Linhas tortas

O eclipse
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05/08/2011

Hungaroring talvez seja a melhor tradução automobilística daquele ditado segundo o qual Deus escreve certo por linhas tortas.

por Márcio Madeira

Hungaroring talvez seja a melhor tradução automobilística daquele ditado segundo o qual Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal é uma pista estreita, repleta de esquinas e curvas de baixa ou média velocidade, onde o clima – apesar da exceção deste domingo – também não costuma influir. Apenas uma reta não muito longa, precedida por uma curva aerodinâmica que torna bastante difícil qualquer ultrapassagem. E, ainda assim, não raramente este autódromo serve de palco para corridas inesquecíveis.

A edição 2011 da prova talvez não tenha ido tão longe, dada a enormidade de erros de pilotagem que ajudaram a definir o resultado. No entanto, também não se pode dizer que faltaram alternativas ou pontos de interesse. A rigor, o lap chart da corrida remete à leitura de um sismógrafo em meio a um terremoto, tantas foram as mudanças de posicionamento. Vale, então, uma pequena análise sobre como o resultado se formou.

Bom, para começar, há que se frisar que o grande carro do dia era a McLaren. Em configuração de treino a Red Bull certamente tinha condições de brigar – ainda que a 6ª posição de Webber valorize bastante a pole de Vettel –, ao passo que na distância de um GP os prateados simplesmente não tinham um adversário à altura. Uma constatação que, por si só, nos diz muito sobre o quão frenética é a corrida evolutiva nos bastidores da Fórmula 1.

É importante lembrar que um ano atrás, a pista da Hungria foi exatamente aquela na qual os carros de Adrian Newey mais humilharam a concorrência. Apenas no setor intermediário do circuito, o RB6 era capaz de abrir praticamente um segundo inteiro em relação a seus melhores adversários. E então, somente 12 meses mais tarde, McLaren e Ferrari se mostraram capazes de acompanhar – e até superar – a Red Bull naquelas mesmas curvas. Uma recuperação impressionante sob todos os aspectos.

Mas, voltando à realidade da corrida, em condições normais a vitória seria discutida entre Lewis Hamilton e Jenson Button, com ligeira vantagem ao primeiro, tanto pelo ritmo de prova quanto pelo posicionamento inicial. Por isso mesmo, parece haver duas formas distintas e igualmente verdadeiras de se contar a história desta corrida, conforme a trajetória de cada um dos protagonistas. Simplesmente é tão correto afirmar que Jenson venceu com méritos, quanto que Lewis Hamilton jogou a vitória fora.

Começando por Jenson, não pode haver coincidência por trás de sua impressionante sequência de vitórias quando em condições de clima variável – iniciada, vale lembrar, na mesma Hungria, cinco anos atrás. Piloto cerebral e sensível, Button é capaz de ler as mudanças da pista como ninguém, ao mesmo tempo em que conjuga um ritmo competitivo e seguro a um cuidado paternal com os pneus. Indo além, Button se destaca pela coragem de seguir seus instintos em apostas geralmente pioneiras, e pela frieza com que analisa as variáveis sem se deixar levar pelas emoções do momento. Por tudo isso, fez por merecer a vitória em seu 200º Grande Prêmio.

Já Hamilton vive situação diametralmente oposta. Dono de um ritmo de prova nada menos que exuberante, o campeão de 2008 guia com paixão e é muito mais suscetível às flutuações emocionais decorrentes das variáveis de uma corrida. Um quadro que ficou evidente pelo descontrole de suas atitudes, a partir do momento em que rodou, a 22 voltas do final.

Até então Hamilton dava as cartas na corrida, com o mesmo brilhantismo com que havia alcançado uma vitória genial na Alemanha, uma semana antes. É verdade que ainda precisava livrar alguns segundos em relação a Button, em estratégia diferente, mas a diferença no ritmo de ambos sugeria esse desfecho. E era isso: duas vitórias seguidas, dois shows de pilotagem, a resposta às vitórias do velho rival Vettel e às críticas a seu estilo arrojado, o início de uma arrancada arrasadora rumo ao título, o retorno aos tempos de domínio… E o inevitável encontro com a realidade. Sob diversos aspectos, a rodada de Hamilton ecoa a batida de Ayrton Senna em Mônaco, 1988.

