Fórmula 1 Nutella

Monza
01/09/2017
Fahrenheit 9/11
11/09/2017

Um dos maiores memes da atualidade — depois do “gemidão” e do Mundial do Palmeiras — é o tal raiz X nutellaA ideia é muito simples: todas as situações, profissões e gerações podem ser comparadas pelas épocas a que pertencem. A raiz é aquela que remete às origens, à essência, ao formato básico, verdadeiro; já a nutella está ligada à ideia de coisas prontas, passadas por imensas transformações até chegar ao potinho cremoso artificial que tem nome ligado a coisas ‘de raiz‘.

Hoje, inegavelmente, acompanhamos a Fórmula 1 Nutella. Motivos não faltam, e já os discutimos por aqui muitas vezes. Três anos atrás, por exemplo, meu amigo Lucas Giavoni falou que vivíamos “dias de Super Nanny“. As muitas punições, as reclamações via rádio, tudo isso faz parte do pacote. Faz parte, até, o fato de os pilotos conhecerem todas as pistas como a palma da mão através de… simuladores.

Na verdade, um reflexo da época em que vivemos. Um período em que se valoriza demais alguns aspectos em detrimento de outros. Uma época em que a pesquisa, a especialidade, a vontade de aperfeiçoamento não são relevantes caso não tragam algum retorno. Como se diz, “não é pelo conhecimento: é pelo reconhecimento”.

No mundo esportivo, a subversão completa. Uma época em que um boxeador desafia um atleta do UFC para uma luta de… boxe, e o derrotado ganha milhões e milhões para participar de um circo. O vencedor, além de entrar para o clube do bilhão, tem consigo a suposta glória de superar Rocky Marciano, uma vez que esta foi sua 50ª vitória, enquanto aquele vencera as 49 que lutou. Mas Maywheather, mesmo com mais vitórias, não superou Marciano.

O GP da Itália começou com o recorde esperado: Lewis Hamilton marcou sua pole-poisition de número 69, superando, assim, a antiga e inimaginável marca de Michael Schumacher (número que o alemão estabelecera em 2006, indo à exaustão para passar Ayrton Senna). E a conquista deste recorde por si só já valeria um meme completo do que era raiz e o que é nutella.

Não: não se questiona a capacidade de Hamilton enquanto piloto, muito menos sua incrível velocidade (uma pole a cada três GPs, no retrospecto!). Mas é possível, sim, relativizar o peso que têm suas 69 poles diante das 68 de Schumy ou das 65 de Ayrton.

O período com um carro dominante e a ausência de competidores ferozes do outro lado — e, não custa lembrar: dividindo a equipe com Nico Rosberg, o confronto em poles foi bem equilibrado… — o colocam um degrau abaixo do ídolo brasileiro no que tange a poles, embora em pé de igualdade (e até um passo a frente) com o alemão.

Mas falemos de simbologia — e aí a referência ao doce de avelã com cacau: a pole do recorde não poderia acontecer em situação mais deplorável para a história do esporte: um treino interrompido quase adiado por conta da chuva.

O que dizer? É verdade que houve muita água, mas… Fico com o que disse, novamente ele, meu amigo Lucas Giavoni quando do treino: “Três palavras para o que está acontecendo em Monza: CAMBADA DE FROUXO”.

Venturou-se que uma das razões para que a FIA não permita o treino nessas condições é a fim de evitar alterações ilegais nas configurações dos carros entre o treino decisivo e a prova, uma vez que os monopostos ficam em parque fechado antes da corrida.

O que os amigos pensam a esse respeito?

Foi justamente esse treino, porém, que permitiu a primeira fila a Lance Stroll. O desempenho em corrida foi obviamente muito aquém do que se queria, mas sua limitação de equipamento é clara. No entanto, mais uma vez bateu o companheiro de equipe Felipe Massa de modo claro e inequívoco, a volta final ilustrando bem a segurança do jovem canadense — belas manobras para segurar o brasileiro algumas curvas antes da parabólica — aliada à eterna ineficiência para decisões de ultrapassagem por parte de Felipe.

Fim da linha para Fernando Alonso? Fala-se no espanhol como substituto de Massa na Williams, ou de uma migração da Renault para a McLaren… Nos dois casos, não vejo perspectivas boas de melhora ou mudança do quadro atual.

Alonso, com ainda muita lenha pra queimar no aspecto técnico, entra pra história como um dos grandes casos daquele que podia ter sido e que não foi: o último flerte do espanhol com a glória se deu em 2013, quando iniciou o ano com boas vitórias. Desde então, a coisa degringolou: e foram as más escolhas que lhe fecharam as portas.

Está completa, pois, a saga Fernando Reutemann. Que o espanhol tenha sucesso na Indy.

