Dentro da vastidão da produção editorial planetária, mesmo o mais antenado e atualizado dos leitores só conseguirá ser exposto a uma ínfima parcela daquilo que é produzido, e terá, assim, seu leque de escolhas reduzido ao universo resultante de filtragens prévias, quer seja por algoritmos ou pelas peneiras do mercado editorial, quase sempre motivadas por interesses mercadológicos. Noutras palavras, o que quero dizer é que certamente existem por aí, em português ou em outros idiomas, livros de tiragens pequenas, sobre assuntos específicos, que certamente seriam de grande interesse para leitores que jamais chegarão a saber sobre mera a existência desse material.
Ainda assim, em raras oportunidades na vida, um livro casa de tal forma com nossos interesses que é possível experimentar a sensação de que estamos lendo exatamente aquilo que teríamos escolhido, caso tivéssemos à nossa frente todas as opções disponíveis no mundo inteiro. E, por sorte, eu estou passando por isso neste exato momento.
Tão logo fiquei sabendo que o grande jornalista e escritor David Tremayne havia publicado uma biografia de luxo do espetacular Jim Clark, por ocasião dos cinquenta anos do falecimento do bicampeão mundial escocês, a leitura deste livro jamais saiu da minha cabeça. Por alguma razão difícil de identificar, Clark é um daqueles pilotos sobre os quais poucos se atreveram a escrever, com o devido aprofundamento. Sou um devorador voraz de biografias, e tenho em minha biblioteca livros que contam a história de diversos pilotos, inclusive do próprio Clark. Mas, até este momento, ainda não havia me deparado com uma biografia à altura de sua história. Longe disso.
Em situações mais convencionais, não existem muitos obstáculos capazes de impedir um leitor de satisfazer seus desejos de leitura. Neste caso específico, no entanto, estamos falando de uma edição de luxo, capa dura, páginas grandes, papel couché de alta gramatura, cujo preço internacional de 120 dólares se torna bastante salgado quando multiplicado pelo câmbio extremamente desfavorável. Mesmo com o frete grátis, na Amazon a importação deste livro não sai por menos de R$ 600, o que representa um valor proibitivo num país em que o salário-mínimo reflete a realidade de parcela tão expressiva da população e corresponde a pouco mais do que isso. Posso assegurar, no entanto, que apesar de todo o sobrepreço imposto ao cidadão brasileiro no momento de consumir, mesmo aqui o livro vale cada centavo pago por ele, desde que o leitor seja fluente em inglês (o vocabulário é um tanto rebuscado) e, claro, se interesse suficientemente pelo automobilismo e sua história.
Ao reproduzir logo no título a frase de Ayrton Senna, para quem Clark teria sido “o melhor dos melhores”, Tremayne assume, de maneira muito honesta, sua opinião de que Jimmy foi sim o melhor piloto que o esporte já viu. Todavia, em momento algum da narrativa o autor faz qualquer esforço por convencer o leitor a respeito dessa sua avaliação. Em vez disso, Tremayne limita-se a fornecer um contexto sempre aprofundado a respeito de cada corrida, cada fase, cada resultado, dando ao leitor o devido espaço para ir se impressionando por conta própria, e ir formando (ou alterando) paulatinamente sua visão a respeito do piloto.
Tenho ciência de que meu conhecimento a respeito do automobilismo esportivo condiz com o de alguém que há décadas pesquisa a história do esporte. Ainda assim, nas mais de 500 páginas ricamente ilustradas deste livro tão especial encontrei um Jim Clark diferente daquele que esperava. Um piloto que, a despeito dos desempenhos e resultados soberbos, precisou de ao menos cinco anos para se permitir desenvolver a autoconfiança necessária para alçar voos na altitude rarefeita que seu imenso talento era capaz de alcançar. Da mesma forma, li sobre mais erros de pilotagem do que imaginava encontrar (a bem da verdade, até a leitura deste livro eu tinha conhecimento sobre apenas um), ainda que eles se concentrem quase que exclusivamente nos primeiros anos da carreira.
E quando o leitor quase começa a se questionar, afinal, por que tantos consideram Clark a referência ante a qual todos os demais pilotos devem ser medidos, os detalhes a respeito da fase madura de sua pilotagem, das atuações inacreditáveis por trás de resultados quase sempre simplificadores, tratam de estabelecer, sem espaço para dúvidas, o quão forte ele conseguiu se tornar, mesmo quando comparado diretamente a alguns dos maiores talentos que o mundo já viu.
Ainda assim, e apesar de todos os detalhes que só fazem engrandecer sua carreira na Fórmula 1 (especialmente num momento em que tantos avaliam a dimensão histórica de pilotos com base apenas em seus números absolutos), é nas demais categorias, na imensa variedade de carros que guiou com igual brilhantismo, que reside seu maior trunfo esportivo. Em especial nas corridas de monopostos nos Estados Unidos, e não apenas em Indianápolis. Porque em dado momento o leitor começa a se dar conta de que, a despeito da amostragem muito menor, Jimmy foi igualmente dominador na América, e não deixou dúvidas de que, também lá, poderia ter sido apontado como referência de eficiência ao volante.
Ao mergulhar nos detalhes destas corridas o leitor aos poucos acorda para o fato de que Clark tem lugar assegurado entre os melhores pilotos que já guiaram na Brickyard, tendo apresentado desempenho potencialmente vitorioso em quatro das cinco edições que disputou. E que na Usac tanto ele quanto Colin Chapman estavam também um ou dois degraus acima da concorrência, exceto, talvez, no que se refere à confiabilidade mecânica.
Por fim, mas não menos importante, o autor faz questão de dar o devido destaque à personalidade de Clark, seu cavalheirismo, sua simplicidade, sua ética pessoal e profissional, sua correção quando em meio a disputas nas quais o desejo de vencer não poderia ser maior do que o respeito pela vida alheia. A rigor, tais traços de caráter são assumidamente decisivos para que o biógrafo tenha tanta admiração e respeito pela história de seu biografado.
Em meio a meus esforços para ler este livro sem comprometer demasiadamente um orçamento geralmente apertado, entrei em contato com David a fim de perguntar sobre a existência de uma versão em e-book. A frustração de saber que tal versão inexiste, contudo, foi largamente compensada pela enorme atenção que o autor me dedicou, e que evoluiu para algo que me permito chamar de amizade.
Percebi, antes mesmo de ter o livro em mãos, que esta obra é, de fato, o resultado da ligação e da colaboração entre duas pessoas especiais, biógrafo e biografado, cujas afinidades de caráter e de amor ao automobilismo foram fortes demais para que pudessem ser impedidas pelo distanciamento temporal. Uma constatação que foi confirmada da maneira mais sublime em junho deste ano quando o livro finalmente chegou e, para minha enorme surpresa, trazia uma bela dedicatória escrita em português!
Intimamente – que David me perdoe – continuo acreditando que Fangio esteja um degrau acima de qualquer outro piloto que já existiu. Mas não hesito em afirmar que a parceria que Clark veio a estabelecer com Tremayne exatos 50 anos após a sua morte prematura, a exemplo daquela que estabeleceu em vida com Colin Chapman, merece sim ser chamada, em sua respectiva área de atuação, como a melhor das melhores.
Muito obrigado, David.
Márcio Madeira
3 Comments
Que texto. Que livro. Que dedicatória!
E sim, aguardamos a biografia do Moreno.
Grande abraço.
Márcio,
Aproveita e conta as boas histórias do Jim Ckarck aqui no Gepeto.
Desde que acompanho a fórmula 1, sempre me impressionou tudo o de bom que Jimmy fez nada pistas.
Fernando Marques
Niterói RJ
Bom dia Márcio,
E o livro do Roberto? Estamos aguardando ansiosos.
Cordialmente