Ferrari vs. Ford, parte 1

Tex-hex
01/11/2019
Ferrari vs. Ford, final
11/11/2019

Ou Carro X Caminhão

Em 14 de novembro próximo poderemos assistir à versão hollywoodiana de um dos duelos mais icônicos da história do automobilismo de competição.

Resumo (ou sinopse, termo técnico no cinema): Henry Ford II (alto-falantes tocavam “Heil to the Chief”, o hino dedicado aos presidentes dos Estados Unidos, quando ele entrava na empresa) negociou a compra da Ferrari e na última hora Enzo pulou fora.

HF2 (um de seus apelidos) tomou isso como ofensa pessoal e resolveu bater o italiano em seu próprio território, no caso as 24 Horas de Le Mans. Por que seu território? Porque a Ferrari vinha tendo uma sequencia ininterrupta de vitórias lá, o que gerava muito prestígio. Não é spoiler, é público que no filme Carrol Shelby é encarregado da tarefa e dá conta do recado com a preciosa ajuda do piloto inglês radicado nos EU, Ken Miles.

Você tem curiosidade de saber como Enzo reagiu? Assista.

Tela de projeção em um escritório exibe filme de telejornalismo sobre a vitória da Ford em Le Mans 1966. Som ambiente.

Assim que os 3 Mark II recebem a bandeirada praticamente emparelhados, ouvimos o ruído do projetor sendo desligado.

Corta para uma mão masculina apertando um botão de comunicação interna que estava piscando em um telefone da década de 60.

Uma voz feminina em off (falando em italiano com sotaque britânico) anuncia que o Eng. Forghieri está lá.

Uma voz masculina responde (em italiano) que ele pode entrar.

Uma porta abre e entra o engenheiro Mauro Forghieri, seguramente um dos 3 mais talentosos construtores de carros da segunda metade do século passado.

Ele vai até uma mesa de reunião e logo se junta a ele um senhor de terno escuro: é Enzo Ferrari. Mauro vai abrindo folhas de projetos mecânicos sobre a mesa enquanto os dois dialogam. Falam em italiano mas você pode acompanhar pelas legendas:

Enzo: 7 litros, Mauro! Não temos condições de brigar com os americanos em termos de cilindrada. É muito mais fácil para eles usar esse recurso. 7 litros!!!! Nós temos que aproveitar nossos pontos fortes. Nós sabemos muito mais de corridas de automóvel do que eles. Nós temos que usar nossa tecnologia, nosso conhecimento. O caminho, como bem sabe, é a relação peso-potência.

Inteligência contra força bruta.

Mauro: Exatamente. Estamos indo nessa direção. Para compensar a diferença de potência da P3 estamos aproveitando o motor de Formula 1 como base para ter um totalmente novo. 3.967cc… V12 a 60 graus, 77mm x 71mm… compressão 11:1, comando de válvula quadruplo… Esperamos atingir 450HP a 8000rpm, usando injeção direta. São 30 cavalos a mais. Nova caixa de cambio também.

Estimamos que o motor deles vai entregar mais de 500HP, mas com carburadores, parece que eles agora vão usar dois carburadores Holley quádruplos. Tendo que carregar pelo menos uns 200 quilos mais que o chassis que estamos desenvolvendo.

Enzo (balança a cabeça assentindo): E esse chassis?

Mauro: A 330P4 está sendo desenvolvida a partir da P3, que tem muitas qualidades. Mas teremos novas suspensões, mais leves, discos de freios mais fáceis para retirar e colocar pastilhas… olhe aqui…

Close no rosto de Enzo. Mesmo usando seus óculos escuros, percebemos por um discreto sorriso que tinha gostado do que ouviu. Podemos supor que já estava antevendo que teria condições para bater a Ford.

Trilha sonora nesse trecho: “Guarda come dondolo”, Edoardo Vianello, música do ritmo twist, mas italiano, que fez bastante sucesso na época.*

Corta para as pequenas instalações da Ferrari em Maranello. A câmera mostra como elas são por fora e em seguida corta para o interior. Um espaço antes ocupado para produção dos esportivos de rua agora está sendo ocupado por uma equipe que trabalha em dois protótipos novos e uma P3 sendo atualizada.

Enzo e Mauro estão observando o pessoal trabalhando enquanto conversam (não ouvimos o que falam). Conforme o olhar deles e os gestos são dirigidos para detalhes, a câmera se aproxima e enfoca o que atraiu a atenção da dupla.

Vemos detalhes de motores 12 cilindros, rodas largas douradas com os cubos rápidos da época, câmbios, suspensões etc.. Tudo muito bonito e caprichado.

De repente, uma pessoa traz uma mensagem e entrega para Enzo. Ele lê o que está escrito e mostra a Mauro.

Close: “Chris Amon è libero.”

Corta para Chris Amon em casa. Perto dele tem uma estante com diversos troféus e fotos contando sua carreira. A campainha toca, câmera acompanha ele abrindo a porta e recebendo um telegrama.

Close: “Would like talk personally pt Lini”

Corta para rosto de Chris Amon. Um sorriso começa a se esboçar em seu rosto.

Corta para Chris Amon parado diante do portão da Ferrari.

Ele fala com o porteiro. Corta para ele sendo recebido por Franco Lini em uma sala de reuniões.

Letreiro informa: Franco Lini, Direttore Sportivo.

Os dois se sentam para conversar.

A mesma imagem funde para outro piloto conversando com Lini. Um letreiro indica que é Lorenzo Bandini. Outra fusão, outro piloto, letreiro informa que é Ludovico Scarfiotti quem conversa com Lini.

Outra fusão nos leva para Lini chegando a uma pista de testes. Um piloto está tomando anotações técnicas. Os dois se cumprimentam e começam a conversar. Letreiro: Mike Parkes, engenheiro e piloto da Ferrari.

Corta para entrada da pista de Daytona.

Não é dia de corrida, não há movimento. Som ambiente.

Corta para os boxes. Uma 330P4 spyder está parando, sendo logo rodeada por 3 pilotos, Lini e outros membros da equipe.

Câmera foca no piloto, Chris Amon. Ele olha para a equipe e alguém pergunta:

– O que achou, em comparação com o Mark II?

Chris faz uma pausa mas logo abre um largo sorriso: – É a diferença entre guiar um carro e um caminhão.

Largos sorrisos aparecem em vários rostos, alguém não contém o riso… e contagia a turma.

Corta para um cidadão portando uma prancheta com cronômetros e um par de binóculos vendo a cena de longe. Ele se encaminha para um telefone e compõe um numero.

Corta para um homem (letreiro indica que é John Cowley, Diretor da Ford Racing) atendendo em um escritório. A expressão de John vai ficando séria, conforme ouve o relato do outro.

Corta para caminhões da Ford chegando a Daytona.

Letreiro sobrepõe: Voz de Franco Lini.

Voz off (inglês, com sotaque italiano, mas aqui vai a dublagem ou letreiros, como preferir): Não sei como a Ford ficou sabendo que nós tínhamos ido testar em Daytona por 8 dias pouco antes do Natal.

Câmera mostra pessoal de segurança tomando medidas de precaução contra possível espionagem.

Lini (em off): Tínhamos tomado muitas precauções para ninguém ficar sabendo. Logo depois a Ford também foi lá testar seus Mark II. Fizeram tanto segredo que até Bill France, dono do circuito, teve dificuldade para entrar.

Corta para as instalações da Holman & Moody, seus Mark II sendo preparados.

Lini (off): Tanto Shelby quanto John Holman, da Holman & Moody, sabiam que neste negócio é um sério erro subestimar o adversário. Mas, com sete litros empurrando o carro e os três carros posando para foto na linha de chegada de Le Mans, devem ter achado que não era preciso mexer muito para manter a hegemonia. Por precaução aumentaram a potência… mas também o peso. Eles achavam que nosso carros não ficariam prontos para Daytona. Sabe como é, a Italia tinha muitas greves… E além disso, tinham um time de pilotos de primeira qualidade.

Corta para o autódromo em dia de treinos oficiais.

A câmera vai percorrendo os boxes de modo a dar uma idéia geral dos competidores.

Lini (off): A Shelby vinha com nosso conhecido Dan Gurney, provavelmente o melhor piloto americano daquela época, em dupla com A. J. Foyt, que dominou Indianapolis por muito tempo, com o Mark II nº 3. O nº2 ficou a cargo de Ron Bucknum, outro americano com experiência na Formula 1, terceiro em Le Mans no ano anterior, e Frank Gardner, australiano que tinha sido 1º na classe em Le Mans com um Lotus Elite. O nº 1 seria pilotado por Bruce McLaren, um neozelandês multi-talentoso, e Lucien Bianchi, ítalo-belga que também tinha obtido um 1º em sua classe em 64, com uma Ferrari GTO.

A Holman & Moody vinha com o texano Lloyd Ruby, companheiro do falecido Ken Miles, a dupla que vencera Daytona e Sebring e deveria ter sido a vencedora em Le Mans, agora dividindo o carro nº 6 com Denny Hulme, piloto de ponta na Formula 1. O carro nº 5 seria pilotado por Mario Andretti, que tinha sido campeão americano em 65 e Richie Ginther, um nome bem estabelecido na Formula 1, tinha vencido o GP do Mexico de 65. O carro nº 4 estaria a cargo de Mark Donohue, um piloto-engenheiro que já tinha chegado ao pódio em Daytona e Sebring do ano passado, e Peter Revson, formando uma dupla americana muito forte.

Após ter percorrido os boxes da Ford, a câmera mostra os dois Chaparral.

FL (off): Jim Hall e Hap Sharp, aqueles texanos criativos, trouxeram dois Chaparral, um com uma enorme asa sobre o eixo traseiro, o 2F, pilotado pelo nosso ex-colega Phill Hill e Mike Spence, um promissor piloto inglês da Lotus e BRM. O 2D seria pilotado por Bob Johnson, um novato promissor que tinha feito boa temporada no ano anterior e Bruce Jennings, que não conhecíamos. Os dois carros tinham motor Chevrolet de 7 litros – bem americano, tinham que igualar os Ford – e cambio automático de 2 velocidades. A asa do 2F estaria em posição fixa para esta corrida.

Agora é a vez da câmera mostrar o box da Ferrari.

FL (off): Para enfrentar tudo isso nós tínhamos 2 330P4. A spyder nº 23 para Amon/Lorenzo Bandini, piloto com uma Mille Miglia e uma Le Mans em seu ativo, a de teto fechado nº 24 para Mike Parkes, piloto-engenheiro inglês ligado a nós há uns bons anos e Ludovico Scarfiotti, que também já tinha vencido uma Le Mans com Ferrari. Todos muito talentosos e experientes. Amon tinha vencido Le Mans para a Ford, em dupla com McLaren. Além de ser excelente piloto, conhecia profundamente o carro do adversário. O capo é muito sábio.

A câmera agora mostra a equipe NART.

FL (off): Luigi Chinetti, antigo piloto de Grand Prix e representante da Ferrari na America do Norte, dono do North American Racing Team, alinhou a P3 transformada em P4 nº 26 para Pedro Rodriguez, um mexicano velocíssimo que já tinha vencido duas vezes em Daytona, em categorias menores, e o francês Jean Guichet, que já tinha obtido uma vitória para a Ferrari em 64, mais uma P2 nº 28 para o trio Jo Schlesser, Gregory, Gregg. A Ècurie Francorchamps, belga, alinhou uma P3 nº 33 para Willy Mairesse e Jean Beurlys, ambos especialistas na categoria.

Câmera mostra um motor Ferrari sendo ligado. Ruído ensurdecedor. Corta para motor de um Mark II sendo ligado. Ruído muito mais ensurdecedor. Corta para motor de Chaparral sendo ligado. Igualmente ensurdecedor. Juntos formam um trovão assustador. Close de uma ferramenta pesada colocada sobre um tambor de combustível. A cada acelerada ela treme e pula até cair no chão, sem que alguém ouça o ruído da queda.

Câmera mostra os carros saindo para a pista.

Corta para on board de um Mark II. Quadro é dividido para mostrar o on board de uma P4. Cronômetros mostram os tempos dos dois.

FL (off): A pista tem 3,81 milhas de extensão. É um circuito peculiar, uma combinação entre um setor de alta velocidade – que os americanos chamam speedway – com inclinação de 31º e um setor plano cheio de curvas.

Logo ficou claro que nossos carros viravam melhor que os Ford. Estávamos perto de 1:54, 4 segundos abaixo do recorde da pista.

Corta para Jim Hall saindo do box com o 2F. On board e cronômetro enquanto ele percorre a pista.

FL (off): Os pilotos dos Chaparral viravam muito acima do esperado, reclamando do carro. Jim Hall, esse era um sujeito especial, foi lá verificar. Sentou no 2F e depois de algumas voltas cravou 1m55.36, bem mais competitivo. Desceu do carro dizendo que não tinha encontrado nada de muito errado com ele.

Corta para mecânicos trabalhando no carro de Dan Gurney.

FL: De repente a Ford ficou preocupada. John Cowley percebeu que a confortável vantagem que tinha no ano anterior tinha desaparecido. Resolveu apostar tudo em Gurney para tentar a pole. Foram colocados pneus Goodyear de alta aderência e baixa duração, deixaram o mínimo de combustível e faltando 45 minutos para o fim da sessão ele conseguiu virar 0.26 abaixo do nosso melhor tempo, conquistando a pole.

Câmera mostra um trecho de pista bem sinuoso. Uma P4 desgarra no meio do traçado e vai se esfregar no muro.

FL (off): Nós tivemos um problema também, mas de outra natureza. Ludovico não conhecia essa pista e no trecho mais sinuoso escapou e foi se encontrar com o muro. Felizmente não estragou nada da parte mecânica e pudemos recuperar tudo a tempo para a corrida.

Corta para espaço para reunião nos boxes da Ferrari. Franco, pilotos e membros-chave da equipe estão discutindo estratégias para a corrida.

FL: Creio que se virarmos entre 2:03 e 2:04 por 24 horas poderemos vencer, e com três voltas de vantagem.

Chris Amon, com um sorriso desafiador: Pois eu acho que podemos virar entre 1:56 e 1:57 e venceremos do mesmo jeito.

Câmera continua expondo a conversa, percebemos que todos estão confiantes.

FL. (off): Nós não estávamos muito preocupados com os Chaparral, apesar das idéias inovadoras, mas com o poderio da Ford, que era colossal. A rigor eram dois carros contra seis. O boxe da Holman & Moody, por exemplo, era enorme. Caixas de motores e peças de reposição iam até o teto. Cederam espaço para a Chaparral e não ficaram apertados. Eles tinham mais de 150 pessoas trabalhando nos boxes. Nós? …

Quadro dividido entre os boxes da Ford e os da Ferrari. Um está repleto de gente, máquinas e ferramentas de todos os tipos. O italiano é claramente mais simples, com muito menos gente.

FL. (off): Um dos maiores fabricantes de veículos do mundo contra uma empresa que vivia de vender carros esportivos ou de corrida, segmentos muito pequenos, mais prêmios de largada e chegada. Para falar só de um produto Ford, o Mustang, em 66, ano do lançamento, vendeu 400.000 unidades.

Nossa 275 GTB, feita a pedido do Chinetti, portanto pensando em atender ao gosto dos americanos vendeu… 10 unidades, entre 66 e 67.

Continuaremos este script na próxima sexta-feira.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

1 Comment

  1. Excepcional! Esse filme vale a pena ser feito! Script de quem é do ramo. Faltou falar mais da Chaparral, que “inventou” o aerofólio, que funcionou bem até matar seu piloto. Quando veremos a continuação do script?

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