Interessante foi o desempenho de Esteban Ocon: uma bela segunda fila na largada (ok, foi uma classificação nutella, eu sei…) e uma boa sexta colocação ao final, mas sobretudo um desempenho muito firme, sem excessos, dadas as limitações do carro, e sem erros, inda que inexperiente.

Até aqui, Ocon finalizou 99,24% dos quilômetros percorridos pela F1 nesta temporada, e completou 770 das 776 voltas possíveis até aqui: com exceção dos dois postulantes ao título, que não contabilizaram um abandono sequer, ninguém chegou perto

[nada mais Nutella do que elogiar um piloto por terminar corridas…]

Falemos agora do top 4 (da corrida e do campeonato). Em ordem crescente.

Daniel Ricciardo foi um dos nomes da prova, se consolidando como um dos melhores do ano.

Largando apenas na 16ª posição, teve memorável desempenho, só indo aos boxes no limite das condições de seu equipamento (mais de 60% das voltas) e assim garantindo ao menos a chance de superar Vettel. Ricciardo é o único piloto fora as Mercedes e Vettel que venceu corridas em 2017, e já chegou ao pódio 6 vezes. Não fosse tão díspar seu equipamento, poderia brigar pelo título facilmente.

Sebastian Vettel fez o que dele se esperava — e até um pouco mais. Seu estilo de pilotagem e sua segurança e frieza em momentos onde precisa tomar decisões rápidas (como o approach que realizou diante de seu companheiro Kimi logo no início) vêm lhe garantindo posição tão importante. Crédito também  seja dado à equipe, que não tem medido esforços para acompanhar a verdadeira corrida tecnológica travada com a equipe alemã.

Valtteri Bottas foi outro que desempenhou seu papel de forma correta e sem sustos: é segundo piloto. Talvez a devolução de posição de Hamilton na Hungria traga reminiscências de Senna no GP do Japão de 1991: “o modo que ele fez mostrou ao mundo inteiro quem mandava.“, disse Berger em seu livro. Bottas sentiu o golpe, também.

Na F1 raiz se entregava vitórias pós-título; na F1 Nutella, terceiros lugares sem grande suor.

Por fim, o vencedor Hamilton, que teve um fim de semana estupendo, controlando todas as ações em Monza do início ao fim. Uma vitória daquelas em que não se tem muito o que comentar.

Faltando agora 7 corridas para o fim, temos o seguinte cenário: duas pistas de baixa, e o restante autódromos que vão variar média e alta, com alguns pequenos trechos de baixa. Quadro amplamente favorável à Mercedes. Porém…

Vettel e Hamilton estão separados por apenas 3 pontos, apesar de o inglês ter vencido duas corridas e liderado 130 voltas a mais que o alemão: como já muito comentamos, o regulamento atual da Fórmula 1 privilegia não o número alto de vitórias, mas a quantidade reduzida de abandonos.

É o regulamento nutella.

PS: Também neste fim de semana Cristiano Ronaldo marcou seu gol de número 78 envergando a camisa da seleção portuguesa. Assim, superou Pelé em tentos por partidas oficiais com camisa de seleção. Desnecessária a discussão, bastando lembrar que a marca de CR7 veio em um ‘hat-trick‘ contra… as Ilhas Faraoe, um país com menos de 50 mil habitantes — e talvez com alguns jogadores de futebol.

É o futebol Nutella.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

3 Comments

  1. Lucas disse:

    Acho muito difícil negar que o Hamilton seja muito mais merecedor do recorde de poles que o próprio Schumacher. Vejamos:

    O texto fala do fato de Hamilton ter um período “com um carro dominante e a ausência de competidores ferozes do outro lado”. A mesma descrição poderia ser usada para o próprio Schumacher. Com o agravante de que, no caso do alemão, essa “facilitada” foi muito, mas muito maior pelo fato de que, em todas as temporadas em que ele tinha carros excepcionais, seus companheiros eram pilotos de nível mediano pra baixo, o que significa que fazer pole era quase uma obrigação. Além disso, no período de dominâncida da Mercedes não existia a hierarquia de primeiro/segundo piloto que aconteceu nos tempos em que Schumacher teve carros dominantes, o que de novo torna a facilidade do alemão em acumular recordes muito maior.

    E não se pode de forma alguma deixar de ressaltar a média de qualidade dos companheiros de cada um: enquanto Schumacher desfrutava de carros espetaculares enquanto dividia a equipe com gente do naipe de Verstappen, Irvine, Massa, na melhor das hipóteses um Barrichello, o Hamilton teve companheiros do calibre de Alonso, Button e um Rosberg que, não custa lembrar, meteu uma surra espetacular no próprio Schumacher por três anos seguidos.