Assustado pelo afastamento de sua redenção, Lewis entrou em desespero. Retornou à pista de maneira egoísta, e jogou fora um pódio certo numa aposta suicida em pneus intermediários, quando alguns pingos voltaram a cair sobre o asfalto. Arriscou como se não tivesse nada a perder, dando a mostra exata do valor que (não) dá a qualquer posição que não seja a de vencedor.

Lewis é assumidamente fã de Ayrton Senna. Pois bem: ao longo de 1988, Alain Prost cansou de dar aulas de estratégia ao brasileiro, aproveitando-se justamente da postura passional daquele que era o homem mais rápido do mundo. Senna, no entanto, aprendeu com o francês, e numa certa altura de sua carreira iria se tornar um piloto completo, quase que imbatível. Voltando ao presente, já está passando da hora de Hamilton parar de ser seu próprio adversário.

E quem agradece o presente é Sebastian Vettel. A segunda colocação, à frente de Webber, Alonso e Hamilton, teve sabor de título mundial. Afinal, são 85 pontos de vantagem, restando apenas oito corridas para o fim do mundial. Para efeito de comparação, ele se encontra a apenas 22 pontos dos 256 que, ano passado, lhe valeram o campeonato.

A menos que uma sequência de fatos atinja o piloto tedesco numa escala parecida com o que se passou com Niki Lauda em 1976, o título já tem dono.

Sobre os demais pilotos, não há muito que falar. Fernando Alonso lutou sempre, assumiu riscos, e no fim foi premiado com mais um pódio em sua vitoriosa carreira. Felipe Massa também não andou mal, apesar do erro que novamente deixou seu progresso limitado por conjuntos mais lentos. Sem dispor do mesmo brilho que exibia antes do acidente que quase lhe roubou a vida nesta mesma pista, Felipe ao menos vem andando mais próximo de seu companheiro de equipe. Resta, agora, melhorar o posicionamento em pista, sobretudo nas voltas iniciais dos GPs.

Sobre Rubens Barrichello, sua corrida competente e nos limites daquilo que pode render o Williams tem a propriedade de parecer medíocre, diante das lembranças de atuações épicas do veterano brasileiro em condições similares de pista. Rubens, no entanto, jamais teve equipamento para brigar, e ainda visitou os boxes por cinco vezes durante a prova. Além disso, é justo considerar que a atual geração é uma das melhores de todos os tempos em condições de pista molhada, antes de afirmarmos categoricamente que ele desaprendeu a guiar na chuva.

Sobre a (boa) participação de Bruno Senna no 1º treino livre, torço para que ela não sirva apenas como forma de pressionar Nick Heidfeld, e compensar o brasileiro diante de um possível descarte. Afinal, ao que tudo indica, a dupla da Renault em 2012 terá Vitaly Petrov de um lado, e Robert Kubica ou Romain Grosjean de outro.

Por fim, impossível não dedicar algumas palavras a duas corridas fantásticas, que fizeram aniversário neste fim de semana.

Há exatos 25 anos, justo na primeira edição do GP da Hungria (http://www.ultimavolta.com/formula1/projeto99vitorias/2009_01_21_Triunfo_35.html), tinha lugar a maior ultrapassagem de todos os tempos, assinada pelo gênio de Nelson Piquet. E, também nesta mesma pista cinco anos mais tarde, Ayrton Senna conquistava a vitória mais importante em sua campanha para o tricampeonato, batendo de maneira lendária as Williams de Nigel Mansell e Riccardo Patrese.

Em toda a minha vida, jamais vi um ser humano pilotar como Senna naquele treino de classificação.

 

Uma ótima semana a todos.

