Estamos no ápice da chamada “Era dos Festivais”. Era também o ápice da Jovem Guarda. No primeiro grupo, destacavam-se todos os filhos da Bossa Nova. No outro, tinha-se um movimento sócio-cultural cuja grande força motriz era a música rock. Vinícius de Moraes era um dos grandes mestres do primeiro; Roberto Carlos, o líder do outro.
Vinícius venceu, como compositor, o primeiro Festival da Música Brasileira – TV Excelsior, 1965 – com a fabulosa “Arrastão”, parceria com Edu Lobo. Roberto se tornara o primeiro a romper a barreira de 1 milhão de discos no Brasil com a indescritível “Quero que vá tudo pro inferno”, parceria com Erasmo Carlos. Em resumo, eram dois monstros (con)sagrados, embora de duas vertentes distintas. E seria o próprio Vinícius, causando choque na turma de jurados e concorrentes, a escolher Roberto para defender “Anoiteceu” no Primeiro festival da Record – ou o “II Festival da Música Popular Brasileira” – em 1966.
Ao final do programa, todos sabiam que “Disparada” já seria finalista. A surpresa foi que entre as outras três classificadas não estava “Anoiteceu”. Um dos concorrentes, que preferiu não se identificar, declarou aos jornais: “Acharam que ia ser moleza, que era só juntar Vinícius e Roberto e levar o prêmio”. Para um dos jurados, o compositor paulista Denis Brean, notório adversário tanto da bossa nova como da jovem guarda, a desclassificação de Anoiteceu significava “a destruição de dois mitos”.
Roberto Carlos ficou tão desapontado que chegou a chorar nos bastidores do Teatro Record. Depois do resultado, todos os concorrentes daquela eliminatória voltaram ao palco. Todos, menos ele.
12 anos depois, um jovem paulistano iniciava suas tentativas no Campeonato Mundial de Kart. Ele vinha de uma sequência de títulos estaduais, nacionais e continentais. Era a hora de tentar conquistar o mundo. Aos 18 anos, Ayrton Senna tem sua primeira participação no mundial, na histórica pista de Le Mans. O resultado foi satisfatório – 6º lugar – para quem pela primeira vez encarava adversários do mais alto calibre.
Mas sua personalidade desde muito jovem não era a de conformismo, de aceitação de resultado: ele tomava aquele primeiro impacto como lição e como incentivo para chegar ao topo. Em 1979, no Estoril, pista onde faria história anos mais tarde já correndo pela Fórmula 1, o grande momento parecia ter chegado.
Mas, como um mistério daqueles que não se explica, apenas se aceita, aconteceram coisas que parecem desafiar a lógica.
Pela manhã, nas eliminatórias, Senna vinha sempre entre os ponteiros, somando pontos que davam a todos a impressão de que já havia um campeão. “AutoSport” descreveu a reação do público: “Cada vez que Senna da Silva ultrapassava um adversário, toda a bancada explodia numa aclamação unanimemente estrondosa, que só encontra paralelo nos estádios de futebol.”
No entanto, na quarta e última bateria das semifinais, aconteceria algo que em princípio não tinha tanta importância, mas seria decisivo no fim.
Senna parte em primeiro, mas na terceira volta deixou Fullerton passar (os dois corriam pela mesma equipe, a DAP). Alguns giros depois, Senna se aproximou do companheiro de equipe, mas os dois acabaram se tocando [segundo o relato, Terry teve um problema no motor e não conseguiu sinalizar a Ayrton]. Senna saiu da pista. Conseguiu voltar, mas já muito longe dos ponteiros. Esses pontos perdidos fariam muita, muita falta.
Chegada a Final, que seria disputada em três baterias, tivemos alguns momentos épicos.
Na primeira delas, Senna vinha num bom segundo lugar, atrás de Bruyn, mas cairia para quinto. O motivo foi um problema no carburador. Ele faria várias voltas só com uma das mãos: a mão esquerda no volante, a mão direita ajustando o equipamento. “Os outros pilotos também faziam isso, à mesma velocidade, mas somente nas retas. E Senna da Silva fê-lo, volta a após volta, mesmo nas zonas mais sinuosas e perigosas do traçado“, grafa AutoSport.
Na segunda bateria, Senna não tem problemas no equipamento termina no segundo lugar, atrás de Peter Köne, depois de partir em quarto. Chegada a terceira e última, Senna vence. Köne é sexto. O brasileiro comemora, como fosse uma volta olímpica. Chega a falar com o holandês, pelo gestual, e este até lhe parabeniza.
Quando foram à pesagem, porém, algo mudou: o campeão era Köne, e não Senna.
O que aconteceu: os dois pilotos chegaram ao final da terceira bateria empatados em pontos. Ambos tinham uma vitória e um segundo lugar. Mas o regulamento daquele ano havia mudado e, em vez de o desempate ser feito pelo resultado última prova, seria decidido pelos resultados preliminares, naquelas “semifinais” onde Senna teve o imbróglio com Fullerton. E no somatório das eliminatórias Peter Köne tinha mais pontos do que Senna.
A reportagem do jornal local dá a ideia de como a notícia foi recebida: “Peter Köne, o vencedor surpresa“.
Em entrevista após a prova, ainda inconformado, o brasileiro declarou: “Não compreendo como é que vão buscar o resultado de uma eliminatória que tem menos valor, e não contam com o resultado de uma final, que é muito mais importante. Se fosse o desempate feito com o resultado da final, o campeão seria eu”.
A regra era de um jeito e passou a ser de outro. Mas era a regra, não é mesmo?
Angelo Parilla, dono da equipe de Senna naquele mundial, descreve o retorno de Ayrton aos boxes como a mais marcante lembrança que tem do brasileiro: “Enquanto Senna estava na pista, ainda celebrando, meu irmão (Achilla Parrilla) e eu sabíamos que ele não havia ganhado. Então tiramos par ou ímpar pra decidir quem de nós daria a notícia a ele. Por sorte, coube a meu irmão fazê-lo. Senna voltou aos pits, me beijou, beijou os mecânicos, beijou meu irmão… e caiu em lágrimas. Ele repetia: ‘mas por quê, por quê?!’. Bem, porque eles mudaram as regras, Ayrton. Ele era o melhor piloto. E com toda justiça merecia ser campeão mundial. Mas… tem coisa que não é pra ser”.
Ayrton voltou a disputar o mundial de Kart outras três vezes, novamente sem sucesso: em 1980 foi muito bem, ficando outra vez com o vice-campeonato. Mas nos dois anos seguintes, quando já competia – e destruía – na Fórmula Ford, sequer chegaria ao “pódio”.
Senna foi devastador nas Fórmulas Ford: o painel ao fundo estampava “1º lugar – #31”
Nosso colunista Márcio Madeira resume a saga de Senna: “O resultado daquele ano não reflete o desempenho observado na pista, da mesma forma como a ausência de um título mundial não faz justiça à qualidade da pilotagem entregue pelo brasileiro“.
Depois de “Anoiteceu”, Roberto Carlos retornaria aos festivais da Record outras três vezes: no mesmo 1966, duas semanas depois após sua grande frustração, defendeu “Flor Maior”: classificou-se à segunda fase, mas não à final. Em 1967, finalmente esteve no top 6, com “Maria, Carnaval e Cinzas”. Mas era a vez de Edu Lobo e o “Ponteio”.
Meses mais tarde, RC se arriscava em outra competição musical. Depois de anunciar sua saída do programa “Jovem Guarda”, ele cruzou o Oceano Atlântico para concorrer no prestigiadíssimo festival de San Remo, Itália, cuja primeira edição acontecera 14 anos antes das competições brasileiras e cuja presença na plateia era, inclusive, uma das premiações aos vencedores dos festivais em terra brasilis.
Sua afinação e a forma segura com que se apresentou foram impressionantes. Não à toa, ele se tornava o primeiro estrangeiro a vencer por lá — um festival que, naquele mesmo ano, teve a presença de Louis Armstrong…
De volta com muito prestígio, mais maduro artisticamente e agora defendendo uma composição arrojada, a hora de RC nos Festivais Nacionais parecia ter chegado. Ele interpretou “Madrasta” no IV Festival, em 1968. “Roberto Carlos, de smoking, enfrentou as vaias com coragem e segurança e cantou maravilhosamente bem uma canção dificílima, com harmonias complexas e dissonantes, como era do gosto mais sofisticado“, narra Nelson Motta em “Noites Tropicais”.
No momento em que os apresentadores iriam anunciar o resultado final, o “Rei” chamou Beto Ruschel e Renato Teixeira (os compositores da canção) à entrada do palco: “fiquem aqui, vocês vão entrar comigo”, disse-lhes o cantor, certo de que a música estaria entre as primeiras colocadas. Só que não. “Ele foi embora revoltado, puto da vida”, lembra Teixeira. A vitória foi de Tom Zé.
Roberto nunca mais participaria de um festival nacional. Como ele mesmo diria em um de seus maiores clássicos, não adiantava nem tentar.
1 Comments
Fantástico Texto, Amigo Marcel!
Realmente, quando não é pra ser, não é, independente se tem ou não explicação para o fato.
Mas que ambos mereciam tais conquistas, ahhh mereciam.
Grande abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR