. Com apenas 150 km percorridos, na cidade de Pergamino, Fangio e Tieri sofreram um atraso de mais de três horas quando a pressão de óleo caiu a quase zero. Iluminados precariamente pela luz de um poste, piloto e mecânico identificaram que um rolamento de biela causava o vazamento. Sem jamais considerarem a hipótese do abandono, os dois amigos levaram adiante uma mini retífica do motor que, obviamente, passou longe da perfeição. De qualquer forma o carro voltou a funcionar, ainda que o suprimento de óleo tivesse de ser reposto com irritante freqüência. Mesmo guiando como um louco entre uma e outra parada, Fangio não conseguiu ir além da 108ª posição, entre os 119 carros que venceram os primeiros 1000 km, até Santa Fé.
De lá, os carros foram transportados por ferry boat até a cidade de Paraná, onde Juan bolou e executou um sistema improvisado para que fosse possível completar o nível de óleo com o carro em movimento. O efeito-colateral era que a comunicação entre motor e habitáculo se dava em via dupla, de forma que os gases tóxicos eram constantemente soprados no rosto de piloto e mecânico. Um problema crônico por si só, tornado ainda muito mais letal diante do verdadeiro dilúvio que despencou durante o segundo estágio da corrida. Pior ainda para Tieri, que diversas vezes tentou minimizar os problemas através de fortes sopradas no filtro de óleo, e com isso acabou respirando/ingerindo uma quantidade considerável de substâncias tóxicas.
Com o rosto enegrecido, os olhos vermelhos e respirando uma atmosfera potencialmente asfixiante, Fangio ainda era obrigado a enfrentar estradas cobertas por uma grossa camada de lama, grudenta como um mingau, sobre a qual simplesmente andar seria uma tarefa praticamente impossível. Tanto assim que, numa das vezes em que acabou atolado, o piloto afundou seu pé tão profundamente na tentativa de erguer o veículo, que quando o trouxe de volta havia perdido o sapato.
“Era impossível continuar sob aquelas circunstâncias” – recordaria Fangio mais tarde. “No entanto, sempre que eu pensava em desistir, me pegava pensando no povo de Balcarce, e em como as pessoas haviam me ajudado a estar ali. Eu não tinha o direito de desistir, pois sentia que, naquele momento, cabia a mim defender a honra de minha cidade.”
Como se não houvesse problemas suficientes, o cheiro de embreagem queimada logo começou a enriquecer ainda mais a salada olfativa dentro daquele pequeno e célere pedaço de inferno. Novamente parados, Fangio e Tieri constataram que o atrito extra provocado pelo acúmulo de lama nas rodas vinha fazendo com que a embreagem começasse a patinar. Sem alternativa, ambos tiraram e limparam as quatro rodas do bravo Chevrolet. A partir de então, Juan passaria a mergulhar o carro em profundas poças d’água sempre que possível, aproveitando-se da suspensão elevada que ele mesmo havia adaptado, com o intuito de manter as rodas ao menos um pouco mais limpas. Além disso, o caminho pela água ajudava a evitar os inúmeros carros atolados naquele que em condições normais seria o traçado convencional.
Diante de tantos desafios, Fangio e Tieri já teriam muito que comemorar simplesmente por terem chegado ao fim do estágio, na cidade de Concórdia. Todavia, piloto e mecânico foram ainda premiados com a notícia de que haviam marcado o 9º melhor tempo da parcial, e ocupavam agora a 18ª posição na tabela geral, dentre os 70 conjuntos que seguiam na disputa.
A progressão de ambos, no entanto, não iria além deste patamar. Após um dia de descanso a prova foi reiniciada, apenas para que a direção se desse conta de que o temporal havia roubado qualquer condição de continuidade. O GP seria encerrado prematuramente.
Por uma questão de espaço, encerro a narrativa neste ponto. No próximo texto, seguimos com as aventuras de Fangio pela América do Sul.
Forte abraço a todos.
Márcio Madeira
*Coluna publicada originalmente em 18 de agosto de 2011.
1 Comments
Sempre leio falarem da Antiga Interlagos e que os novos nunca a conheceram. Aos que querem, assistam o filme O Incrível Monstro Trapalhão Didi leva um carro maluco a Interlagos pra disputar uma corrida de modelos livres. Dá pra ver toda a estensão da pista, e como era livre de guard-rails.
E, em Roberto Carlos a 300 Km por Hora Roberto corre em Interlagos ou Jacarepaguá, não lembro mais. Mas, o filme é dos anos 70, então, o circuito mantém o traçado original. É um filme divertido e despretensioso. Vale assistir pelo ronco dos motores e cenas da corrida.
Era isso. Espero que apreciem.
Bruno Wenson, Florianopolis