Limite exponencial

Tocando o caos
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Já estamos aqui
04/03/2025

Meios de transporte necessariamente possuem especificações, e condições tidas como seguras para sua utilização. De elevadores a foguetes, passando por aviões, helicópteros, submarinos, barcos ou carros, direcionamentos de projetos proporcionam as mais diversas características e parâmetros próprios, dentro dos quais é esperado que a máquina responda aos comandos sem apresentar reações inesperadas.

Na prática, isso equivale a dizer que, quando operadas suficientemente longe de seus respectivos limites, máquinas não deveriam manifestar qualquer vestígio de “personalidade”, meramente respondendo a comandos, de tal modo que cruzar o Brasil de ônibus proporcione uma experiência mecânica virtualmente idêntica quer seja num Volvo, num Scania, num Mercedes ou em qualquer concorrente de qualidade semelhante, as diferenças maiores ficando a cargo das personalidades de cada motorista. O mesmo, claro, dever-se-ia aplicar a viagens de avião, nas quais, respeitados os parâmetros de voo, não deveria fazer muita diferença a um passageiro distraído se a aeronave foi fabricada pela Boeing, pela Airbus, pela Bombardier ou pela Embraer.

Contudo, à medida que uma máquina se aproxima do limite de suas capacidades, sua personalidade começa a aflorar. Certos carros de rua, por exemplo, irão suportar com alguma tranquilidade acelerações laterais da ordem de 0,9g, ao passo que outros irão “perder” a dianteira ou a traseira. Uns vão “rolar” mais, outros menos, e se acelerador ou freio forem acionados até o fundo, aí cada carro mostrará aquilo de que é capaz, e com que grau de controle ou segurança poderá lidar com as mesmas forças que consegue gerar. O mesmo vale para aviões, que irão se comportar de maneiras distintas quando acima da altitude máxima de cruzeiro, ou acima das velocidades consideradas seguras para cada altitude, em pré-estol, ou ainda quando forçados a ângulos de ataque mais arrojados. Sob tais circunstâncias, aí sim, fará muita diferença saber qual o conjunto mecânico que está sendo exigido.

Não estamos falando sobre algo exatamente novo aqui, mas a realização de alguns aprofundados trabalhos de pesquisa recentes têm me levado a muitas reflexões a esse respeito, alterando sensivelmente minha percepção sobre esse processo. A sensação que tenho atualmente é a de que se houvesse um gráfico capaz de sintetizar a evolução da manifestação da personalidade da máquina em relação aos parâmetros de uso, ele descreveria uma curva exponencial. No início, que poderíamos descrever como condições normais de uso, os parâmetros têm liberdade muito maior para flutuar, praticamente sem qualquer manifestação de personalidade. É a fase da curva em que ela quase parece uma reta, avança horizontalmente sem apresentar significativo ganho vertical.

A partir de determinado momento, no entanto, cada novo avanço nas condições de utilização passa a ser acompanhado de uma resposta em personalidade, e então, à medida que o limite se aproxima, rapidamente o jogo se inverte, e cada mínimo avanço horizontal passa a cobrar um preço muito maior no eixo vertical. E talvez essa seja uma verdade universal, algo que se aplica sempre que desejamos tocar os limites da perfeição em qualquer área de atuação. Alguém que comece a praticar natação, por exemplo, deverá ter muita facilidade para melhorar os próprios tempos iniciais e evoluir rapidamente, mas então chegará um momento a partir do qual só será capaz de progredir ao custo de muito treino e preparação física. Por fim, se esse nosso personagem quiser brigar por uma medalha olímpica e estiver disposto a coletar os últimos milésimos de segundo, então terá de devotar a própria vida quase que integralmente a isso, e ainda contar com aptidões genéticas que equivalem às especificações dos veículos a respeito dos quais estávamos falando anteriormente.

A gente também poderia traçar paralelos aqui com tudo que começa a acontecer quando se pretende acelerar um corpo a velocidades próximas à da luz, mas acredito que o conceito principal já tenha ficado suficientemente claro: caminhar em direção aos limites é fácil no início, mas se torna exponencialmente mais difícil à medida que nos aproximamos deles. E isso, claro, tem tudo a ver com corridas.

De imediato essa reflexão nos aponta que mesmo diferenças minúsculas nos resultados em competições de alto nível podem esconder grandes abismos de capacidade, seja ela inata ou desenvolvida, por parte dos competidores. Uma coisa é correr os 100 metros em 10,10 segundos. Outra, absolutamente diferente, é correr abaixo de 9,8s, e isso nos ajuda a dimensionar o quão absurdo é o recorde mundial estabelecido por Usain Bolt em 9,58s.

