Era sábado, a pista estava completamente encharcada e sob uma inclemente e pertinaz chuva. A montanha, com suas perpétuas neves, presidia, indiferente, tudo o que acontecia lá embaixo aos seus pés, no circuito que haviam batizado com o seu nome: Monte Fuji.
Aquele seria o primeiro GP do Japão. Era 1976 e a corrida devia dirimir o título entre Niki Lauda e James Hunt. O austríaco chegava ao Japão com 68 pontos no campeonato, ante 65 de Hunt. No entanto, os pilotos não pareciam nada satisfeitos com a situação da pista. Mas, com certas objeções, iniciam os treinamentos.
No dia seguinte, o domingo da corrida, 24 de novembro, tal como havia sido previsto, as condições meteorológicas são ainda piores. Durante o warm-up vários pilotos derrapam violentamente e Larry Perkins inclusive arrebenta o seu Brabham nos guard rails. Assim, logo germina entre os pilotos um sentimento contrário à disputa da corrida. Vários se manifestam favoráveis ao cancelamento da prova, entre eles Hunt. Lauda chega a dizer que, naquelas condições, não correria.
Aproveitando a aparente disposição dos pilotos de não correr sob condições tão adversas, Danielle Audetto, então manager da Ferrari, após conversar com Lauda, decide convocar uma reunião entre os pilotos e o diretor da prova, em busca de um acordo para suspender a corrida. Audetto estava convencido de que, com o apoio dos top-drivers, isso seria possível. Além de Lauda, Emerson Fittipaldi, José Carlos Pace, Perkins e Hunt já haviam mostrado intenção de não correr.
Quanto aos demais pilotos, Audetto era otimista. Clay Regazzoni era membro da sua equipe; Mario Andretti, como piloto formado nos Estados Unidos, não gostava nada de correr em pista molhada; Ronnie Peterson e Jody Scheckter também eram dos que nas gostavam de água e, além do mais, já não tinham nada em jogo naquela corrida e estavam trocando de equipes para a temporada seguinte. Os demais pilotos, sabia Audetto, não tinham suficiente relevância para influir na decisão final e fariam o que os top-drivers decidissem.
De acordo com o diretor da prova, Audetto começa a convocar os pilotos. Porém, Hunt declina de comparecer à reunião. O inglês lhe diz que estava sendo fortemente pressionado a correr mas também lhe assegura que acataria a decisão que fosse tomada pelo resto de pilotos.
A reunião começa e, como já se sabia, Fittipaldi, Lauda, Pace e Perkins reafirmam a sua intenção de não correr. Porém, e para surpresa de Audetto, Regazzoni se mostra partidário de que a corrida se celebre, assim como Andretti que, inclusive, logo depois declararia estar disposto a correr até nas neves do Fuji-yama.
Contudo, Peterson é quem mais se mostrava contrário à ideia de cancelar a corrida. Dentre os demais pilotos, a proposta de cancelamento também não encontrou muito apoio: Depailler, Jarier, Merzario, Pryce e, principalmente, Brambilla, não a apoiavam. Quanto aos japoneses Hasemi, Takahara e Hishine, é lógico pensar que para eles seria uma desonra negar-se a participar no seu próprio GP.
Sem consenso entre os top-drivers, as discussões se prolongam, até que chega a notícia que, definitivamente, inclinaria a balança a favor da disputa do GP: o circuito estava lotado e milhões de espectadores estavam perante os seus televisores esperando a transmissão da corrida.
Com uma hora e meia de atraso, o diretor da prova autoriza a largada. Andretti, o poleman, é superado por Hunt enquanto Lauda, que estava na segunda fila, perde varias posições.
Hunt, como vinha sendo habitual durante toda a temporada, se lança com decisão em busca da vitória, seguido por Watson e Andretti. Lauda se retiraria na segunda volta, quando se encontrava em décimo lugar. Pouco depois, seria Perkins quem se retirava. Pace e Fittipaldi também se retirariam na volta 8 e 10, respectivamente.
Hunt seguia destacando-se na liderança porém, na metade da prova, a chuva começa a amainar e, pouco depois, conforme a pista secava, os seus pneus se degradavam mais e mais. Na volta 61, faltando doze para a bandeirada – e o título -, com os pneus no fim da picada, Hunt cede a liderança a Depailler. Pouco depois, Andretti lhe arrebata o segundo lugar. O terceiro lugar era suficiente para Hunt se proclamar campeão – Alan Jones e Regazzoni, que vinham a seguir, estavam muito longe. Mas, faltando apenas 5 voltas, o pneu dianteiro esquerdo de Hunt, já bastante castigado, não resiste mais e estoura.
Ele consegue chegar ao box mas perde muito tempo na troca dos pneus, voltando à pista atrás de Regazzoni e Jones. Na Ferrari, todos se sentiam aliviados pois isto dava o título a Lauda e, além do mais, Regazzoni era um osso duro de roer nas ultrapassagens. Alguns já festejavam o título de Lauda.
Porém Hunt, que simplesmente não sabia em que posição se encontrava devido ao nervosismo daqueles momentos, se lança a uma frenética perseguição dos pontos necessários para ser campeão. Rapidamente, alcança o suíço… que não oferece nenhuma resistência à ultrapassagem. Na volta seguinte seria Jones quem, também, seria superado com facilidade.
À frente de Hunt estavam apenas Depailler, que também tinha entrado no box para trocar um pneu, e Andretti. O americano havia mantido um ritmo conservador durante todo o GP, o que lhe terminaria dando a vitória.
Mas restava por explicar os muitos mistérios que cercaram esta estranha e surpreendente corrida. Por que alguns pilotos acabaram correndo, mesmo depois de se dizerem contrários à realização da corrida? Por que, em na fase decisiva da prova, tantos pilotos perderam misteriosamente a combatividade?
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A temporada de 76 havia terminado e Hunt era o novo campeão. Porém, o acontecido na reunião previa à corrida e, depois, na pista, é algo que deixou algumas dúvidas pairando no ar: por que alguns pilotos tinham tanto interesse em correr? Por que a falta de combatividade de Regazzoni e Jones?
Com o passar do tempo, tudo foi sendo esquecido. Vários dos principais protagonistas daquela corrida sequer se encontram entre nós (Hunt, Brambilla, Pryce, Depailler, Pace e Nilsson). Contudo, com base em informações dispersas, é possível encontrar algumas possíveis explicações ao comportamento dos pilotos implicados naqueles acontecimentos:
– Clay Regazzoni – O suíço havia sido contratado pela Ferrari no fim de 1973 como primeiro piloto. Ee já havia estado na equipe e era muito querido por todos. Para o lugar de segundo piloto, a equipe ainda não havia tomado uma decisão e Clay lhes recomenda Niki Lauda, seu companheiro na BRM. Lauda, não era um dos pilotos pretendidos pela Ferrari, mas confiam em Clay e contratam o austríaco.
Mas Lauda logo se converteria no pior rival do colega de equipe. Talvez se Lauda tivesse sido minimamente agradecido ao suíço, este teria sido campeão em 1974. Clay se sentia profundamente decepcionado com Lauda desde então e sabia que não seguiria na equipe em 1977. Segundo alguns, ele também culpava Lauda disto.
– Ronnie Peterson – O sueco também tinha motivos para desprezar Lauda. Peterson havia sido o escolhido para ocupar o lugar de Regazzoni em 1977. O acidente de Lauda em Nurburgring, meses antes do GP do Japão, precipitou as negociações e um acordo já havia sido alcançado para a sua imediata incorporação à equipe. Mas quando Lauda ficou sabendo disso fez de tudo para impedir a contratação de Ronnie. Dizem até que, estando ainda convalescente, Lauda conversou com Giavanni Agnelli, o presidente da Fiat, para evitar a entrada do sueco na equipe.
Quando Ronnie foi a Maranello para assinar o contrato, lhe disseram que haviam reconsiderado a decisão pois Lauda não o que queria na equipe. O sueco, completamente abatido, teve de ir embora com as mãos vazias.
– Jean Pierre Jarier – Os motivos de Jarier talvez sejam menos evidentes mas se parecem aos de Peterson: em 1973, Jarier vence o campeonato de Fórmula 2 com absoluta autoridade, logo adquirindo fama de ser um dos pilotos mais rápidos da época. No fim do ano, a Ferrari negocia com o francês a sua entrada na equipe para 1974. Parece que até um pré-contrato foi assinado, deixando Jarier muito entusiasmado. Mas o sonho acabou quando Lauda ocupou o seu lugar.
– Mario Andretti – Os motivos de Mario eram puramente pessoais. O americano não ousava arriscar a sua posição de primeiro piloto na equipe Lotus, contrariando Colin Chapman, que queria ver seus carros na pista. A Lotus já havia iniciado o projeto do carro asa e, inclusive, alguns testes haviam sido feitos em sigilo com um Lotus 77 modificado e equipado com saias. Gunnar Nilson havia provado o carro e seus tempos, desde o principio, já eram melhores que os do modelo convencional. Andretti queria ser o piloto que disputaria o título com aquele novo carro.
– Vitorio Brambilla – No caso do italiano, a explicação é bem simples: ele era um autêntico especialista em pista molhada. As condições em que se encontrava o circuito eram ideais para compensar as carências de seu pobre March. Brambilla apenas defendia os próprios interesses quando se mostrava disposto a correr.
– P. Depailler/T. Pryce – Mesmo sem chegar ao nível de excelência de Brambilla, tanto o francês quanto o galês eram pilotos que se desenvolviam muito bem na água. O interesse deles em correr, portanto, era lógico.
– Arturo Merzario – Arturo havia sido protagonista destacado no resgate de Lauda em Nurburgring. Foi ele quem, valentemente, liberou Lauda do cockpit em chamas da Ferrari, antes de receber ajuda de Edwards, Lunger e Ertl. Porém, quando Lauda se encontrava já bastante recuperado, convoca uma reunião com a imprensa para mostrar o seu agradecimento aos pilotos que lhe haviam salvado a vida. Sem embargo e surpreendentemente, Lauda não menciona o heroísmo de Merzario. Isto deixa Arturo muito magoado e pouco tempo depois Lauda tenta se desculpar mas tudo o que consegue é ofender Arturo ainda mais. Desde então, Arturo nunca ocultou o desprezo que sentia por Lauda.
Merzario assegurou ter corrido cumprindo ordens da equipe mas é fácil imaginar que, pelo menos naquela ocasião, não lhe teria sido muito difícil cumprir essas ordens.
– Alan Jones – Talvez a falta de combatividade do australiano seja a mais difícil de explicar. Talvez, simplesmente, não estivesse em condições de defender a posição. Porém, custa imaginar que Jones tivesse feito algo para impedir que um piloto britânico como Hunt ganhasse o campeonato, favorecendo Lauda que, dito seja, não desfrutava de muito carinho entre os aficionados britânicos desde o acidente que vitimou Roger Williamson em 1973.
Que eu saiba, Jones não foi criticado pelo seu chefe, John Surtess, que havia sido piloto da Ferrari e acabou abandonando a equipe em circunstâncias nada amistosas.
Niki Lauda era um piloto frio e calculista, qualidades ideais na pista. Porém, e quiçá por isso, nos boxes nunca foi muito apreciado pelo resto de pilotos.
Talvez tudo se trate de simples coincidências e as circunstâncias pessoais de cada piloto não influíram nos acontecimentos mas resulta difícil substrair-se à tentação de ocupar o lugar de cada um deles e pensar no que teríamos feito naquelas circunstâncias. Teríamos atuado de forma diferente?
Talvez nunca tenhamos completo conhecimento do que aconteceu naquele GP. Mas os pilotos, até os nossos ídolos, no fim das contas, são apenas pessoas como vocês ou como eu – e o único certo é que ninguém é perfeito nem faz sempre o correto.
Grande abraço
Manuel Blanco
Coluna publicada originalmente em duas partes, nos dias 27/10 e 1/11/2005
5 Comments
Oi amigos,
Quando a coluna foi originalmente publicada, já respondí a esse tipo de perguntas. Aqui vai a responda dada entao :
Também faz tempo que eu não participo no GPtotal devido ao trabalho, mas o acesso todos os dias. Bem, respondendo ao teu comentário sobre os Mistérios no Oriente, devo dizer que, em nenhum momento, tive a intenção de apresentar o acontecido no GP do Japão 1976 como uma conspiração. Se não me engano, um conspirador trata de conseguir algo anulando a vontade de outro mas, naquela ocasião, a decisão de correr ou não lhe coube única e exclusivamente a Lauda.
O que, sim, me atrevi a sugerir no texto é que houve uma concatenação de circunstâncias em contra de Lauda. Poderíamos até aplicar o ditado popular de que “quem semeia vento, colhe tempestade”. E isso é que aconteceu com Lauda.
No caso de Regazzoni, Lauda recebeu a mesma ajuda que havia prestado antes ao suíço: nenhuma. No caso de Merzario e Peterson, o italiano e o sueco apenas lhe dispensaram o mesmo desprezo que o austríaco lhes havia dedicado anteriormente.
Quanto aos outros pilotos, eles somente se ocupavam dos seus próprios interesses Como disse no texto, o caso de Jones pode ser o menos claro de todos. Porém, a minha opinião é que ele não teria feito grande coisa para impedir o título de Hunt. Recordemos que naqueles tempos a F1 se resumia numa luta atroz entre a Ferrari e as pequenas equipes inglesas. Portanto, acho difícil imaginar que um piloto britânico ( já sei que Jones é australiano, mas os australianos também são britânicos e súditos da sua graciosa majestade) de uma equipe britânica, fizesse algo para impedir a derrota de um piloto da Ferrari. Como disse no texto, o seu chefe – John Surtees – imagino que não teria ficado muito satisfeito.
A respeito da frase que você menciona sobre o acidente de Williamson, faz algum tempo com e com motivo daquele acidente, já fiz um comentário sobre o acontecido entre Lauda e Purley após a corrida. Como você diz, não havia nenhum contencioso entre Lauda e Williamson, mas sim entre Lauda e Purley.
Lauda, junto a Stewart, foi o piloto que mais irritou Purley pela negativa a ajudá-lo a resgatar o pobre Williamson. Segundo crônicas da época, Purley, depois do corrida, foi procurar estes dois pilotos para pedir-lhes uma explicação pelo seu comportamento nada solidário. Stewart, mais veterano, desapareceu dos boxes, mas Lauda, mais jovem e inexperiente, ficou por lá e acabou recebendo a dura bronca de Purley. Porém, o que mais irritou o britânico foi a displicência mostrada por Lauda, que, em certo momento da discussão, se limitou a dizer: “Eu cobro para correr!”
A falta de respeito de Lauda enfureceu tanto Purley que dizem que tiveram que segurá-lo para impedir que ele agredisse o austríaco. Isto não passou despercebido na Inglaterra, e, desde então, a popularidade de Lauda caiu bastante entre os britânicos. Inclusive, algum tempo depois, Lauda lançou um livro onde, entre outras coisas, descreve aquela corrida. Porém a sua versão do acontecido lá foi bastante diferente do que se havia comentado na época. De fato, no livro, ele nem menciona o incidente com Purley.
Purley saiu de Zandvoort como um herói (de fato, foi condecorado com a “George Medal”). O mesmo não se pode dizer de Lauda.
Em resumo, repito: não creio que houvesse nenhuma conspiração. Mas, não há dúvida, tudo parecia estar em contra de Lauda.
No texto, eu pergunto o que teríamos feito no lugar de qualquer um daqueles pilotos, e não sei o que você teria feito. Porem, eu não sou capaz de censurar nenhum deles, conhecendo as circunstâncias.
Grande abraço,
Manuel Blanco
E mais uma coisa: Além de omitir a participação de Merzario no resgate pós-acidente em Nurburgring, o que Lauda disse que ofendeu o piloto italiano?
Compartilho a dúvida do Ronaldo. Qual a conexão entre Niki Lauda e o acidente fatal sofrido por Roger Williamson em Zandvoort/73?
Você poderia discorrer um pouco mais sobre a sentença “não desfrutava de muito carinho entre os aficionados britânicos desde o acidente que vitimou Roger Williamson em 1973.”?