O carro de corridas mais importante

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Ao se manter os "volantes retos" (...) não se perdia tempo com correções, nem seria necessário usar demasiadamente a força do motor para conservar o carro na trajetória.

Meu caro Edu, acabo de ler* sua coluna Volante Reto e penso que ainda podemos lapidar um pouco mais esse conceito. Na verdade, ele se situa sobre uma verdade física: a de que o atrito estático entre duas superfícies sempre oferecerá um coeficiente de aderência superior ao atrito dinâmico.

Hoje sabemos que a chave para melhorar o desempenho nas pistas passa pelo atrito entre pneus e asfalto, mas nem sempre foi assim. O automobilismo levou muito tempo para extrair os benefícios dessa verdade, e creio que isso se deva sobretudo à dificuldade que os primeiros construtores encontraram para elaborar um carro capaz de oferecer índices de aderência minimamente próximos para seus dois eixos.

Pensemos, por exemplo, nos carros da década de 30. Com motores dianteiros ou centrais, todos eles falhavam em obter um centro de gravidade centralizado e baixo, que não gerasse tanto momento polar rotacional. O resultado, claro, eram carros que apresentavam uma enorme resistência a mudanças de trajetória. Na prática havia uma discrepância entre a aderência oferecida a cada um dos eixos, obrigando o piloto a uma abordagem angulada, atravessada, administrando o chamado yaw. O mesmo se pode dizer sobre os grandes carros dos primórdios da Fórmula 1, que concentravam a maior parte do peso na dianteira, e por conta disso apresentavam uma fortíssima tendência a subesterçar.

Ora, para que um carro possa descrever uma curva, de algum modo seus dois eixos precisam estar equilibrados. Se não houver aderência na dianteira, o carro seguirá reto; se ela faltar não traseira, tudo acabará numa rodada. Como então superar esse defeito de nascença e fazer esses carros virarem, quando próximos aos limites? A solução encontrada era tentar manter o eixo dianteiro fixo, conservando a traseira em derrapagem controlada. Assim o eixo de menor aderência conservava o atrito estático, e o de maior aderência permanecia em atrito dinâmico. Atingia-se um equilíbrio, ainda que limitado pelo lado mais fraco.

Nessa condição de pilotagem a maestria estava justamente na habilidade para manter os “volantes retos”, determinando já na entrada da curva a angulação ideal da derrapagem, e a controlando com os pedais. Desse modo não se perdia tempo com correções, nem seria necessário usar demasiadamente a força do motor para conservar o carro na trajetória.

O verdadeiro momento de ruptura com esse modelo de pilotagem nasce da prancheta de John Cooper, e é consequência direta do espírito de improviso e racionamento que reinava na Europa do pós-guerra. Com muitas pistas (em sua maioria derivadas de bases aéreas desativadas) e poucos recursos, os ingleses criaram uma categoria para pequenos carros, equipados com motores dois tempos de 500cc de motocicletas. A essa nova categoria deram o nome de Fórmula Junior, e pode-se dizer que foi a partir dela que surgiu a atual Fórmula 3. Como se pode imaginar, esses pequenos carros herdavam a transmissão por corrente das motocicletas, o que tornava muito mais conveniente a instalação de seus motores na traseira.

A Formula Junior foi um sucesso automobilístico, e foi a partir dela que se moldou uma geração de ingleses apaixonados por automobilismo que mudaria para sempre a imagem do esporte.

Em 1952 e 53 o campeonato mundial de pilotos foi disputado com carros de Fórmula 2, e ao longo desses anos alguns jovens construtores britânicos puderam competir contra a nata do continente. A despeito do domínio imposto pelo binômio Ferrari-Ascari, estava claro para alguns artesãos-construtores (dentre os quais temos que destacar as equipes Cooper e Connaught) que a combinação entre um chassis bem trabalhado e um motor aproveitável poderia se mostrar vencedora.

A semente estava plantada e demorou cinco anos para germinar. Seu primeiro fruto foi o magnífico Copper T43. Na minha opinião, simplesmente o carro de corridas mais importante já construído.

O pequeno Cooper, que surpreendeu o mundo ao vencer o GP da Argentina de 1958 pelas habilidosas mãos de Stirling Moss, é historicamente lembrado pelo papel decisivo que desempenhou do processo de dominação do motor traseiro na Fórmula 1. Essa, no entanto, me parece uma grande injustiça histórica. Na verdade, características muito mais importantes e sutis envolviam a criação de Cooper.

Com um motor meio litro menor que o permitido, o carro fora todo ele pensado e concebido sob a luz de um novo paradigma: o de que a velocidade média de um carro de corrida importa muito mais que sua velocidade máxima. E isso se desdobrava em inúmeras outras diretrizes. A potência, por exemplo, agora estaria subordinada ao aproveitamento, ao controle. A reduzida área frontal permitia inibidas preocupações aerodinâmicas, ao passo que o peso extremamente reduzido e bem distribuído dava novo sentido aos freios e à durabilidade dos pneus.

O Cooper T43 introduzia um novo pensar automobilístico, voltado à importância do atrito estático em ambos os eixos, que terminaria por mudar completamente a cara do automobilismo nos vinte anos seguintes. Sob muitos aspectos, o Lotus 79 que encantou o mundo é tributário do pequeno Cooper, montado num esforço de bricolagem e improviso numa pequena e modesta garagem em Surbiton.

Desde então já não se trata exatamente de manter os volantes retos, mas sim em conformidade com o ângulo ditado pelo traçado ideal da curva. Correções e derrapagens representam perda de tempo e não mais se justificam.

O assunto é complexo, e há muito mais o que se escrever a esse respeito. Mas da forma como eu vejo, tudo começou com a modesta Formula Junior na Inglaterra, e passa diretamente pela importância do atrito estático entre pneus e asfalto.

Forte abraço e até breve.

Márcio Madeira da Cunha

*Coluna publicada originalmente no dia 22/08/2007

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

1 Comments

  1. Paulo disse:

    Prezados Amigos do GPTotal

    É sempre uma grande satisfação ler o GPTotal e encontrar verdadeiras preciosidades, que é a marca desse site.

    Desta vez, parabenizo em conjunto Edu e Márcio Madeira por suas colunas intituladas Volante Reto e O Carro de Corridas Mais Importante. Suas análises sempre precisas e esclarecedoras são maravilhosas. Particularmente, aprendi e conheci muitos detalhes, para mim novos e fascinantes.

    Cabe lembrar que , ao falarmos de Automobilismo (principalmente o de competição , onde os limites físicos são extremos) muitas vezes não nos damos conta, mas estamos falando de Física, termo oriundo do Grego Physis que significa natureza. Em uma de suas mais fascinantes subdivisões que é a Mecânica Clássica , podemos entender melhor tudo o que foi exposto de maneira brilhante em ambas as colunas citadas.

    Curioso que na forma acadêmica tradicional, a Física é considerada até mesmo enfadonha. A abordagem deste tema inevitavelmente me traz à lembrança o grande piloto Piero Taruffi, que até onde sei foi o Pai das Escolas de Pilotagem, quebrando o paradigma existente até o inicio dos anos 1960, onde se acreditava que o individuo nascia ou não Piloto de Competição.

    Naturalmente existe um elemento fundamental que é a vocação ou talento, que este sim, parece acompanhar o indivíduo de forma, porque não dizer, Divina, já que nasce com ele. Porém, Taruffi provou que nem tudo está perdido para os menos agraciados com tal talento, já que Pilotar é uma ciência e que como tal pode ser ensinada e aprendida.

    Naturalmente, quem tiver talento, já está em vantagem desde que bem aprendendo os rudimentos básicos da pilotagem de competição que resume-se em entender as forças que atuam em um carro em movimento e todas as suas variáveis, bem como, trajetórias e todas as demais dinâmicas envolvidas em todo o ato.

    Como muito bem diz, o Márcio, é um assunto muito amplo para ser escrito em uma coluna mas penso que abra espaço para mais explanações futuras, sobre uma das conseqüências da F1 moderna, que é a combinação entre a aderência mecânica e a aderência aerodinâmica, na minha opinião uma das maiores responsáveis pelo alto custo da Categoria atualmente, junto é claro, com a eletrônica embarcada, também contemplada pela Física em outra de suas subdivisões, que é a Eletricidade e o Eletromagnetismo.

    Bem, espero tê-los incentivado com possíveis temas, para futuras abordagens.

    Forte abraço à Família GPTotal

    Paulo C. Winckler, Porto Alegre

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