Ao ser questionado sobre o resultado do GP da França em 1979, o entrevistado repetiu a pergunta de forma pausada e pensativa: “Qual foi o melhor dia da minha carreira?”
Jean-Pierre Jabouille não titubeou muito quando respondeu. “Não tenho dúvida em Dijon. Para mim, tudo se encaixou naquela corrida: primeira vitória da Renault em um Grande Prêmio, primeira vitória minha em um Grande Prêmio, pole position… e na França! Fantástico, sério. Todo mundo sonha com isso, não é?”
Jabouille sempre teve na expressão facial uma cara de quem passou por muitos contratempos, e sua carreira foi recheada de muitos.
Após responder ele ficou novamente em silêncio por alguns segundos e comentou em seguida. “O triste para mim”, disse com um ar emblemático.
“é que ninguém se lembra de quem venceu o Grande Prêmio da França em 1979, apenas da briga pelo segundo lugar! Mesmo uma hora depois da corrida, eu senti isso, achei pouca a atenção que me davam. E quando vi o vídeo das voltas finais, não fiquei surpreso…”
Mario Andretti, num estilo um pouco mais direto e sem melancolia, sempre sentiu o mesmo em relação à Fuji 1976: “Eu ganhei a corrida, certo? Minha primeira em uma Lotus – um grande dia para mim.” Mas quem mais se lembra? Logo depois, estou na garagem, e tudo o que todo mundo está dizendo é como o Niki desistiu e o Hunt ganhou aquele campeonato!”
O Grande Prêmio do Japão de 1976, no entanto, foi uma coisa, e num outro momento voltamos para conversar sobre essa corrida.
Hoje nosso tema é sobre o GP da França de 1979, corrida que entrou para os anais épicos do automobilismo, e não por conta de seu vencedor e o significado daquela vitória, vale lembrar que além de ser a primeira vitória de Jabouille, Dijon marcou a primeira vitória de um carro com motor turbo na Fórmula 1, a lembrança é sempre pela batalha que aconteceu pelo segundo lugar.
Nos minutos finais da corrida na França, David Hobbs, então comentarista de TV que transmitia a corrida, ficou praticamente sem palavras.
“Nunca, nunca, vi nada parecido na minha vida, ao menos em carros monopostos, na verdade quem pensaria que aqueles dois estavam em carros de corrida e ainda mais Fórmula 1!”
Quando René Arnoux se aposentou, no final de 1989, histórias foram escritas sobre sua longa carreira, sua origem na classe trabalhadora, sua luta pela ascensão, temporadas na vanguarda da Fórmula 1 com a Renault e a Ferrari, anos de declínio com a Ligier. Homenagens apropriadas foram prestadas às suas sete vitórias em Grandes Prêmios, mas nenhuma delas vem imediatamente à mente ao mencionar seu nome.
Não, para sempre, Arnoux sempre será lembrado por Dijon 1979, por sua batalha com Gilles Villeneuve.
Na temporada de 1979 a corrida na França era a oitava etapa do Campeonato Mundial e, quando chegaram ao Grande Prêmio, Jody Scheckter da Ferrari liderava por pontos, seguido por Jacques Laffite da Ligier e em terceira vinha Gilles Villeneuve da Ferrari.
A temporada tinha sido estranha até então. A Lotus, dominante no ano anterior, estava com péssimos resultados e estava fora do páreo, nas duas primeiras corridas do ano, na Argentina e no Brasil, foram facilmente vencidas pelo Ligier JS11 de Jacques Laffite, que começou o ano com muita eficácia no recente e novo “efeito solo”. Então, em Kyalami, o novo modelo 312 T4 da Ferrari apareceu, e Villeneuve e Scheckter terminaram em dobradinha, resultado que repetiram na prova seguinte em Long Beach. Em Zolder na Bélgica foi a vez de Jody Scheckter, mais pela confiabilidade do carro do que pelo ritmo, mas em Monte Carlo ele venceu com folga.
A única exceção no domínio do trio Scheckter, Laffite e Villeneuve ocorreu em Jarama, onde Depailler, companheiro de equipe de Laffite na Ligier, ganhou.