    E me antecipando ao argumento “Schumacher estava mais velho, tinha passado um tempo fora da categoria”, é sempre bom lembrar que Kimi Räikkonen vai fazer 38 mês que vem, também passou um tempo fora da F1, mas isso não parece ser relevante na hora de dizer que o Vettel está quase sempre à frente dele.

    As 65 poles de Senna são um assombro porque não se restringiram a “anos de equipe dominante com um companheiro fraco” (até porque no caso dele isso nunca existiu: quando teve carros dominantes o companheiro era o sujeito considerado o melhor do mundo até então, quando teve companheiros fracos havia outra(s) equipe(s) no mínimo tão boas), mas a *todos os carros* com que ele correu de 85 a 94, incluindo anos em que o carro não era assim excepcional, ou anos em que ele enfrentava equipes mais dominantes que qualquer uma enfrentada por Hamilton ou Schumacher. E mesmo no único ano em que não fez pole, ainda conseguiu uma largada em P3 de Toleman.

    No caso de Schumacher, a evolução de seu recorde de poles é muito mais correlacionado com a combinação carro/companheiro fraco. Até a morte de Senna ele não tinha uma única pole, mesmo que no início de 94 ele tivesse indiscutivelmente o melhor carro do grid. Acumulou poles nos anos em que a Ferrari ainda estava atrás de Williams e McLaren, é verdade, mas fica difícil saber se realmente era tão espetacular assim ir pra ponta num carro daqueles quando se lembra que o companheiro era Eddie Irvine, m sujeito que não marcou uma única pole em toda a sua carreira mesmo tendo corrido parte da temporada de 1999 num carro vencedor do campeonato de construtores tratamento de primeiro piloto por conta do acidente de Schumacher – será que com um companheiro melhorzinho o Schumacher não perderia algumas dessas poles pro companheiro? E aí vieram os anos de dominação da Ferrari, em que não se devia esperar outra coisa que não um enorme acúmulo de poles, vitórias, etc.

    E Hamilton?

    Não é nada não é nada, mas não se deve ignorar o fato de que Hamilton marcou poles em *todas* as temporadas em que correu. É bem verdade que até hoje o Hamilton nunca teve um carro *muito ruim*, mas também não dá pra dizer que foram todos excelentes. E, como já dito, mesmo quando o carro era excepcional, o companheiro de equipe não era nenhum zé-ruela. Poderia ter ficado mais vezes à frente do Rosberg (foram 42 vs. 34)? Bom, contra o mesmo Rosberg o Schumacher perdeu de 43 a 15.

    Não tenho dúvidas de que o recorde está em boas mãos. Se vai quebrar outros, isso depende daquilo que são feitos os recordes: a existência de oportunidades. Se chegar a um número comparável ao de Schumacher em temporadas com carros excepcionais, não tenho dúvidas que quebre.

    • Fernando Marques disse:

      Lucas,

      seu comentário tem muito sentido … mas não nos esqueçamos da subversão no esporte … o Schumacher teve … Hamilton tem e Senna gostaria de ter se pudesse ter pois isso ele até tentou …

      Fernando marques

  2. Fernando Marques disse:

    Marcel,

    A Formula 1 Nutella está mais do esclarecida pelo seu excelente texto. E como você mesmo diz, “no mundo esportivo, a subversão é completa.”. Vide há pouco uma noticia que saiu na mídia onde 40% dos atletas (certamente aqueles que tiveram coragem de admitir mesmo que de forma anônima) que disputaram as Olimpíadas em Londres (se não me engano) se doparam mas não foram pegos pois usaram medicamentos que mascaram as substâncias proibidas … antes tínhamos verdadeiros atletas amadores nas Olimpíadas, hoje temos atletas de alto rendimento (certamente fazendo uso de doping) … um professor de natação de meu neto me afirmou que todo atleta de alto rendimento se dopa e que ele quando tentou ser um deles se dopava também … e assim caminha o esporte, só que penso que se o esporte em geral continuar assim até o reconhecimento será extinto …

    Apesar de toda “nutellagem” eu até que gostei muito do GP da Italia. A dinâmica da corrida não foi chata, ao contrário me manteve sempre atento em frente a TV … ao menos isso salvou o domingo esportivo na TV sem futebol.

    Quanto a sua pergunta, o que aconteceu nos treinos foi mais uma aplicação do politicamente correto no regulamento da Formula 1 em nome da segurança dos pilotos … vai ser sempre assim daqui para frente … se por um lado mostra que existe um monte de piloto frouxo na Formula 1 por outro se enaltece uma decisão oriunda do politicamente correto

    Fernando Marques
    Niterói – RJ

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