 

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

8 Comments

  1. Eduardo Correa disse:

    Márcio

    Parabéns, pela sua coluna Justiça. Repetindo o que disse o leitor Costa Júnior de Montes Claros, meu conterrâneo de Estado, foi perfeita a sua análise. Você conseguiu sintetizar em uma coluna toda uma História de grandes pilotos a partir de 1.978. Acompanho a F-1 há 25 anos e também para mim foi o melhor texto que já li sobre F-1.

    Parabéns mais uma vez e que continue nos presenteando com ótimas colunas!

    Abraços!

    Geraldo Flávio Chaves, Juatuba

  2. Eduardo Correa disse:

    Os Red Bull são carros tão melhores do que os outros que a gente só sente satisfação em ver a tocada do Hamilton e até do Button, superando-se neste GP da Espanha.

    Mas, na verdade, beleza foi mesmo o Alonso nos treinos e na parte inicial do GP, quando tirou do Ferrari o que só ele saberia. Agora, em termos de paradas nos pits, a Scuderia está ridícula, não resta a menor dúvida. Eu não posso acreditar na falta de eficiência que eles demonstram. E niguem fala nada? Fala você aí, Edu, que entende dessas coisas.

    Eu acho que o tal do Sergio Perez vai se tornar logo um cara querido pela galera. Sabe por que? Porque ele acelera!

    Um abraço

    Alexandre, São Paulo

  3. Eduardo Correa disse:

    Ao Marcio da coluna Justiça.

    Só posso te dizer uma coisa: perfeito o seu texto!

    E aos demais colegas do GPTotal, não deixem de ler o texto do colega, pois do meu ponto de vista foi o melhor e mais justo que já vi neste site.

    CostaJúnior, Montes Claros

  4. Eduardo Correa disse:

    Excelente a coluna do Márcio Madeira!

    Mas, vale uma alfinetadazinha: Será que o se o Shumy fosse contemporâneo dos quatro arrebatadores de títulos entre 1985 e 1993 (Piquet, Prost, Mansell e Senna), andaria junto com eles lá na frente? Brigando por poles e vitórias? Sem um carro incomparavelmente superior, como ele guiou nos anos de Ferrari?

    Eu não creio. Pelo menos é o que estamos vendo hoje em dia, o Shumy andando sempre atrás do Rosberg. Alguem CRÊ que ele será campeão novamente, como fez o Lauda na sua volta às pistas? Eu sinceramente não! Só se a Red Bull o contratar com seu melhor carro atualmente, e ainda seu companheiro deixar como fazia o Rubinho, e ainda os demais andarem bem pra trás, porque com a gana de vencer que os atuais pilotos estão, nao seria tão facil!

    Um abraço a todos!

    Clayton Araujo, Salvador

  5. Eduardo Correa disse:

    Parabéns ao Márcio Madeira pela excelente coluna Justiça.

    Um texto grande, repleto de fatos e observações que li tentando entender o sentido do título, e li várias vezes o último parágrafo, um desfecho fantástico.

    Cheguei a lembrar do filme Dúvida, com Meryl Streep e Philip Seymour. Tenho a impressão de que o filme todo, assim como o texto, é uma preparação muito consistente de um final forte e arrebatador.

    Abraço.

    Eduardo Trevisan, São Paulo

  6. Eduardo Correa disse:

    Parabéns ao Márcio Madeira pela coluna Justiça, certamente uma dos melhores textos escritos na GPTotal.

    Vossa análise, caro Márcio, esta precisa. Realmente ouvimos muitos comentários de fãs e, pasmem, de alguns comentaristas, que o Schumacher era o melhor e maior apenas por uma questão de números, desmerecendo gênios incontestáveis do passado.

    A vida dá muitas voltas, poucos têm a sabedoria e humildade para saber que, se hoje somos os melhores, amanhã seremos superados por novos colegas com novas ideias. Tudo muda, tudo caminha para frente e, como disse George Harrison, todas as coisas precisam passar. Schumacher sempre será lembrado como um dos melhores, mas não esta acima de Piquet, Senna, Lauda, Prost e alguns outros. Todos fazem parte do seleto grupo dos melhores de todos os tempos.