Mas na França Depailler estava fora da corrida, internado em um hospital de Paris com ferimentos graves nas pernas após um acidente de asa-delta.
Uma nova ameaça ao trio Jody, Jacques e Gilles apareceu na Bélgica veio do novo Williams FW07 de Patrick Head, tudo levava a crer que seria uma questão de tempo aquele modelo vencer a uma corrida em breve, com Alan Jones. E a Renault, naquela época, ainda era a única equipe turbo capaz de ser uma ameaça em qualquer circuito com retas dignas desse nome. Dijon na França era uma delas.
Confiabilidade à parte, o atraso na resposta do acelerador ainda era o problema constante da Renault. Em Mônaco, Arnoux e Jabouille ocupavam a última fila do grid, algo constrangedor em qualquer lugar, mas especialmente em uma corrida francesa. Uma boa exibição em Dijon era vital para a equipe.
E lá em Dijon o grid virou ao avesso, desta vez, os carros amarelos ficaram com a primeira fila só para eles.
Os Renaults estavam equipados com dois turbocompressores KKK, que melhoraram significativamente o torque e, mais importante, a resposta do acelerador.
Com sua vantagem de potência, eles podiam usar mais asa do que os demais e pareciam estar em uma categoria à parte, até Villeneuve conseguir uma impressionante volta na classificação para se juntar a eles na casa de tempo de 1m07s. Ninguém mais chegou perto. Era um prenuncio que aquela corrida seria Villeneuve contra o time da casa.
Villeneuve falou após a classificação: “Eles são apenas dois ou três décimos mais rápidos do que eu em velocidade, o que é geralmente cerca de 15 km/h, então eles estão usando muita asa. É aí que eles estão recuperando tempo – nas curvas.”
“Preciso de uma vitória aqui”, continuou Villeneuve, “para diminuir a diferença para Jody. Não estou interessado em três ou quatro pontos. Se Jabouille assumir a liderança, acho que será impossível alcançá-lo, então preciso fazer uma boa largada, e de alguma forma, preciso pelo menos dividir os Renault na primeira volta”.
A estratégia de Villeneuve fazia muito sentido para as pretensões dele ao campeonato de pilotos, e arrojado como ele era ninguém o faria pensar diferente
Quando veio a largada ele se saiu melhor do que o esperado. Os dois carros amarelos se saíram razoavelmente bem, mas Villeneuve os ultrapassou na reta final para a primeira curva. E uma troca de marcha errada fez Arnoux cair para a nona posição.
Nas voltas iniciais, Gilles estava determinado e em sua forma e estilo mais puro, fugindo de Jabouille a um segundo por volta.
Comentário dele após a corrida: “Avançar era tudo o que eu podia fazer. Tínhamos muito pouca pressão aerodinâmica e eu sabia que estava prejudicando os Michelins, mas qual era a alternativa? Correr em terceiro o tempo todo e dormir?”
Nesse aspecto existem pessoas que pilotam carros de corrida e há pilotos de corrida, e é essa mentalidade que produz momentos que deliciam a nossa memória
O Grande Prêmio da França finalmente tomou o contorno do resultado por vir na volta 15. A liderança ainda era de Villeneuve, seguido de Jabouille, mas agora Arnoux assumia a terceira posição, tendo ultrapassado Jones, Laffite, Lauda, Jarier, Piquet e Scheckter, essas ultrapassagens foram conseguidas com relativamente facilidade na medida em que ele aproveitou muito bem a força de seu Renault.
Para Villeneuve naquela altura o prognóstico não era bom. Restavam sessenta e cinco voltas, e ele não tinha carro para manter um ritmo tão feroz como ele estava impondo. Mesmo assim, ele continuou avançando e forçando.
“Se você conseguir abrir vantagem”, disse ele, “pode desestabilizar o adversário, fazendo com que ele se pressione.”
Por outro lado, Jabouille estava tranquilo, ele mantinha um ritmo dosando a corrida como um pescador dedicado, paciente ele ia jogando a linha, puxando a linha. Ele sabia da extensão da superioridade de seu Renault e conseguia manter a diferença sobre a Ferrari sem entrar em uma seara de desgastar seu carro
À medida que a marca de 30 voltas se aproximava, a liderança de Villeneuve foi diminuindo: “Olhei pelos meus retrovisores e vi que a proximidade de Jabouille estava diminuindo e que logo teria companhia…”
Aproveitando oportunidades incríveis em meio ao tráfego irregular dos retardatários, Villeneuve abriu vantagem para quatro segundos novamente, mas no meio da corrida seus pneus já haviam ultrapassado o limite razoável e estavam bem desgastados, a partir daí seu carro passou a ter um comportamento irregular nas curvas. Nas curvas para a direita o carro ficou com subviragem e nas curvas para a esquerda sobreviragem, poucos pilotos conseguiriam manter um ritmo forte numa condição dessa, Villeneuve sem dúvida era um.
Na volta 46, Villeneuve não tinha mais cartas na manga, e finalmente Jabouille o ultrapassou no final da reta.
Jabouille comentou: “Percebi que os pneus dele estavam acabados quando o ultrapassei. Como ele terminou com eles, nunca consegui entender.”
No box da Ferrari, eles estavam preparando novos Michelins para Villeneuve, pois Scheckter — que rodava em um ritmo bem inferior de seu companheiro de equipe — já estava sinalizando que precisava de uma parada, só que Scheckter estava tão isolado na quarta posição que foi dosando o ritmo para terminar sem a troca.
Mas Villeneuve ficou na segunda posição e pensou, tudo bem, nada podia ser feito contra Jabouille, mas agora Arnoux estava diminuindo os 15 segundos que o separavam e ele começou a manter o ritmo que podia, ele queria chegar em segundo
Faltando 10 voltas para o fim, René havia reduzido a diferença para quatro segundos, e Villeneuve parecia uma presa fácil. Ao entrarem nas últimas cinco voltas, os carros eram um só de tão colados que estavam.
Os minutos finais daquela corrida em Dijon são indescritíveis. No final da volta 70, Arnoux passou na frente, e nas arquibancadas reinava o delírio.
Seria isso? Villeneuve havia levado a batalha contra os Renaults ao extremo, e sua aposta havia fracassado.
Mas Villeneuve não era assim. “Quando René me ultrapassou”, disse ele, “pensei que ele ia fugir na reta, como Jabouille. Minha Ferrari estava com uma dirigibilidade péssima, mas ainda assim consegui me manter colado a ele — então ele também devia ter um problema.”
Sim é verdade que Arnoux estava com um problema. Em formas diferentes ambos enfrentaram seus problemas e iniciaram o maior espetáculo já produzido por dois pilotos, uma batalha a cada metro nas últimas cinco voltas
Nas voltas finais, o injetor de combustível do Renault começou a falhar um pouco. “Pensei em tentar passa-lo de volta o mais rápido possível”, explicou Gilles, “porque ele não estaria esperando por isso. No final da reta dos boxes, eu não estava perto o suficiente, mas fui para o interior e deixei a frenagem muito, muito, tarde…”
Fumaça saiu dos quatro pneus enquanto a Ferrari se arrastava para dentro do Renault, e eles contornaram a curva da direita lado a lado.
Ninguém — nem mesmo os próprios pilotos — após a corrida sabia ao certo quantas vezes, naquelas últimas voltas, os dois carros se cruzaram e se tocaram, quantas vezes bateram as rodas, deslizaram para fora da pista, saíram da pista, se encontraram novamente, se tocaram novamente.
Foi uma catarse de uma forma talvez nunca vista na Fórmula 1 antes ou depois, na época assisti essa corrida e fiquei de pé na frente da TV, era algo surreal.
Na metade da volta final, com a multidão francesa em frenesi pela provável dobradinha, Arnoux parecia ter conseguido.
Na curva fechada que antecedia a reta dos boxes, ele se sentiu suficientemente confiante em sua vantagem para entrar uma linha larga e convencional.
Villeneuve, freando mais tarde do que tarde, para lá do tarde, colocou a Ferrari naquela porta aberta. A questão estava resolvida.
Em meio a tudo isso, 15 segundos à frente, Jabouille se aproximava de uma vitória memorável, mas sua tragédia era que todos olhavam para trás, esperando, esperando, Jabouille já passeava e ninguém olhava para ele.
Então, o vermelho e o amarelo passaram sobre a linha. E enquanto eles se aproximavam na volta de desaceleração, Villeneuve acenou com um aceno de respeito camarada, imediatamente reconhecido por Arnoux.
Não deveríamos ter esperado outra coisa. Tinha sido louco, selvagem e frenético, mas também foi limpo. “Não sei quantas vezes nos tocamos”, disse Villeneuve, “mas sei que não aconteceu nada de mais porque nenhum de nós estava tentando tirar o outro da pista”.
“Foi divertido!”, ele riu. “Uma verdadeira batalha. Às vezes eu tinha certeza de que íamos acabar batendo, sabe, porque quando você começa a travar as rodas, é muito fácil um carro passar por cima do outro. Mas não batemos; foi tranquilo, e quer saber nunca gostei tanto de uma corrida.”
Arnoux disse o mesmo e sempre relembra esse episódio com satisfação.
Em Silverstone, a corrida seguinte, Villeneuve e Arnoux foram questionados em uma reunião da Associação de Pilotos de Grande Prêmio por uma seleção de veteranos da Fórmula 1. Lauda, Fittipaldi, Scheckter e outros os chamaram de irresponsáveis, estúpidos.
Gilles comentou secamente depois, “o que diabos eles queriam? De onde eles tiraram essas bobagens. Eu não conseguia acreditar no que eles me diziam. Meu Deus, eles deveriam ser pilotos de corrida…”
Mário Andretti, previsivelmente, não estava entre os críticos. Como um piloto raiz, suas palavras foram rápidas e diretas.
“Nada com que se preocupar, eles são só dois jovens leões se agarrando, afinal corrida de carros são isso”
Resposta perfeita de Andretti
Essa corrida produziu em seus três protagonistas lembranças distintas, para Jabouille o gosto amargo de num momento tão especial ter sido relegado a um segundo plano, para Villeneuve e Arnoux a doce lembrança de terem protagonizado um momento que até hoje é lembrado
E até hoje tantos anos depois, nunca mais vimos nada parecido.
Até a próxima
Mário Salustiano
3 Comments
Pois é, hoje em dia ficam chorando no rádio pedindo para passar. Acompanho a F1 desde sempre e hoje ter uma disputa assim é inimaginável. Bom fim de semana a todos.
Lembro ali por 2004, logo que pude ter acesso a internet, não me lembro bem se recebi o vídeo por email ou se já era Youtube… esta ultrapassagem me marcou, até porque desde 97 que acaompanhava F1 nunca tinha presenciado algo daquele jeito.
Me identifiquei muito com aquilo pois eu era jogador de futebol de rua, estava habituado a levar uns trancos e pancadas, mas permanecer em pé tentando terminar a jogada, e aqui que via, era algo perto disso rsrs
Mario,
que bela e inesquecível lembrança de uma “batalha esportiva” promovida pelo Gilles Villenueve e René Arnoux que tirou dos holofotes a primeira vitória de Jabouille e da Renault na Formula 1 … uma disputa por posição tão épica, tão eletrizante e que no fim os protagonistas se abraçaram e cumprimentaram após a corrida … imagina o mimimi que seria se isso acontecesse na Formula 1 atual …
“Em Silverstone, a corrida seguinte, Villeneuve e Arnoux foram questionados em uma reunião da Associação de Pilotos de Grande Prêmio por uma seleção de veteranos da Fórmula 1. Lauda, Fittipaldi, Scheckter e outros os chamaram de irresponsáveis, estúpidos.” … me faz lembrar que em 1978 em Monza os mesmos acusaram (inclusive o Andretti) o Ricardo Patresi de ter provocado o acidente que acabou vitimando o Ronnie Perterson e a batalha que Patresi travou para provar na justiça que não tinha sido ele o responsável …
Em ambos os casos nenhum deles jamais falaram em publico que estavam errados em relação a postura que tomaram
Fernando Marques
Niterói RJ