E aqui, amigos, a reflexão começa a ficar interessante, pois se levar o próprio corpo próximo ao limite já é tarefa hercúlea, o que dizer sobre tentar o mesmo num conjunto binomial, homem-máquina, no qual a componente mecânica é integrada por milhares de peças, cada uma delas com suas próprias limitações? Em essência, à medida que algumas dessas peças encontram seus próprios limites, e os comandos impostos pelo piloto continuam a demandar mais e mais desempenho, pressão e energia começam a se acumular. Algumas partes do carro já não podem ir além, ao passo que outras ainda possuem alguma margem, e então se estabelece o desequilíbrio – eis aí a tal “personalidade” sobre a qual falamos anteriormente. Se o piloto quiser extrair o máximo das partes mais evoluídas de seu equipamento, então terá de buscar compensações para as deficiências das partes mais fracas, tornando a pilotagem cada vez mais e mais reativa e imprevisível.

Seguir adiante em meio a esse processo de colapso e implosão é se expor ao caos, é continuar a avançar mesmo quando a máquina está em espasmos, quando as decisões a respeito de velocidade e trajetória já não podem mais ser impostas através de comandos convencionais, mas precisam ser negociadas, barganhadas. Nesse estágio o piloto já não governa as ações como um ditador, mas precisa debater com a máquina e apontar soluções através das quais a energia possa fluir e seja possível avançar um pouco mais, porque é justamente lá, no território hostil, instável, minado e desconhecido, que se encontram os últimos centésimos e milésimos de segundo que separam os homens dos meninos.

Tendo tudo isso em mente, fica mais fácil compreender Mika Häkkinen, quando diz que se um carro está fácil de pilotar então o piloto não está indo rápido o bastante, ou Ingo Hoffmann, quando afirma que um piloto de corridas precisa mesmo tomar sustos constantes, pois do contrário não estará andando no limite.

E aqui, finalmente, chegamos ao ponto que efetivamente nos interessa neste texto. Porque se é verdade que as frases de Häkkinen e Ingo se aplicam a qualquer carro ou moto de corrida sob qualquer regulamento esportivo, é igualmente verdade que há contextos que dão aos pilotos liberdade muito maior para que possam ir fundo na floresta escura, mostrando, visual, auditiva e cronometricamente de que material são feitos e o quanto são melhores que seus adversários.

Na Fórmula 1, é consenso que a maior janela de exploração ofertada aos pilotos se deu durante o conjunto de treinos classificatórios de 1986, quando basicamente tinham quatro voltas rápidas (duas na sexta e duas no sábado, com pneus de classificação) para que pudessem levar o mais longe que fossem capazes carros muito mais destacados pelos aparatos de força do que pelos de controle. Já escrevemos sobre esse momento histórico anteriormente, o período da brutalidade analógica, que gerou máquinas igualmente desafiadoras na motovelocidade, nos ralis, no endurance e mesmo na motonáutica. A respeito dessas máquinas, talvez a definição mais precisa tenha sido dada por Roberto Agresti no imperdível programa que João Carlos Viana, Lucas Giavoni e eu gravamos com ele e com Lucas Carioli em nosso canal no YouTube.

Segundo Agresti os ases que enfrentavam o temperamento das temíveis 500cc de dois tempos nem deveriam ser chamados de pilotos, mas de gestores de crises. Perfeito!

Agora, no entanto, parece importante darmos o passo seguinte, e observarmos, através da forma como restrições exploratórias externas afetaram diferentemente o desempenho de cada piloto, o quanto de risco cada competidor vinha assumindo naquelas voltas assustadoras.

Vale lembrar que quando Senna conquistou sete poles em 1985 e oito em 1986 sem dispor do melhor equipamento do grid, e essa estatística caiu para “apenas” uma pole em 1987, muita gente apressadamente diagnosticou que essa queda de desempenho devia-se à troca do motor Renault pelo Honda, sugerindo que o engenho francês talvez fosse o grande responsável pela rapidez do conjunto Senna-Lotus.

Ora, é evidente que esse é um fator que jamais poderia ser desconsiderado em qualquer análise, mas pessoalmente, inclusive em razão das medições de velocidade, sempre achei muito mais relevante o fato de que a Pirelli abandonou o campeonato mundial ao fim de 1986, fazendo com que a Goodyear aposentasse os pneus de classificação. A partir de 1987 todos os pilotos teriam muito mais tempo de pista nos treinos, matando por completo qualquer vantagem que Senna pudesse obter ao avançar rápida e seguramente pelas fases 1 e 2 da pilotagem (avaliação instintiva e experimentação, respectivamente). Com tempo suficiente para que todos fossem capazes de encontrar os próprios limites, a desvantagem de equipamento dificilmente poderia ser compensada.

Atualmente, contudo, entendo que a introdução das válvulas pop-off, que restringiram a pressão dos turbos a 4 bares, talvez tenha tido tanta influência sobre a hierarquia de desempenhos quanto o cancelamento dos pneus de classificação. Afinal, se é verdade que nunca foi nem nunca será fácil levar um Fórmula 1 ao limite, é igualmente justo reconhecer que as máquinas de 1986, menos estáveis e mais potentes que as do ano posterior, praticamente não impunham limites ao nível de risco que o piloto poderia assumir, a depender da confiança que tivesse nas próprias capacidades.

Certo, mas o que dizem os números, afinal?

Bom, eles dizem, e dizem muito. Em Jacarepaguá, por exemplo, o tempo de Ayrton na classificação em 1987 foi praticamente três segundos mais lento do que havia sido no ano anterior. Para efeito de comparação, Prost foi 1,1s mais lento em 1987, Piquet foi 0,3s mais lento em 87 e Nigel Mansell seguiu o caminho oposto e foi pouco mais de 0,6s mais rápido em 87 do que havia sido na temporada anterior.

Em Jerez, já na fase final da temporada, o cenário não foi muito diferente. Enquanto Senna perdeu cerca de 2,7s em relação ao ano anterior, Prost perdeu 1,7s, Mansell perdeu 0,5s e Piquet perdeu apenas 0,03s. Ora, por mais que a evolução da Williams entre as duas temporadas possa ter sido superior à de McLaren ou Lotus, os indícios são muito fortes de que Ayrton Senna vinha assumindo riscos em 1985 e 1986 muito maiores do que geralmente costumamos avaliar.

Os números falam por si mas, por mais contundentes que sejam, não conseguem expressar com justiça o quão longe um piloto pode precisar ir para obtê-los. Por isso, qualquer entusiasta do esporte a motor com acesso a plataformas de vídeo na internet deveria fazer um favor a si mesmo e tirar um punhado de minutos para contemplar a magnífica volta que assegurou a Senna a pole position no Estoril, em 1986.

A gravação da volta mostra, por exemplo, Ayrton usando sua técnica de acelerador para manter o turbo girando sempre próximo à entrega de torque, controlando, no pedal, a tração sempre próxima do máximo que os pneus eram capazes de entregar. À medida que a borracha se degrada, contudo, a pilotagem vai se tornando mais reativa, trabalhosa e espetacular. Na saída da curva 6, também chamada de Parabólica Interior, Ayrton dá motor com o carro ainda lutando para conservar a trajetória ante toda aquela aceleração lateral, provocando um exuberante – mas eficiente – powerslide. Na freada dos esses, entre as curvas 9 e 10, é possível ver que a estabilidade do início da volta já havia se perdido, e então há a primorosa abordagem à Parabólica, carregando uma velocidade inacreditável em meio a correções de volante e um trabalho frenético de pedais – um espetáculo para ser visto e ouvido.

Aos olhos de quem já experimentou, mesmo que tangencialmente, a sensação de levar um kart a algo próximo de seus limites, é impossível imaginar a frequência cardíaca ou os níveis de adrenalina de um piloto lutando em nível tão elevado contra os próprios instintos de autopreservação.

Forte abraço, e uma ótima semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

9 Comments

  1. Rubergil Jr disse:

    Grande Marcio, excelente texto!
    De fato, é até difícil compreender de onde Senna tirava essas voltas mágicas, e quantas foram! Essa de Estoril, Brands Hatch 85, Monaco 88, Hungaroring 91, Kyalami e Adelaide 93… E muitas outras.
    Eu corro regularmente de Kart Rental aqui em Paulinia-SP, e nessas voltas ao limite de fato nosso coração sai pela boca, não consigo imaginar como seria um F1 “cru”, sem assistência nenhuma, dos anos 80. E detalhe: cada vez que se corre, é um kart diferente, com reações diferentes, com comportamento de pneus, volante e freios diferente, e você precisa aprender rápido e se adaptar logo, é uma baita escola.
    Grande abraço amigo!

    • Grande Rubergil.
      É isso, meu amigo. Quanto mais a gente tem contato com a sensação de buscar os limites, mais nossa perspectiva a respeito desse esporte se altera e enriquece.
      Forte abraço, e escreva sempre.

  2. martim disse:

    Márcio, e o livro sobre o Roberto Moreno tem previsão?

  3. Fernando Marques disse:

    Mrcio,

    andei de kart ano passado … meus niveis de adrenalina foram ao pique e quando a corrida acabou precisei de um tempo ainda sentado no kart para voltar ao normal … foi muito bom …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Pois é, Fernando. A gente fala tanto sobre esporte a motor, mas acho que só quem já teve alguma experiência, ou ao menos viu alguma corrida ao vivo bem perto da pista, consegue lembrar que não são apenas números e estatísticas. A adrenalina, o risco, a superação não apenas fazem parte como são a essência disso tudo.
      Forte abraço, meu amigo.

  4. RAFAEL FRIEDRICH disse:

    Bom dia a todos. Sempre um prazer dedicar meus minutos aos nossos Escribas. Excelente final de semana a todos lembrando que teremos a primeira prova da temporada 2025 da MotoGP.

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