    O tempo nos traz grandes novidades, novas músicas, novas ideias, nos tira grandes artistas, pilotos e pessoas que realmente contribuem para um bem estar geral, mas também nos traz o amadurecimento para melhor análise dos fatos.

    Parabéns pela matéria, sem dúvida uma das melhores que ja li.

    Raphael Correia, Recife

  7. Eduardo Correa disse:

    Prezado Marcio Madeira

    Parabéns. A coluna beirou a perfeição. Acompanho o site sempre e essa foi sem dúvida a melhor análise de quem gosta desse esporte. Imparcial ao extremo,sem ufanismos e com critério.

    Parabéns!

    Vinicius dos Reis, Rio de Janeiro

  8. Eduardo Correa disse:

    Prezados Amigos do GPTotal

    Tenho me mantido mais ausente do que gostaria do GPTotal devido há inúmeros compromissos particulares. Porém, não poderia deixar de me manifestar a respeito da excelente coluna, intitulada Justiça, de autoria do Márcio Madeira.

    Ele retrata com precisão a nossa tendência a julgamentos apressados, “decretando” o fracasso o sucesso dos outros, e no caso específico, às carreiras dos Pilotos de Fórmula 1.

    Particularmente, eu admiraria muito mais o piloto Michael Schumacher, se ele próprio não houvesse lançado sérias dúvidas quanto à honradez de suas conquistas. Não que ele não faça jus aos seus títulos de campeão mundial de F1 mas sim, por suas atitudes, muitas vezes condenáveis nas pistas, ou pelo menos, duvidosas .

    O que quero dizer é que para alguém se tornar um verdadeiro ídolo, pelo menos na minha opinião, é necessário ir além dos títulos e conquistas em sua vida esportiva (no caso, sempre mantendo o foco na F1) e demonstrar uma índole ilibada.

    Falando disto, não poderia deixar de citar nosso grande campeão Emerson Fittipaldi que, além de ter tido uma atitude exemplar nas pistas (e até onde sei também fora delas), se dedicou a tal ponto ao sonho de construir o primeiro carro de Fórmula 1 brasileiro que certamente sacrificou grandes possibilidade de acumular títulos de campeão mundial de F1, se considerarmos todos os convites e oportunidades que teve de pilotar para grande equipes, o que certamente lhe daria mais alguns títulos.

    Mas para não ficarmos apenas nos exemplos brasileiros penso ser justo citar o grande Gilles Villenueve, quem sabe o “maior dos campeões sem título”.

    Até hoje ele é reverenciado pelo mundo inteiro, inclusive dentro da própria Ferrari, por suas atitudes combativas em pista e embora muitas vezes temerárias, porém, aconteciam sem manifestar uma tendência maliciosa durantes suas disputas, mas sim o espírito puro da competitividade. E para isto, cito um dos maiores duelos que a F1 já viu (mostrado na coluna Em busca da ultrapassagem perfeita, do Edu), que foi no GP de França em 1979, disputando posição, com o também excelente Renê Arnoux.

    Poderia citar dezenas de nomes de pilotos de F1 que seriam dignos de serem chamados de “campeões sem título” mas a lista seria longa e eu correria o risco de cometer a injustiça do esquecimento de algum nome digno de ser citado, portanto, paro por aqui.

    Concluíndo o que quero dizer, é que um verdadeiro campeão é feito pela soma de suas conquistas com suas atitudes e demonstrações de caráter e diante desta sutil matemática, é lógico que não basta considerar apenas os números alcançados.

    Mais adiante, gostaria de comentar sobre as colunas do Edu, intituladas Em busca da Ultrapassagem Perfeita I e II.

    Forte abraço à Família GPTotal.

    Paulo C. Winckler, Porto Alegre

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