O Grande Prêmio de Mônaco de 1984 foi uma das maiores loterias da história. Foi também a corrida em que Ayrton Senna convenceu ao Brasil e ao Mundo que era realmente um piloto especial. Era sua primeira vez no circuito do qual se tornaria o maior vencedor da história, anos depois. Classificou-se em 13º no grid e na largada já pulou para a nona posição. As condições do clima eram realmente péssimas no Principado e vários pilotos abandonaram após escaparem no piso molhado. Um dos lances mais divertidos ocorreu com Niki Lauda: na 23a volta, o austríaco rodopiou na freada da curva do Cassino e sua McLaren estacionou exatamente junto à guia, em frente às escadarias que dão acesso ao saguão do luxuoso Hotel de Paris. Só faltou Lauda descer do cockpit de sobretudo, chapéu e um cachimbo para uma cena surrealista, típica dos filmes da Jacques Tati.
Alheio à comédia dos outros, Senna ia ganhando suas posições e se aproximava perigosamente do líder Alain Prost, quando a corrida foi interrompida. Pelo ritmo do brasileiro, a ultrapassagem era questão de uma ou duas voltas. A decisão do diretor de prova, o belga Jacky Ickx, gerou muita controvérsia. Me lembro até hoje da manchete da Folha de S. Paulo no dia seguinte: “Patriotada francesa tira vitória de Senna”. Ironicamente, Prost acabou perdendo o título mundial daquele ano por meio ponto. Tivesse o GP de Mônaco durado mais sete voltas antes da bandeira vermelha, a pontuação distribuída seria completa. O francês teria chegado em segundo lugar e seria o campeão da temporada.
A teoria conspiratória contra Senna, adivinhem, virou verdade absoluta para a maioria de seus fãs. Afinal, uma vitória de Prost em Mônaco seria motivo de festa na França. Imagine só se ele saísse humilhado por um semi-desconhecido de uma equipe com poucos recursos. O próprio piloto gesticulou pedindo o fim da corrida, pouco antes da bandeira vermelha ser acionada. Sem falar no fato de Ickx ser contratado na época pela Porsche, justamente a fornecedora de motores da McLaren. Que canalhice, né?
Não é. Os números mostram que a decisão de Ickx foi mais do que acertada. Duas voltas antes da interrupção, a chuva, que era forte, apertou ainda mais. Nestas passagens, todos os pilotos, sem exceção, marcaram tempos cinco segundos acima do que registraram nas voltas anteriores. No site Atlas F1, um membro da cruz vermelha monegasca, que atuou na corrida, afirmou ter conversado depois com figuras importantes da organização do evento. Segundo eles, a decisão de parar a prova já surgiu na volta 20 e ficou inadiável quando começou a cair mais água. “É preferível parar a corrida uma volta cedo demais do que uma volta tarde demais”, disse Ickx.
Na minha opinião, a interrupção daquele GP de Mônaco na 31a volta foi a melhor coisa que podia ter ocorrido a Ayrton Senna. Seu cartão de visitas estava dado e admirado. Mas, se a prova continuasse, seu desempenho seria ofuscado pelo do alemão Stefan Bellof. Vejamos: nas quatro voltas anteriores ao final antecipado, aquelas em que Senna decepava sua desvantagem para Prost, Bellof descontou 3s5 em relação a Senna, quase um segundo por volta. Neste ritmo, o alemão chegaria no brasileiro em questão de 20 voltas (ou por volta da 50a das 78 previstas). E, conhecendo os dois, não haveria a chance de uma ultrapassagem ser negociada, em especial naquelas condições: ia ser batida na certa. Será que Jacky Ickx não anteviu esta possibilidade?
Mas há outro elemento que confirma de forma contundente a sorte de Ayrton Senna. Após a corrida, o mecânico da Toleman John Walton procurou seu colega Nigel Steer, da Tyrrell, para lhe informar que Bellof seria o provável vencedor da corrida. Em uma das passagens pela chicane após a túnel, quando perseguia Keke Rosberg, Senna havia danificado bastante sua suspensão dianteira direita – para quem não lembra, a TV mostrou claramente o momento em que o brasileiro sacudiu seu Toleman ao passar sobre a zebra. Segundo Walton, era questão de voltas para que a suspensão cedesse. A história está documentada em uma biografia de Ken Tyrrell, escrita por Maurice Hamilton.
Como Prost também enfrentava problemas, com os freios, seria Bellof quem brilharia ao assumir a liderança e, provavelmente, vencer a prova. Mesmo com a equipe tendo seus resultados desconsiderados posteriormente (correu a maior parte do ano com o carro abaixo do peso), na hora seria a consagração de um novato cheio de talento e ótimo na chuva. Mas este novato não seria Senna. O primeiro grande show do brasileiro terminaria ofuscado pela performance do alemão. Sem falar no risco de acidente quando a suspensão quebrasse de vez. Já imaginou se fosse na saída do túnel? Karl Wendlinger, lembram?
Desta forma, acredito que Senna deu uma sorte tremenda com a decisão de Ickx em interromper a prova. Saiu consagrado como o mais promissor talento da nova geração e principal nome para o futuro da categoria. Bellof não teve a mesma chance. A ironia macabra: o alemão morreu em Spa-Francorchamps no ano seguinte, negociando uma ultrapassagem justamente sobre Ickx. Quem tem motivos para não gostar de quem?
Abraço e até a próxima,
Luis Fernando Ramos |