Memória resgatada

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Temos uma estranha tendência – e isso se dá em vários âmbitos da vida – de selecionar nossas lembranças. E aqui não falo apenas de separar aquelas que sejam boas, até porque não temos um controle ativo sobre o subconsciente, mas de realmente enfatizar aquelas que mais nos foram marcantes (às vezes, num sentido negativo) e apagar outras coisas que aconteceram em época próxima, em contextos parecidos, e que eventualmente colocariam em cheque a precisão dessas recordações. A isso se dá o nome de memória afetiva.

Um conceito parecido, se dá com relação às informações que absorvemos ao longo dos anos, às coisas que assistimos (in loco, através de meios de comunicação ou como ouvintes de terceiros) e aos fatos que nos são apresentados. De alguma maneira – de novo impulsionados pelo subconsciente, e empurrados pela questão afetiva (aquilo que nos afeta) –, fazemos uma seleção, uma separação e uma escolha. Sem perceber, a partir de então lançamos nossa própria interpretação, excluímos o que não interessa e até mesmo inserimos elementos que não estavam presentes inicialmente. A isso chamamos memória seletiva.

Parece um papo meio sem nexo para um site de automobilismo (e eu sei que passaria ainda mais vergonha se isso fosse publicado num veículo da área da Psicologia), mas já vou chegar lá.

Tenho atacado de youtuber. Alguns de vocês provavelmente tenham visto o vídeo que publiquei aqui no Gepeto uns meses atrás, comparando o tamanho histórico de Lewis Hamilton e Michael Schumacher. Um dos que publiquei mais recentemente foi falando sobre as maiores “voltas por cima” da história do esporte. Casos de atletas que eram vistos como carta fora do baralho e não apenas se recuperaram, mas superaram todas as expectativas, atuando no mais alto nível – por vezes, até melhor que antes.

Minha conclusão inicial sobre qual seria o maior caso não foi alterada: é Niki Lauda. Mas aos quatro ou cinco casos que eu mais lembrava, tive de adicionar uma série de outros, constatados em breves pesquisas, e os quase 50 minutos de vídeo não foram suficientes para abordar N outros. Esqueci até mesmo do lendário Michael Doohan. Fui traído pela memória seletiva.

Lembro de vários flashes das sessões de treinos em Imola, 1994, mas muita coisa – já passados 26 anos do fato e eu ainda uma criança de 8 anos quando do ocorrido – fica misturada, fazendo um combo de memória seletiva com afetiva. Tinha pra mim que Senna não tinha voltado à pista após a batida de Rubinho. Imaginava que seus tempos de volta foram marcados em momentos separados, e que, de alguma maneira, ele tivesse, digamos, se beneficiado da diminuição de tempo das sessões, os outros pilotos não podendo atingir o ideal de seus conjuntos.

No entanto, revendo toda a sequência dos treinos de sexta e sábado, pude revisitar minhas memórias, reavaliá-las, como fiz no vídeo dos atletas.

Rubinho sofre aquele terrível acidente coisa de 10 segundos (!) depois de Senna registrar o melhor tempo até então (superando Schumacher em 0,143s). A sessão é interrompida. Muito tempo dedicado (na própria transmissão de TV) ao atendimento a Rubens. Nesse momento, boxes cheios e pilotos recolhidos, Senna provavelmente era informado do que acontecera com o amigo, mas, diferentemente do que fizera na Espanha, 4 anos antes, e do que faria no dia seguinte, não pôde ir ao local averiguar condições do piloto e circunstâncias da batida. O faria horas mais tarde, já no hospital – inesquecível sua entrevista, quase gaguejando, repetindo “ele tá bem”.

Retomada a sessão, Berger implode o tempo de Ayrton, chegando a 1min22seg113, mais de 3 décimos melhor do que o anotado pelo brasileiro. Schumacher vai à pista e roda – a memória seletiva apaga este fato –, como já haviam rodado Hill, De Cesaris e Hakkinen. Mas em volta rápida na sequência supera Berger em quase um décimo: 1min22seg015.

Senna vai então à pista, e naquilo que aparentava ser sua primeira volta rápida, passa mais de dois segundos acima do tempo de Schumacher. A transmissão não parece entender que Ayrton já emendaria outra flying lap, e só vai mostrar seu tempo quando ele está na sequência final de curvas, provavelmente ficara claro que o tempo era excelente. Ele crava 1min21seg837.

Ele vem para outra volta rápida tão logo cruza a linha de chegada, e escapa no exato ponto onde Schumacher rodara – e isso a memória afetiva não gosta de destacar.  Senna faz sua desaceleração, e pouco tempo depois já parte novamente para a volta rápida. E desta vez marca absurdos 1min21seg548. Três décimos melhor do que si mesmo, meio segundo abaixo do tempo de Schumy. Ele dá mais uma volta na sequência, e a filmagem foi onboard, mas não temos o tempo registrado – certamente, ficou aquém do absurdo que ele mesmo acabara de protagonizar.

Senna não participaria da sessão de treinos no sábado – aliás, ele só voltaria a pilotar já no domingo da corrida, no saudoso “warm up” (por óbvio, quem fez a melhor volta?). Mas, mesmo em uma hora de treinos, ninguém se aproximou de seu tempo. Schumacher superou a si mesmo e cravou 1min21seg885, ainda 0.048 acima daquele tempo de Senna na retomada da sessão após a batida de Barrichello.

Resulta, pois, que Senna cravou, apenas na sequência do acidente de Rubinho, na sexta-feira, os dois melhores tempos oficiais. Houve um terceiro tempo, também dele, assinalado nos “treinos livres”, que foi o segundo mais rápido de todo o fim de semana: 1min21seg598.

Mais uma vez a memória seletiva me traiu: eu subestimei Ayrton Senna.

Marcel Pilatti

leia também: “A última obra-prima de Ayrton Senna“.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

3 Comments

  1. […] marcou a pole em Imola, 30 anos atrás – relembre aqui -, Senna chegava à sua oitava largada em primeiro no Autódromo Enzo e Dino Ferrari. Em 2004, […]

  2. Fernando marques disse:

    Show

    Fernando Marques

    Niterói RJ

  3. Mauro Santana disse:

    Fantástica lembrança, Marcel!

    E esta entrevista que ele deu após visitar Barrichello no ambulatório do autódromo, foi a ultima entrevista que ele deu para RG.

    Parabéns pelo excelente texto.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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