Fim do tabu

Está faltando água? 1a Parte
05/10/2020
Crônica do GP: Eifel 2020
13/10/2020

Na virada do milênio, havia uma piada onde se dizia que a Ferrari deveria contratar a jovem revelação Tomas Scheckter, o filho de Jody, pois somente um Scheckter poderia finalmente acabar com o tabu de títulos da Ferrari. Desde 1979 sem conquistas no Mundial de Pilotos, a Ferrari fez de tudo ao longo desse jejum para voltar a conquistar a F1, porém, a falta de gestão e a velha política dentro da equipe atrapalharam muito dos vários planos.

Após a decepção com Michele Alboreto em 1985, a Ferrari viu a hegemonia da McLaren entre os anos 1980 e 1990 prolongar sua agonia. A Ferrari trouxe Alain Prost em 1990, vindo de três títulos na McLaren, além de John Barnard, projetista da equipe inglesa, mas a promissora parceria sucumbiu com as críticas ácidas de Prost com relação à política ferrarista e o reconhecido horror que Barnard tinha da Itália. Em 1993, a Ferrari resolveu entregar a chefia da equipe para um estrangeiro e saiu fora da caixinha para escolher Jean Todt, que vinha tendo bastante sucesso como chefe de equipe na Peugeot nos ralis e no Mundial de Marcas.

Incólume à política na Ferrari e com carta branca de Luca di Montezemolo, Todt começou a mudar a gestão da Ferrari num longo processo de reestruturação. Sabia, porém, que a paciência dos italianos não era das maiores e o jejum de títulos só aumentava, na mesma proporção que aumentava a pressão em cima dele. Inicialmente Todt tentou contratar Ayrton Senna, mas ele tinha como projeto se tornar o maior campeão da história e sabia que a reestruturação da Ferrari poderia levar muito tempo, mesmo tendo o sonho de correr na equipe. Assim, Todt teve que se conformar com Alesi e Berger por algum tempo e o temor de Senna se revelara verdadeiro, com a Ferrari não tendo chances de títulos por alguns anos. Sentindo-se mais confiante com a reforma que tinha feito e percebendo que com seus pilotos não iria a lugar nenhum, Todt foi novamente ao mercado. Infelizmente não tinha mais Senna, mas havia outra estrela a contratar: Michael Schumacher.

O alemão venceu dois títulos com a equipe Benetton, que nunca seria campeã antes ou depois de dele. Se em 1994 o título de Schumacher foi cercado de polêmicas e marcado pela morte de Senna, em 1995 ele deu vários shows e mesmo com um carro de uma equipe inferior, derrotou a poderosa Williams. Todt sabia que o ritmo de trabalho de Schumacher poderia ser essencial no ressurgimento da Ferrari e com o alemão ainda tendo 26 anos, era jovem o bastante para esperar o melhor momento da equipe. Contudo, Schumacher não iria para a Ferrari sem seus pedidos e caprichos. O alemão se tornaria um dos atletas mais bem pagos do mundo e traria consigo a espinha dorsal técnica da Benetton – Ross Brawn, Rory Byrne e Nigel Stepney.

A receptividade dos tifosi não foi das melhores, pois achavam Schumacher muito ‘frio’, ao contrário do latinamente caliente Jean Alesi, mas o alemão não demoraria a convencer os italianos que era o homem certo para a missão. A Ferrari tinha sido apenas terceira colocada no Mundial de Construtores em 1995 e Alesi fora apenas quinto. Havia muito trabalho a ser feito e assim que Schumacher pôde testar a Ferrari, ele entrou na pista de Mugello. Tendo novamente Barnard como projetista, Schumacher testou loucamente, usando toda a estrutura que a Ferrari tinha no momento e que havia sido propiciada por Todt. O primeiro ano de Ferrari foi de muitas dificuldades, mas com Schumacher mostrando sua magia em vários momentos, como nas vitórias em Barcelona e Monza. O título esteve longe de acontecer em 1996, mas Schumacher entrou na briga pelo título de forma renhida com Jacques Villeneuve em 1997, que ainda estava em sua segunda temporada na F1. A decisão veio de forma polêmica, com Schumacher tentando jogar Villeneuve para fora, mas o canadense sobreviveu ao toque para se tornar campeão, enquanto Schumacher era punido com a perda de todos os pontos daquele campeonato.

Após uma mudança significativa de regulamento em 1998, a F1 viu uma espécie de passagem de bastão, com a McLaren se tornando o melhor carro disparado do pelotão e novamente Schumacher e a Ferrari estariam correndo atrás de um bólido dominador. Porém, Schumacher novamente mostrou seu enorme talento, levando a decisão do título de forma surpreendente até a última corrida do ano, mas Mika Hakkinen se sagrou campeão. Em uma de suas primeiras declarações como piloto da Ferrari, Schumacher pediu três anos de paciência antes que lhe cobrassem os esperados títulos. O prazo havia terminado e Schumacher partiu com tudo para cima das McLarens em 1999, mas um acidente em Silverstone pôs tudo a perder, com o alemão tendo a perna quebrada e saindo da luta pelo título. Schumacher ainda voltou no final daquela temporada tendo a desagradável missão de ajudar seu companheiro de equipe Eddie Irvine na luta pelo título, mas Hakkinen acabou se sobressaindo e garantiu o bicampeonato.

O jejum da Ferrari completaria 21 anos em 2000 e a pressão era enorme. Para essa temporada Schumacher teria um novo companheiro de equipe: Rubens Barrichello. Nitidamente mais completo do que Irvine, o brasileiro daria o toque final para uma equipe que se mostrava cada vez mais entrosada e forte. Contudo, se Irvine se conformava com a sua posição de segundo piloto, Barrichello não aceitava o cargo de bom grado e em alguns momentos reclamou de sua situação. Com sete anos de Ferrari e todas as peças principais trazidas por ele, Jean Todt sabia que estava tudo favorável para que o fim do tabu terminasse naquele ano, porém, o campeonato não foi tão fácil como mostram os números. A McLaren continuava uma potência e Hakkinen estava confiante a ponto de pensar no tri e se aposentar no final do ano. O coadjuvante David Coulthard também estava crescendo e seria um rival forte para Schumacher. O ano começou com três vitórias consecutivas de Schumacher, mas a McLaren não tardou a vencer corridas. Inicialmente Coulthard era o piloto mais forte, inclusive vencendo em Magny-Cours após uma ultrapassagem decisiva sobre Schumacher.

O verão europeu não foi dos melhores para o alemão, com dois abandonos na primeira volta na Áustria e Alemanha. Somente a vitória de Barrichello em Hockenheim salvou a liderança de Schumacher, mas logo em seguida Hakkinen engatou duas vitórias para assumir a liderança do campeonato, incluindo uma antológica ultrapassagem sobre Schumacher em Spa. Quando a F1 chegou a Monza, a pressão sobre a Ferrari era gigantesca: eles iriam perder o título novamente? O jejum de títulos continuaria? Com alguns desenvolvimentos no carro, Schumacher venceu com categoria em Monza, mas a enorme pressão sobre o alemão se transformou em lágrimas na entrevista pós-corrida, quando ele foi avisado da morte de um bombeiro e também que igualara em número de vitórias à Senna. Em Indianápolis, Schumacher venceu uma corrida confusa, que teve chuva e foi muito ajudado com a quebra do motor de Hakkinen. O belíssimo circuito de Suzuka recebia penúltima etapa do campeonato do ano 2000 e se Michael Schumacher vencesse no Japão, conquistaria seu terceiro título, não importando a posição de Hakkinen. Como não poderia deixar de ser, os dois dominaram todos os treinos e isso se repetiu na classificação. O duelo pela pole foi muito emocionante, mas o alemão acabou ficando com a posição de honra.

O dia 8 de outubro de 2000 estava nublado em Suzuka e com previsão de chuva a qualquer momento. Porém, a pista estava seca quando os pilotos completaram a volta de apresentação. Na largada, Hakkinen pulou melhor e assumiu a liderança, com Schumacher logo atrás. O que importava, naquele momento, era cada metro percorrido por Hakkinen e Schumacher no que poderia ser a definição do campeonato ou o adiamento da decisão do título, trazendo ainda mais pressão para a Ferrari. Mesmo com carros diferentes, Hakkinen e Schumacher andavam como relógios, com a diferença nunca diminuindo de 1s. Na décima volta, as primeiras gotas de chuva começam a cair, mas não a ponto de molhar a pista. Na volta 21, Hakkinen faz sua primeira visita aos boxes, completando seu pit em 6.8s. Era a primeira chance de Schumacher de tirar a liderança de Hakkinen, mas a Ferrari é um pouco mais lenta que a McLaren e as posições permaneceram as mesmas.

A chuva fina intermitente e as ultrapassagens em cima dos retardatários permitiam Schumacher se aproximar ainda mais de Hakkinen. A corrida era ao mesmo tempo estática e tensa, pois McLaren e Ferrari não se desgrudavam e ainda havia uma parada a ser feita. Quando Hakkinen fez sua parada na volta 37, o finlandês tinha perdido 1s atrás de Pedro de la Rosa e Schumacher quase foi tirado da corrida por Zonta, com um toque acidental entre os dois enquanto o alemão colocava uma volta no piloto da BAR. Ao contrário da parada anterior, Schumacher permaneceu mais de uma volta na pista após o pit-stop de Hakkinen. O gênio Ross Brawn tinha colocado mais combustível para Schumacher ficar mais tempo na pista e o alemão andava o máximo que podia. Na volta 39, quando Schumacher se aproximava da entrada dos boxes, dá de cara com a Benetton de Alexander Wurz parada. O austríaco tinha acabado de rodar, mas Schumacher passou impávido por ele. A Ferrari trabalhou de forma perfeita e Schumacher voltou à pista com uma diferença de quase uma reta sobre Hakkinen.

Tudo que precisava era levar a ‘criança’ para casa. Mesmo com Hakkinen por perto, não cometeu qualquer erro. Após 21 anos de muita luta, insucessos, fracassos e dor, Michael Schumacher recebia a bandeirada em primeiro e terminava com o mais longe jejum que a Ferrari enfrentara. Em Maranello, milhares de tifosi vibravam com o triunfo da Ferrari e esperavam por mais. Quando perguntado se poderia relaxar, Schumacher disse que não e lançou um desafio. “Essa vitória pode ser o início de uma dinastia da Ferrari na F1.” Os anos seguintes provariam que essa frase era premonitória.

Abraços!

João Carlos Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

1 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    JC Viana,

    reinado grande … com a saída do Mika Hakkinen … ficou sem um adversário que lhe pudesse realmente fazer frente ao seu dominio …

    Fernando marques
    Niterói RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *