Edu,
Muito oportuna sua lembrança dos saudosos esporte-protótipos, maravilhosa categoria que a dupla FIA/Bernie Ecclestone fez o “favorzão” de enterrar para fortalecer a Fórmula 1. Veio bem a calhar, já que na próxima semana o GPtotal colocará no ar um especial sobre a 24 Horas de Le Mans. A edição 2002 da corrida acontecerá no sábado e no domingo, dias 15 e 16 de junho. Além do especial, vamos abrir mais uma votação aos leitores: a do Esporte-Protótipo mais bonito.
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Quem passou a acompanhar automobilismo há, digamos, dez anos mal consegue imaginar que aquelas corridas eram tão importantes quanto a própria Fórmula 1. Não era à toa que as corridas de esporte-protótipos (endurance, Mundial de Marcas, resistência… muitos nomes foram usados ao longo de sua existência) tinham tanta importância. Os grandes fabricantes, principalmente de carros esporte e GTs, tinham enorme interesse em firmar sua imagem nesse tipo de corrida. Normalmente, eram provas de longa duração, que exigiam o máximo das máquinas e dos pilotos.
A 24 Horas de Le Mans e, em menor grau, a 24 Horas de Daytona foram as únicas grandes provas longas que resistiram aos “crimes da F 1”. Outras corridas clássicas (6 Horas de Silverstone, 1000 Km de Spa, 1000 Km de Brands Hatch, 1000 Km de Fuji, 12 Horas de Sebring, 1000 Km de Monza…) desapareceram ou perderam muito de sua importância. Algumas sumiram por falta de segurança, como a Carrera Panamericana, a Mille Miglia e a Targa Florio – todas disputadas em estradas e cidades, em percursos fascinantes mas que há 30, 40 ou 50 anos já eram considerados perigosos demais. O que, para mim, aumentava ainda mais a mística dessas corridas…
Há uns 30 ou 40 anos, a F 1 não era a única categoria “top” do automobilismo europeu. As outras que você citou (F 2, F 5000, Can-Am e o próprio Mundial de Marcas) também tinham grande importância. Boas atuações nelas significavam muito para a reputação de qualquer piloto. É por isso que Chris Amon, Jacky Ickx, Vic Elford, Pedro Rodriguez, Henri Pescarolo, Bob Wollek, Jo Siffert e Derek Bell, entre tantos outros, são colocados até hoje entre os grandes pilotos de todos os tempos.
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Já que falei de Jacky Ickx, gostaria de apresentar melhor estepiloto belga a nossos leitores. Alguns deles talvez só tenham ouvido falar dele ao lerem minha carta de segunda-feira passada.
Ickx foi um dos melhores pilotos de todos os tempos, um dos mais brilhantes entre aqueles que nunca conquistaram um título de F 1. Venceu 8 GPs entre 1968 e 1972 (as temporadas nas quais teve seus melhores desempenhos na F 1) e foi vice-campeão mundial em 1970. A partir de 1973, porém, sua participação na F 1 foi demasiado irregular e Ickx perdeu bastante de seu brilho nesta categoria.
Sua última vitória na F 1 foi na Corrida dos Campeões (extracampeonato) em Brands Hatch, em 1974, quando guiava para a Lotus. Sob chuva, ele fez uma ultrapassagem sensacional sobre Niki Lauda – eu nunca vi qualquer imagem dela, mas as reportagens e os relatos de quem estava lá naquele dia dão conta de ter sido uma manobra tão espetacular quando a ultrapassagem de Nelson Piquet sobre Ayrton Senna na Hungria, em 1986. Ickx, por sinal, foi o primeiro piloto de F 1 a merecer o título de “Rei da Chuva”, o que dá uma boa noção de sua habilidade.
Ao mesmo tempo em que corria na F 1, Ickx dedicava-se às corridas de esporte-protótipos. Ostenta até hoje a condição de maior vencedor das 24 Horas de Le Mans (seis vezes, em 1969, 1975, 1976, 1977, 1981 e 1982). A primeira delas foi particularmente marcante: Ickx dividiu um Ford GT 40 com Jackie Oliver e derrotou o Porsche 908 LT de Gerard Larrousse/Hans Hermann por apenas 6 segundos – a chegada mais apertada da história de Le Mans.
No começo dos anos 80, já pilotando somente Protótipos (seus últimos GPs foram em 1979, pela Ligier), Ickx decidiu experimentar o Rally Paris-Dakar. Venceu a prova em 1983, pilotando um jipe Mercedes-Benz. Seis anos depois, foi o perdedor no cara-ou-coroa feito por Jean Todt (então o chefão de competições da Peugeot) para decidir quem, entre ele e o finlandês Ari Vatanen, teria direito de vencer a prova. Ickx, muito profissionalmente, acatou a ordem mas fez questão de liderar até uns 20 metros antes da linha de chegada. Ali chegando, parou seu carro e esperou Vatanen passar.
Ickx é uma daquelas personalidades que fazem falta na F 1. Nos anos 70, Jackie Stewart fazia uma verdadeira cruzada por mais segurança nos autódromos e tinha apoio de quase todos os pilotos. Ickx era a exceção: várias vezes acusou Stewart de fazer barulho apenas para se promover. Certo ou errado, não deixava de falar o que pensava. Hoje, está aposentado mas comparece a algumas corridas. Sua filha, Vanina, participa de corridas e disputou a 24 Horas de Le Mans no ano passado.
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Só para te dar água na boca: há poucos dias tive a oportunidade de sentar no cockpit de um dos carrões maravilhosos de que temos saudades. Era um Porsche 908/2, o mesmo que Luiz Pereira Bueno usou aqui no Brasil nos anos de 1971 e 1972. O 908 competiu no Mundial entre 1968 e 1971, e foi o primeiro Porsche de corrida realmente competitivo. Daí a sua importância na história da marca.
Não, não andei no carro. Ele estava em uma oficina e eu apenas sentei no cockpit. Parado, já foi uma sensação única, uma verdadeira viagem ao passado. Durante alguns instantes, eu me senti como se estivesse no grid de largada de alguma corrida do Mundial de Marcas de 1969 ou 1970. Fico arrepiado só de lembrar. O carro está inteirinho (passou por uma caprichosa restauração que foi finalizada há uns quatro anos) e funciona perfeitamente. Aqui, vai um agradecimento especial ao Dener, que cuida do carro e ligou o motor só para que eu ouvisse o uivo daquele motor de 8 cilindros contrapostos. Curiosidades: a posição do piloto (quase deitado), o tamanho do volante (pouco menor que o de um carro de rua de hoje) e a presença de pisca-pisca e de uma buzina (itens obrigatórios em determinadas corridas, como a Targa Florio).
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Outro assunto que fiquei de abordar na minha carta passada: a desclassificação dos Tyrrell na temporada de 1984. Aconteceu o seguinte: naquele ano, a Tyrrell iniciou o campeonato como única equipe sem motores turbo – na época, indispensáveis para qualquer carro ser minimamente competitivo.
Ken Tyrrell não teve opção e correu com os velhos Cosworth aspirados, mas fez um carro 80 quilos mais leve que o mínimo permitido pelo regulamento. Nas últimas voltas dos GPs, Martin Brundle e Stefan Bellof entravam nos boxes, recebiam água com pequenas esferas de chumbo (em reservatórios instalados somente para isso) e graças a esse lastro terminavam a corrida com o carro dentro do peso regulamentar…
A desvantagem de correr com motores aspirados era tão grande que a FIA até fez vista grossa para as irregularidades, com a devida compreensão das demais equipes. O problema é que a Tyrrell abusou da tal boa vontade. Os pilotos eram muito talentosos, mas não mágicos para ultrapassar nas retas a pilotos que dispunham de motores com 100 ou 150 cavalos a mais.
Depois do 3º lugar de Bellof em Mônaco, a Tyrrell ainda conseguiu um 2º com Brundle em Detroit. Foi feita uma vistoria minuciosa, que entrou várias pequenas irregularidades. Surgiu ainda uma forte suspeita de que a equipe misturava uma grande quantidade de gasolina a essa água – esta, sim, uma acusação grave, já que naquele ano a capacidade dos tanques era limitada a 220 litros. Enfim, um daqueles casos técnicos chatíssimos. Seria enfadonho detalhá-lo aqui. Depois do GP de Dallas, o 9º da temporada, a FIA anunciou que a Tyrrell fora desclassificada de todos os GPs disputados até ali e que a equipe estava banida do restante do campeonato.
Ken Tyrrell apelou da decisão e conseguiu permissão para continuar correndo (sem direito a marcar pontos) até que o caso fosse julgado em definitivo. Passado mais um mês e pouco (e uns quatro GPs, nos quais os Tyrrell ficaram longe dos desempenhos da primeira metade do ano), a FIA confirmou a punição e a Tyrrell não pôde disputar as últimas etapas do campeonato. Para muitos, foi uma punição exagerada.
Diante de tudo isso, é impossível não lembrar de alguns boatos de “irregularidades relevadas” ocorridos mais recentemente. Mas prefiro ignorar certas coisas. Do contrário, teremos que colocar sob suspeita a lisura dos resultados de todos os GPs disputados desde 1950.
Abraços,
Panda